quinta-feira, 30 de abril de 2015

RADICALIDADE DO PRESENTE


por Francis Vogner dos Reis


Retomar Samuel Fuller hoje é uma questão de resistência. Há nele um ímpeto (que é mais do que uma “pulsão”) em ser um homem do seu tempo, de responder às demandas de sua época, de colocar em crise e em evidência o seu lugar em um mundo que propõe a inércia e a conciliação. Fuller sempre destruiu visões pré-fabricadas sobre o mundo. Em um século em que a imagem serviu às mais diversas propagandas (principalmente de Estado), ele teve a petulância de realizar contrapropaganda, apesar dos mais incautos e simplórios o terem acusado de ser propagandista militar. Filmes como Verboten!Capacete de AçoBaionetas Caladas e Agonia e Glória são os filmes de guerra mais duros e colaterais já filmados, principalmente por conceberem seus personagens como homens, não soldados. Não só por isso, Samuel Fuller, junto a Buñuel e Godard, foi o cineasta mais perigoso da História.

Sua postura passa por um engajamento insuspeito e vê-lo hoje em dia é saudável e vital, já que não é mais questão para muitos cineastas um engajamento em um universo concreto de seres e olhares: tudo é muito imediato, escalpelado e vaporoso, o que implica essa nova maneira de se “passar pelo mundo” (e não mais de “estar no mundo”). Não há presente, no sentido de que este prescinde de uma ação e a afirmação de uma moral - só estagnação e espera. Não há acontecimento, mas quase-acontecimentos; os fatos são estilhaços de eventos que sugerem inércia ou paralisia estetizadas. Cinemas de falseamento dos sentimentos, de bloqueio emocional. Há dois exemplos, hoje, em cartaz: A Teta Assustada, de Claudia Llosa e Confissões de uma Garota de Programa, de Steven Soderbergh. Cinemas de idéias sem corpo, de corpos sem idéia, burilados em uma plasticidade que só responde a conceitos; filmes covardes, acomodados e isentos. O texto de Luiz Carlos Oliveira Jr., “A Paralisia da Afecção” sobre A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel, na Contracampo, discorre precisamente sobre o automatismo desse tipo de olhar. O “agora” é lugar dos sonâmbulos e da rebordosa.

Por isso, retomar Samuel Fuller não é só uma demanda meramente cinéfila e anacrônica, não é só uma homenagem e por outro lado, também não é questão de brandi-lo contra o cinema contemporâneo. Se o fato de voltar ao cineasta soa como provocação, isso acontece menos em razão de um programa crítico pré-estabelecido e mais porque essa é mesmo uma característica dos filmes de Samuel Fuller. A intenção, portanto, é avançar, porque procurar no patrimônio do cinema alguns elementos específicos que possam iluminar um panorama como o nosso (bastante confuso e obscuro) e olhar para os filmes em sua integridade, sem ter como objetivo final instrumentalizar Fuller contra o cinema contemporâneo, é simplesmente compreender a vocação do cinema, sua clareza, sua fúria, sua violência natural.

Há nos filmes de Fuller um componente que se encontra nas obras de cineastas contemporâneos como Pedro Costa, Claire Denis, Michael Mann e Apichatpong Weerasethakul, que é o de uma acentuada obsessão pelo presente. Cineastas esses de estilos e orientações diferentes (nenhum especificamente parecido com Fuller), mas com filmes marcados pelo “fato cinematográfico”, na imersão da experiência de um mundo concreto, onde só se age sobre o que se vê, e isso pode ser violento, pode ser insuportável, mas é irremediavelmente verdadeiro. Isso é o extraordinário desses cineastas do presente radical.

O presente que se trata nesses casos (no de Fuller especificamente) não diz respeito aos acontecimentos mundiais, às tendências ou configuração de um novo estado das coisas (hoje isso tem um endereço certo, para o bem e para o mal: Olivier Assayas), nem simplesmente uma resposta ao clichê retórico - interpretado de maneira simplória - de que “o cinema é a arte do presente”.

Esse presente em alguns casos se dá como diafania (Rossellini, Apichatpong, Denis), pois suspende expectativas futuras e condicionamentos passados na erupção e vidência do mistério que, ao contrário da epifania, é “de dentro para fora”. Em Fuller esse presente é diferente, pois é um impasse existencial que implica em uma moral: não se vê nada à frente, talvez a morte ou a queda, mas não é possível voltar ou parar. O presente é o impasse, e nele é preciso reinventar todas as coisas, mesmo as que parecem impossíveis: reeducar um cão criado para atacar pessoas negras em Cão Branco, reinventar a vida “apesar da civilização” como em Renegando o Meu Sangue eDragões da Violência, resistir como infantaria destinada a ser bucha de canhão em Baionetas Caladas. Se o termo “filme de ação” pode ser empregado literalmente e em mais de um sentido, é nos filmes de Fuller que encontra sua definição perfeita.

Casa de BambuRenegando o Meu SangueCão BrancoBaionetas Caladas e A Lei dos Marginais são de uma violência crua que não nos faz voyeurs sádicos e isentos. Temos ali signos reconhecíveis do cinema de gênero, enunciados culturais e certa classe de encadeamento das imagens (ou seja: tudo o que faz a festa do chantagismo teórico na década de 70), onde surge algo que desafia nossa percepção (geralmente pré-formatada) dessas coisas. Algo acontece, algo se dá e esses filmes souberam provocar e catalizar essas energias.

E isso faz todo grande cinema, inclusive aqueles em que nos aproximamos como voyeur (Hitchcock) ou aluno (Godard), mas que no fim das contas nos faz testemunhas. A câmera presencia esses fatos como se fosse a primeira vez. Não foi esse “gosto pela atualidade” que Serge Daney apontou em Fuller a respeito da abertura deRenegando o Meu Sangue que mostra a rendição do sul na Guerra da Secessão? É isso que diferencia os filmes de Samuel Fuller da maior parte dos filmes históricos de ontem e de hoje: não há nunca um olhar decadentista, idealista ou saudoso, porque Fuller filma o assassinato de Jesse James, o fim da Guerra Civil Americana como se fossem um “furo”. Fuller não faz relato, dá testemunhos.

Questão de testemunho

É importante dizer que o presente não se dá só em um aspecto, digamos, documental, mas também no trabalho com o fato bruto, acontecido e não acabado, coisa que era obsessão do cineasta-repórter Fuller. Por isso, é importante notar como o diretor abre um filme. São falsas introduções, são falsos começos. Não que sejam farsas, mas são o centro nervoso do filme e são liberados logo de saída. Coisas que outros cineastas procuram desenvolver com a narrativa, Fuller já nos dá de antemão nos colocando na posição de testemunhas. Interessa a ele mostrar a verdade não por intermédio dos eventos centrais, mas sim nas implicações desses eventos. É uma questão, como no jornalismo, de objetividade. Interessa o que está atrás do acontecimento: um fato banal como um roubo de carteira durante um flerte no trem como em Anjo do Mal; um fato de importância derradeira como a já citada abertura de Renegando o Meu Sangue ou a explosão em cinemascope e technicolor em Tormenta Sob os Mares; uma explosão de violência capaz de desvelar, na sua própria fúria, a sua razão em O Beijo Amargo. São todos gestos cinematográficos urgentes nos quais Fuller deve muito a Fritz Lang, pois não se constituem como um exercício de estilo, são pura violência, o que significa que não são nem o tema nem uma violência puramente plástica, mas sim da brutalidade de todas as coisas. Se o mundo é bruto, o cinema deve responder a ele com a mesma intensidade, mas colocando-se na contramão da instrumentalização que este mundo faz da brutalidade (guerras, racismo, fascismo), sabendo ao mesmo tempo que só é possível ver esses fatos por dentro, mesmo correndo o risco de alguma contaminação, como em Paixões Que Alucinam.

É o mundo visto a partir dos campos de batalha, dos showzinhos de stripper, da imprensa marrom, do hospício e seus anti-heróis que são gente socialmente pouco respeitada como delinqüentes das grandes metrópoles, gonzo-jornalistas, soldados em campo e sem perspectiva, prostitutas e mercenários de toda sorte, todos em uma encruzilhada. Fuller nunca fez um filme em que a solução dos conflitos fosse a escolha entre um certo e um errado pré-estabelecidos: em cada filme há uma demanda do presente, uma “escuta” desse presente que orientará as escolhas dos personagens, uma suspensão - temporária - entre o certo e o errado. Existe a escolha possível, visando a integridade, a liberdade do personagem que é chamado à responsabilidade, seja ele um batedor de carteira, um mercenário na guerra, um policial ou um repórter. É por isso que Fuller desconfia das ideologias que se colocam em campos opostos, pois elas tendem a reduzir as questões entre o certo e o errado, e é por isso também que desconfia das generalizações de qualquer ordem.

O filme, contingência do instante

Quando Jean-Paul Belmondo pergunta a Samuel Fuller em Pierrot le fou “O que é o cinema?”, ele se arrisca em uma definição possível, mas que ao mesmo tempo não responde genericamente o que seria o cinema:

A film is like a battleground. 
It’s love, hate, action, violence, and death. In one word - emotion.

Ele não diz que o cinema é uma técnica que faz isso, uma arte que visa aquilo outro, que é um meio de mostrar a realidade etc. Ele discorre não sobre o cinema, mas sobre o que é o filme, e para isso fala dos sentimentos de amor e ódio, somando-os à ação de violência e morte (porque a morte aqui é um ato, é morrer), e resume em uma palavra: emoção. A conclusão de Fuller a partir de um desvio da lógica inicial da pergunta (não responde o que é o cinema, mas dá definições sobre o que é “um filme”) é uma expressão dos seus princípios como cineasta. Ele não se interessa por generalizações, mas pelo que é particular e intransferível, pela experiência única. Por isso “emoção” é a única definição possível para o seu trabalho formal, porque ela mesma é a orientação desse trabalho. A frontalidade de seus primeiros planos compreende um estado que não se pode expressar em palavras (seus filmes de guerra possuem uma porção de close-ups silenciosos); sua câmera que desliza, às vezes aceleradamente e com sobressaltos como na última seqüência de A Lei dos Marginais, em que Cliff Robertsoncorre para morrer no beco; em outros momentos ainda, Fuller não procura o equilíbrio do procedimento calculado (como em Welles, Hitchcock, De Palma), mas parece mais subjugado à contingência dos personagens (nos filmes de crime e em Cão Branco) ou a uma animosidade geral como na seqüência de separação das tropasem Baionetas Caladas ou numa porção de travellings em Agonia e Glória.

Todas essas características são gerais, mas com implicações específicas, que revelam a compreensão que o diretor tem dos princípios morais de um filme. Esses filmes são de uma espontaneidade que raramente se viu (e se vê) no cinema americano e essa espontaneidade não é desleixo ou traço de um estilo “despojado”, mas a subordinação de sua forma e sua moral ao estado e contingência dos universos que aborda. Nos últimos tempos viu-se isso muito pouco no cinema, talvez em Jackie Brown de Tarantino. Eles fazem dos procedimentos corriqueiramente clássicos algo radicalmente novo, porque os vêem como a melhor expressão (movida pela emoção) das implicações e do estado do mundo que erigem. É a contemplação que controla a dispersão. É também o instante que perscruta o horror e o insuportável, e olha, perplexo, para o incontornável. É possível escolher o seu lugar no mundo, não controlar o mundo.

É na busca dessa compreensão de mundo que mais uma vez Fuller cruza com Rossellini, mas acaba optando por outro caminho. Se em Alemanha, Ano Zero Rossellini acompanha o garoto que se suicida em razão do presente insuportável (para uma criança a destruição não é o no future, mas o no present, o que é pior), para Fuller o presente não é exatamente questão de desespero, mas de incontornabilidade. Seguir vivendo pode significar uma vitória provisória, mas também se deparar com o que não é possível controlar. Em Agonia e Glória o sargento interpretado por Lee Marvin encontra uma criança judia esquálida no qual trava o diálogo sem palavras (mais uma vez o inaudito) mais triste e aterrador do cinema. Ele a alimenta, a coloca nos ombros e caminha. A criança morre ali mesmo de olhos bem abertos. Nós vemos esse instante, vemos Lee Marvin, vemos a criança desfalecer. Não é só a imagem da morte, mas do fracasso e da dor (incontornáveis), que, como a vitória, também são provisórias. Samuel Fuller foi o cineasta que manteve a morte diante dos olhos, e por isso, talvez o mais corajoso de todos. 

Originalmente publicado em 
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/vogner-radicalidade.htm

Cineclube da Cinemateca: “Casa de Lava” de Pedro Costa

Neste sábado, dia 2, o Cineclube da Cinemateca exibe "Casa de Lava" abrindo o ciclo Pedro Costa, que contará ainda com "Ossos" (09/05), "No Quarto da Vanda" (16/05), "Juventude em Marcha" (23/05) e "Onde jaz o teu sorriso?" (30/05).
Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
“Casa de Lava” de Pedro Costa  

No início é o ruído, o desespero e o abuso. Mariana (Inês de Medeiros) quer sair do Inferno. Estende a mão a um homem meio morto, Leão (Isaach De Bankolé). Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do inferno. Acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos mortos.

Serviço:
2 de maio (sábado)
às 16h 
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Cineclube da Cinemateca: Pedro Costa

Programação:
02/05 – Casa de Lava
09/05 – Ossos*
16/05 – No Quarto da Vanda
23/05 – Juventude em Marcha*
30/05 - Onde jaz o teu sorriso?*

*Excepcionalmente às 15h

Serviço:
Todo sábado
às 16h nos dias 2 e 16
e excepcionalmente às 15h nos dias 9, 23 e 30Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)

(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 28 de abril de 2015

Cineclube Sesi: "Cão Branco" de Samuel Fuller

Nesta quinta-feira, dia 30 o Cineclube Sesi exibe "Cão Branco" encerrando o ciclo Samuel Fuller. Em maio o tema será Cinema e outras artes.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta: "Cão Branco" de Samuel Fuller


Um cão treinado a vida toda para atacar pessoas negras se torna um retrato dos 'cães brancos' da África do Sul. Quando a jovem aspirante a atriz Julie o adota, nada sabia sobre sua condição, e o tempo passa sem nada ocorrer. Mas, aos poucos, ela percebe o comportamento racista do cão e o entrega a um treinador de animais para filmes e seu parceiro Keys, ele próprio negro, para que eles tentem reeducar o animal. A questão é: será isto possível?

Serviço:
dia 30/04 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

sábado, 25 de abril de 2015

4:44 - Last Day on Earth


(Abel Ferrara, 2011, EUA/França/Suiça)
Comenta-se muito a “domesticação” de David Cronenberg e esquece-se a de Abel Ferrara: 4:44 Last Day on Earth (4:44 Último Dia na Terra, 2011), o novo filme do nova-iorquino que começou no gore (e roçou a pornografia), aproxima-se do apocalipse com uma placidez quase budista (ou como daquele pregador budista, um valente oxímoro, imagem e som constantes no iPad da jovem Skye).
Longe vão os tempos da violência gráfica e sacra [mais do que Martin Scorsese, e principalmente quando trabalhava com o argumentista Nicholas St. John, Ferrara foi o católico desesperado do cinema americano, que via na violência a (possível?) expiação dos pecados das suas personagens] de Ms. 45 (Vingança de uma Mulher, 1981), com a sua freira assassina, de Bad Lieutenant (Polícia Sem Lei, 1992), com Harvey Keitel em pelota no meio de uma igreja, de The Addiction (Os Viciosos, 1995), com os vampiros como símbolos demónicos do vício, só para ir buscar alguns (e ficam outros tantos, importantíssimos, fora desta enumeração). No entanto, se não está tão à mostra, não é difícil descobrir a perversidade de Ferrara: na mesma placidez que parece contradizer o resto da sua obra (não tanto a recente). É que filmar o fim do mundo com esta serenidade só pode ser perverso.

Durante grande parte do filme, Cisco (Willem Dafoe, um daqueles actores de que se pode dizer que é incapaz de ser mau) e Skye, o casal que protagoniza 4:44, estão encerrados (voluntariamente) no seu apartamento, ligados ao mundo através da televisão (em que se vêem as únicas manifestações de terror perante o futuro da humanidade e, em contra-ponto, aquele pivot de tele-jornal de uma calma exasperante) e dos inúmeros gadgets da Apple (alguém mais cínico poderia escrever que o filme não passa de um anúncio, bastante estranho é certo, da marca), com que (in)comunicam com os entes queridos antes da morte certa (monólogos paralelos mais do que de diálogos, guerrilhas verbais mais do que apaziguamento). Das poucas vezes que se vê o “lá fora” — quando Cisco vai ao terraço assistir a um suicídio, quando ele procura os amigos (ou melhor, a droga que largou: valerá a pena continuar “limpo” quando o mundo vai acabar?; valerá a pena não pecar quando o mundo está a acabar?) —, não se dá conta de grande comoção: apesar dos avisos, as ruas parecem tão pacíficas como numa noite comum (o que talvez seja um dos problemas).

Fujo à explicação ambientalista (redutora) para o que vai acontecer naquela noite às 4 e 44 da madrugada, que dá a Al Gore uma aura de Nostradamus dos nossos tempos: preferia que não houvesse qualquer explicação. Contudo, nem preciso de fugir muito, a principal razão, a que se sente pelo menos, para este castigo dos deuses (de Deus, já que é um filme de Ferrara) é a apatia dos homens, que, nem neste momento, se importam muito com o que lhes vai acontecer. Chega-se à conclusão de que não é a tranquilidade que Abel Ferrara filma, mas, sim, a indiferença. Cisco é o único que grita em desespero, que se debate, que se enfurece (mesmo o suicida cai sem um ai); os outros preferem uma distracção: os amigos, um copo, a cocaína; a namorada, a meditação e a pintura que ficará para uma posteridade que não há-de vir, gesto que tenta negar a condição finita das coisas. O sexo é o último (verdadeiro) refúgio para eles, quando os corpos tomam posse das mentes e se esquecem, por segundos, do seu destino (é o momento mais sensual do filme, dos momentos mais sensuais numa filmografia que não tem falta deles, em todas as acepções da palavra). O amor, que não se dissocia do corpo (nunca para Ferrara), é a redenção que resta, num mundo em que nem já a violência tem lugar.

No fim (e poucos fins são tão finais), depois daquele verde bíblico [a lembrar uma das pragas de The Ten Commandments (Os Dez Mandamentos, 1956) de Cecil B. DeMille)], desmentindo a escuridão das luzes que se apagam em Nova Iorque, uma luz branquíssima ilumina tudo, incluindo os corpos deitados por cima da serpente do pecado original. They were angels already.

João Lameira
(Texto publicado em http://www.apaladewalsh.com)

O Bairro - Temporalidade e Fluxo de Consciência


À semelhança dos 'club books', O Bairro consiste em encontros para diálogos a respeito de obras literárias. Um texto é escolhido, os participantes o adquirem, o leem e comparecem aos nossos encontros para exporem suas opiniões sobre a obra em questão. Neste mês de maio, daremos início ao Terceiro Ciclo do Bairro, denominado "Temporalidade e Fluxo de Consciência", que prevê a leitura das seguintes obras na seguinte ordem: No Caminho de Swann (Proust), Campo Geral, Buriti, Grande Sertão: Veredas (Rosa), Os Mortos, Retrato do Artista Quando Jovem (Joyce), Mrs. Dalloway (Woolf), Enquanto Agonizo (Faulkner), Perto do Coração Selvagem (Lispector) e A Montanha Mágica (Mann). 

Mediação: Murilo Coelho e Convidados.

Programação de Maio, Junho e Julho: Primeiro Volume de "Em Busca do Tempo Perdido" (No Caminho de Swann), de Marcel Proust. 

Teremos como Leitores Convidados: Tarik Alexandre e Caetano Pires.

Edição de Referência: Edição revista da editora Globo (a de capa azul), com tradução de Mário Quintana.

Datas:

Maio - Dias: 06/05 (ler até a página 102) e 20/05 (ler até a página 204).
Junho - Dias: 03/06 (ler até a página 306) e 17/06 (ler até a página 408).
Julho - Dia: 01/07 (ler até a página 512).

Os encontros ocorrem às quartas à noite, da 19 às 22 horas, no Palacete Wolf - Praça Garibaldi, 7. Em frente ao Cavalo Babão.

Inscrições, dúvidas e informações: mucoelho@fcc.curitiba.pr.gov.br

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Poiesis - Lírica Latina

O “Coletivo Atalante” o convida a participar do "Poiesis - Caminhadas Literárias" de 2015, onde abordaremos a Poesia. 

Palestra do dia 25/04:  Lírica Latina: Horácio, Propércio e Safo – Palestrante: Prof. Dr. Guilherme Gontijo. 

A descrição do evento assim como a sua programação completa está abaixo:

O Poiesis é um “Evento de Extensão” da UFPR que consiste em “Ciclos de Palestras”, ministradas por professores dessa mesma instituição, e aberta a todos os públicos (acadêmico e não acadêmico). Idealizado e organizado por membros do Coletivo Atalante, o Poiesis conta com a coordenação do professor de literatura brasileira Benito Rodriguez. Nesse ano, nosso tema vai ser a Poesia. Gênero literário supostamente marginalizado em nossa sociedade dos fins imediatos e objetivos, a poesia, não obstante, continua presente tanto nas universidades quanto nas redes sociais e nas ruas. São muitos também os Saraus Literários que ocorrem Brasil afora. Igualmente, ainda são muitos os jovens, adultos e idosos que escrevem seus poemas despretensiosamente (cujo objetivo destes escritos é, muitas vezes, dormitarem nas gavetas pessoais de seus escritores para serem, quando muito, compartilhados somente com os amigos mais próximos). O fato é que a poesia não está morta e nunca vai estar! Ou ao menos enquanto for possível haver infância na linguagem e no olhar, estes textos, que exploram ao máximo o potencial de condensação que a comunicação verbal pode alcançar, jamais desaparecerão. Linguagem associada aos mistérios do coração, da alma, do pensamento e do corpo, assim como linguagem apontada como origem da própria língua e do próprio pensamento, aurora do ser enquanto verbo, a poesia esteve sempre presente na história da humanidade: tecendo, laboriosamente, um jeito único de encarar e sentir o mundo e a vida; arquitetando, persistentemente, um discurso sempre visionário e intempestivo que se aloca nas trincheiras contrárias ao poderio das ideologias dominantes que empobrecem e encarceram a vida da língua.

Endereço: Prédio Dom Pedro I, Reitoria da UFPR – Rua General Carneiro, 460 – Anfiteatro do 11o andar.

Horário: 14 às 18 horas.

Certificado de 56 horas mediante frequência mínima de 70%.

Obs.: Todas as palestras ocorrerão aos sábados, das 14 às 18 horas, no Anfiteatro 1100 da Reitoria, Prédio Dom Pedro I.

Programação:

14/03/2015 – Charles Baudelaire – Palestrante: Profa. Dra. Sandra Stroparo.

28/03/2015 – João Cabral de Melo Neto – Palestrante: Prof. Dr. Waltencir Oliveira.

11/04/2015 – Walt Whitman – Palestrante: Profa. Dra. Luci Collin .

25/04/2015 – Lírica Latina: Horácio, Propércio e Safo – Palestrante: Prof. Dr. Guilherme Gontijo.

09/05/2015 – Rainer Maria Rilke – Palestrante: Prof. Dr. Mauricio Mendonça Cardozo.

23/05/2015 – Arthur Rimbaud – Palestrante: Prof. Ms. João Arthur Grahl.

13/06/2015 – Lake Poets: Coleridge e Wordsworth – Palestrante: Profa. Dra. Luci Collin.

15/08/2015 – Carlos Drummond de Andrade – Palestrante: Prof. Dr. Waltencir Oliveira.

29/08/2015 – Lírica Trovadoresca – Palestrante: Prof. Dr. Guilherme Gontijo.

12/09/2015 – Stéphane Mallarmé – Palestrante: Profa. Dra. - Sandra Stroparo.

26/09/2015 – T. S. Eliot – Palestrante: Profa. Dra. Luci Collin.

17/10/2015 – Wislawa Szymborska – Palestrante: Prof. Ms. Piotr Kilanowski.

07/11/2015 – Manuel Bandeira – Palestrante: Prof. Dr. Waltencir Oliveira.

21/11/2015 – Fernando Pessoa – Palestrante: Profa. Dra. Patricia Cardoso.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Shock Corridor (1963) de Samuel Fuller


cinema de Fuller é isto: in your face, cru no tratamento das personagens e pouco preocupado com a susceptibilidade do espectador. "Shock Corridor" (1963) começa sem grandes contextualizações sobre quem é o protagonista ou como foi este levado a pensar pôr em risco a sua sanidade mental por causa de um prémio prestigiante... Falamos de um jornalista que não conhecemos de lado nenhum, mas que Fuller nos apresenta no momento mais decisivo da sua carreira tal como da sua vida: infiltrar-se, sim ou não, num hospício fazendo-se passar por louco para saber quem foi o autor material do homicídio de um dos pacientes, de nome Sloan.

A determinação do protagonista em ir para à frente com plano tão insensato leva a melhor: de súbito, "Shock Corridor" transforma-se numa espécie de reportagem filmada sobre a viagem que Johnny Barrett faz pelo corredor (sem fim...) onde param algumas das mentes mais desequilibradas da América. E uma delas bem que podia ser vista como a metáfora perfeita para o temperamento crítico de Fuller: o negro racista, supremacista, segregacionista, que sonha a cores (!). "America for americans", grita ele em plano contra-picado, instantes antes de colocar na cabeça um capuz do Ku Klux Klan. Onde foi Sam Fuller buscar os balls para filmar esta cena em 1963? A ironia sulfurosa com que tratava os temas mais incandescentes da sociedade perturbou muita gente e provavelmente impediu que Fuller fosse considerado em vida justamente como um dos maiores cineastas norte-americanos.

O negro nazi - ou a forma como a cor interrompe violentamente o preto-e-branco - simboliza de algum modo a absoluta rejeição - era quase uma alergia... - à crítica unidimensional e maniqueísta (estilo preto no branco) que Hollywood fazia da realidade norte-americana. Ao mesmo tempo, os espaços de cor em "Shock Corridor" são mais opressivos que o preto-e-branco do asilo de loucos, que, por sua vez, se vai tornando lentamente não numa prisão mas num lugar de libertação para a catatonia (o verdadeiro "eu"?) de que Barrett desconhecia padecer.

Afinal, quem está louco aqui: os que passam os dias a apodrecer naquele corredor, sem fazer nada, ou os que lá fora estão prontos a abdicar da sua integridade (moral e física) por causa de um Pulitzer? O público de 1963 terá ficado chocado com o pessimismo impiedoso de Fuller e a forma como este filmou a passagem de um homem (pretensamente) são para um estado de total apatia (pretensamente insana).

O público de hoje não se sentirá melhor: a construção dramática de "Shock Corridor", a truculência intemporal da sua mensagem, a montagem alucinante de som e imagem, tal como a forma animal e crua como Fuller pega na câmara (exemplo da cena da luta entre Barrett e Wilkes) fazem com que este filme se mantenha mais fresco hoje do que a maioria das sátiras jornalísticas que o sucederam. Nem mais: corajoso e brutal, ontem como hoje.

Luís Mendonça
(Retirado de http://cinedrio.blogspot.com.br/2008/12/shock-corridor-1963-de-samuel-fuller.html)

Cineclube da Cinemateca: “4:44 – O Fim do Mundo” de Abel Ferrara

Neste sábado, dia 25, excepcionalmente às 14h, o Cineclube da Cinemateca exibe "4:44 – O Fim do Mundo" encerrando o ciclo Abel Ferrara. Em maio o cineasta estudado será Pedro Costa. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
“4:44 – O Fim do Mundo” de Abel Ferrara

  Cisco e Skye (Willem Dafoe e Shanyn Leigh) são um apaixonado casal nova-iorquino, com vários projetos pela frente. Hoje vivem o penúltimo dia das suas vidas, pois às 4h44 da próxima madrugada todo o planeta Terra vai colapsar. O que eles – e os outros sete bilhões de seres humanos – estão à espera durante as próximas horas é a extinção total da vida no planeta. Com o peso desta informação e conscientes de que nada se pode fazer para evitar, terão de viver o pouco tempo que lhes resta e encontrar uma maneira de lidar com o significado de tudo isso…

Serviço:
25 de abril (sábado)
Excepcionalmente às 14h
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 21 de abril de 2015

Cineclube Sesi: "Paixões que Alucinam" de Samuel Fuller

Nesta quinta-feira, dia 23, o Cineclube Sesi exibe "Paixões que Alucinam" dando sequência ao ciclo Samuel Fuller, que contará ainda com "Cão Branco" (30/04).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta:  "Paixões que Alucinam" de Samuel Fuller
 
 
O presunçoso e respeitado jornalista Johnny Barrett (Peter Breck) compromete-se a resolver um assassinato cometido num hospício. Para tanto, ele se interna como louco na própria instituição, mesmo sob protestos da namorada, a stripper Cathy (Constance Towers). A princípio, o jornalista sente prazer em simular sua loucura, mas, aos poucos, perde sua lucidez em contatos com os outros internos, principalmente com os que testemunharam o assassinato.

Serviço:
dia 23/04 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)

domingo, 19 de abril de 2015

O Estranho Caso de Angélica


(2010, Manoel de Oliveira)

Em seu belo texto sobre Manoel de Oliveira, “Uma nova aventura lusitana”, Inácio Araújo afirma, referindo-se às culturas do passado que retornam e se presentificam ao longo de toda a filmografia do diretor, que em seus filmes “o tempo não existe, não o tempo cronológico (…) o tempo se concentra, tende à inexistência ou mesmo a um certo tipo de insignificância”. O Estranho caso de Angélica não é exceção. E o que volta do passado aqui é certo imaginário ou sensibilidade desenvolvidos à época do Romantismo. Como em tantos outros filmes de Oliveira, parece que estamos, em Angélica, em pleno século XIX (uma espécie de interesse constante do diretor), embora seja um século XIX com automóveis modernos e uma máquina fotográfica perfeitamente a cores – o tempo cronológico não importa, afinal.
Ora, não seria Isaac, o fotógrafo e leitor de filosofia recluso em seu quarto, uma espécie ou variante de Werther? Se lembrarmos bem, este apaixonado suicida só deixava de lado o mergulho em suas leituras e o quarto da estalagem onde estava hospedado para olhar a natureza e desenhar suas singularidades (até conhecer Lotte, claro). Eram desenhos rápidos, à mão, que tentavam captar o instante do sol batendo na grama, segurar a marcha atroz do tempo, etc… fotografias, enfim. A comparação é importante, porque é justamente este personagem, Isaac, que poderá – ou estará apto ou predisposto – a enxergar como viva uma mulher que acabou de falecer. Como se sabe, a grande revolução do Romantismo contra as hierarquias da beleza clássica foi estabelecer que “tudo fala”: uma mera pedra, uma árvore, uma pequena casa vulgar, um defunto, tudo faz parte da opacidade misteriosa e imanente das coisas do mundo e tudo pode ser elevado a objeto da arte, tudo esbanja significados inimagináveis, todos os objetos podem ser portas para uma transcendência sublime. O que estas coisas nos escondem? Que verdade essencial há em seu mistério? A condição melancólica do romântico era olhar o mundo a partir dessa dúvida permanente. E é o que acontece com Issac, que lança olhares tristes para o lado de fora da janela (como nas pinturas de Friedrich) e que, como ele mesmo afirma, se interessa pelas coisas que estão prestes a desaparecer, como um grupo remanescente de trabalhadores rurais que logo serão substituídos por máquinas e que ele fotografa.
Oliveira precisa desse personagem – o retorno a esta “vertente romântica” se justifica porque o cineasta português faz parte, junto com tantos outros diretores que estão no topo do debate cinéfilo contemporâneo, de uma busca justamente pela transcendência que as coisas opacas e misteriosas do mundo podem dar a vislumbrar, através da imagem. Ora, essa é a “verdade” (que alguns chamam de “real”), fugaz como um raio, que tanto persegue os personagens (de diferentes épocas) de Non, ou a vã glória de mandar, que tanto inquieta Leonor Silveira (que, sempre ótima, interpreta a mãe de Angélica neste último Oliveira) em Espelho mágico; é ela que paira no trágico passeio pelas “civilizações” de Um filme falado, é ela que permeia os passos de Michel Picolli (e seu caminhar na escada no último e devastador plano do filme) em Je rentre la maison, etc, etc. É essa busca utópica e “sublime” do cinema – portanto em certo sentido modernista – de Oliveira que faz com que aqueles que tanto comemoraram a vitória de Apichatpong em Cannes repitam que ele, com 102 anos, é mais jovem e interessante que tantos outros cineastas por aí.
Tal busca, em Angélica, é empreendida através do entrelaçamento de dois caminhos, ou duas camadas que o filme traz: há em primeiro lugar a “historinha” que o roteiro desenvolve – como sempre em Oliveira de maneira distanciada, paródica, cínica e humorada, através das interpretações graciosamente afetadas dos atores, do pastiche com a “ingenuidade” do primeiro cinema, etc – ; e há, em segundo lugar, quando a imagem apresenta a materialidade das coisas em sua plena singularidade opaca e ininteligível para nós. É aí que esse filme sobre fotografia cria um certo “efeito-fotografia” na imagem cinematográfica (em movimento): o espectador deve aí enfrentar todo o mistério do passar irrefreável do tempo (ou, como diria Inácio, sua “não existência”), daquilo que as coisas às vezes, rápido como um relâmpago, podem, ou não, nos revelar; deve esboçar, talvez, um punctum (se lembrarmos do Barthes de Câmara clara). Criar esse “efeito-fotografia” – também através de uma decupagem que transforma o olhar de Isaac mesmo em uma câmera fotográfica através da persistência de planos subjetivos dele (lembrar de sua entrada na casa de Angélica, quando capta todos os detalhes da sala) – tem seus riscos: o espectador pode permanecer apenas na primeira camada, na “historinha”, e enxergar o filme como algo completamente banal.
Contudo, nosso caminho é preparado: do mesmo modo que Isaac, e apenas Isaac (que tem em seu oposto completo a simples, simpática e funcional dona de estalagem), muda de postura com relação ao mundo por causa da imersão em suas leituras, o roteiro de Oliveira, os poemas e citações que o fotógrafo declama (“ó, tempo, detêm-te!”, etc), a conversa à mesa do café (uma das melhores sequencias do filme e oliveiriana por excelência – notar o brilhante Luis Miguel Cintra, de cabelos brancos) sobre a fantástica natureza da matéria – referência clara a Epstein, como o nome da loja de fotografia do primeiro plano, “Foto Genia” – tudo isso como que nos “ensina” a olhar as outras imagens do filme de outro modo. Eis que o que fica em nossas cabeças forte e persistentemente não é a imagem de Angélica – um cadáver sarcasticamente sorridente e sem nenhuma aura – mas o sol batendo nos trabalhadores que levantam poeira ao cavar, o gato que olha entretido para o passarinho voando na gaiola, o plano geral da cidade que Isaac olha detidamente pela janela, o som misterioso do caminhão que passa toda manhã pela frente da estalagem (, pouco antes de morrer, ele apenas os escuta, sem vê-los). Nesse sentido, a sequencia mais incrível do filme – um travelling mostrando a sequencia de fotos (em que se alternam Angélica morta e os trabalhadores rurais) penduradas no varal de Isaac – pode resumi-lo: o que acontece quando se justapõem – quando se monta – uma linda jovem morta e alguns trabalhadores rurais cuja atividade está prestes a se extinguir, que significados eles, em todo seu agressivo mistério, podem permitir que surjam? Não coincidentemente, voltamos à pergunta que está presente na diegese e na mise-en-scéne de Tio Boonmee: que vida é possível se ter depois da morte?

André Antônio
(Texto original e imagens: 
http://www.filmologia.com.br/?page_id=2309)

sábado, 18 de abril de 2015

Jean-Luc Godard e Manoel de Oliveira (fragmento)


"O Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, e "Infelizmente Para Mim", de Jean-Luc Godard, estréiam nas salas de cinema parisienses quase ao mesmo tempo, em setembro de 1993. Nessa ocasião, Godard pediu para realizar-se um encontro entre ele e Oliveira, para lançar uma discussão "científica" sobre os dois filmes. (Alain Bergala)

Jean-Luc Godard – Nenhum problema, o som alto é a única concessão que eu faço ao público. Você conhece a definição que Jules Renard faz da crítica? "O crítico é um soldado de um exército que perde a batalha, que deserta e passa para o lado inimigo. E quem é o inimigo? O público."
Manoel de Oliveira – E você, conhece o que Bergman disse dos críticos? "Certos críticos me parecem pernetas que querem ensinar o caminho."
Godard – Mas foi como crítico que eu pedi esse encontro. Mais do que brincar de autor, eu preferi ir ver alguém e falar do filme dele, e eventualmente, talvez, ouvir ele falar do meu. Se isso pode favorecer os dois de uma maneira publicitária, vamos fazer. O cinema é crítico da realidade, eu sou muito clássico desse ponto de vista, e como cineasta de língua francesa, eu sempre me sinto crítico de cinema. Uma das grandezas da França foi sempre ter tido um ponto de vista crítico, mesmo que ela nada saiba disso. Todos os críticos de arte foram franceses, desde Diderot, passando por Baudelaire, Élie Faure, Malraux, ou seja, pessoas, escritores ou não, que tinham um estilo. O mau crítico é aquele que não tem estilo. Nos Estados Unidos, só houve dois críticos: James Agee e (Manny, ndt) Farber de San Diego, que é aliás muito ignorado. Já que os nossos dois filmes estréiam ao mesmo tempo, então eis a primeira pergunta que eu queria fazer: O que se chama "lançar" um filme? Por que é necessário que eles sejam lançados? Nós temos uma dificuldade tremenda a fazer entrar nossos filmes em tal ou tal lugar, e depois há pessoas que não fazer um grande esforço mas que, em todo caso, fazem o que é necessário para lançar ("sortir", sair, ndt) os filmes.
Oliveira – Em português, não é a mesma palavra, nem o mesmo jogo de palavras. Não se diz "sair um filme". Mesmo assim, é uma questão que me importa. É importante porque para mim é preciso mostrar o filme. O filme não está terminado até o momento em que a crítica foi feita. Um bom crítico, inteligente, atento, sensível, é o representante dos espectadores, ele vai completar o filme que, na minha opinião, não está terminado quando eu o termino, ele vai completá-lo. Essa dinâmica entre o espectador e a tela é de fato essencial, ela faz parte do filme. Eu digo: o espectador, e não o público. O público é algo abstrato, o espectador é pessoal.
Godard – O público é o espectador existente. É o espectador comercializado, o espectador que compra seu ingresso, que torna-se público. Existe entretanto uma parte dele que permanece espectador como o leitor. Se aquilo de que nós falamos fosse um filme, digamos que o espectador seria o roteiro, e que o público seria a realização do espectador, sua encenação (mise-en-scène). Mas às vezes eu me pergunto: se os filmes não fossem vistos, muitos dos meus realmente não o são, ou o são mal-vistos, até mesmo por mim... Acho que se faz filmes para uma ou duas pessoas.
Oliveira – Mas é suficiente.
Godard – Verdade. Mas eu gostaria de voltar a essa história de lançar/sair um filme que não é somente uma questão de palavras, mas também é. Deveria haver pequenos dicionários que nos dissessem em cada língua as palavras técnicas do cinema. Por exemplo, a cópia de filme que vemos nas salas de cinema, a cópia com a imagem e o som, em francês dizemos "copie standard"
Oliveira – Em português (de Portugal) também, cópia standard ou cópia síncrone.
Godard – Em inglês, é married screen, em italiano copia campione. Eu insisto com as palavras porque, por exemplo, os russos não têm a mesma distinção que nós entre o documentário e a ficção. Os filmes com atores se chamam "filmes interpretados", e o documentário, não obrigatoriamente sem atores, se chama "filme não interpretado". A própria palavra imagem: para os americanos, não quer dizer grande coisa. Eles usam picture, ou seja, fotografia. Eles nem têm palavra para televisão, eles são diretamente comerciais, eles dizem network (rede, ou rede de trabalho, literalmente) .Se prestarmos um pouquinho de atenção na língua, quando dizem que um de seus filmes "sai" (é lançado), você tem a impressão de que você sai de fato ou que você já o fez sair?
Oliveira – Eu diria "sair" como se diz "sair com uma mulher", o que em português significa levá-la para a cama.
Godard – Agora, para os bons filmes, o lançamento (sempre "sortie",ndt) tornou-se "por aqui a saída", é uma maneira de livrar-se deles.
Oliveira – Nossos filmes acabam se tornando também filmes de festivais. Os festivais servem para mostrar a diversidade dos filmes a uma diversidade de públicos. É um contraste de diferentes realizadores, países, hábitos. É isso, mas isso não é tão mal assim.
Godard – Acho que você está descrevendo uma época passada, de que eu mesmo conheci o fim. Eu achava que era o começo e na verdade era o fim. Era uma época em que os festivais efetivamente ajudavam as pessoas a se encontrarem, a discutir sobre cinema, discutirem o que gostariam que ele se tornasse. Tudo isso mudou, o cinema mudou também. Agora, os cineastas reclamam de solidão, mas se eles não falam mais, se eles não discutem mais, é problema deles. Hoje, há cada vez mais festivais de cinema. Cada um, individualmente, tira o proveito que pode, tanto o mais potente como o mais fraco. Mas me parece, em geral, que o festival de cinema é feito para perpetuar a idéia do cinema tal como ela é importante para a mídia ou para a televisão, essa idéia do mito do cinema do qual Manoel viveu todo o século e eu vivi somente os dois últimos terços. Você, talvez, sinta uma diferença entre os anos 20, quando não havia festivais, e hoje?
Oliveira – O fenômeno novo é o das cinematecas, não como instituições – isso existe há muito tempo –, mas porque há cada vez mais espectadores. É o que acontece em Lisboa, eles vão na cinemateca ver filmes que não chegaram às salas de exibição. É interessante porque é preciso de fato gostar de cinema para ir vê-lo num cineclube ou numa cinemateca...
Godard – Essa história de encontro e diálogo, era isso que eu queria te dizer: como crítico, o que eu espero não é que me digam boas coisas, mas só tem gente que diz ou escreve: "Seu filme é terrível, é fantástico, é genial, é extraordinário!" Aí eu pergunto a elas: "É? O que é tão extraordinário?" E elas me respondem: "Ah! Oh!", eles não têm mais palavras, eles nem repetem "É extraordinário". Ao passo que se me fizer uma observação de que é muito fraco, que há erros, então eu acredito que existe aí uma chance para dialogar: será que você pode me dizer quais são os erros? É assim que testamos o fato de que hoje os críticos não querem mais falar e que os cineastas não gostam que os critiquem. Mas eu, que fui formado como crítico, a única necessidade que eu tenho verdadeiramente é que me digam: aquilo ali não está bom. Você tem necessidade que te digam "Aquilo não está bom", isso te incomoda? Porque eu tenho coisas a dizer sobre o que eu não gosto no seu filme mas eu não quero te indispor.
Oliveira – "Sou orgulhoso quando me comparo, sou humilde quando me consideram." É uma bela frase do seu filme.
Godard – São os santos que dizem isso, ou as pessoas honestas.
Oliveira – Eu sou pessimista. Quando alguém me diz que alguma coisa não funciona no meu filme, eu sinto. Com o tempo, entretanto, eu pensei ter me tornado insensível. Mas depende do lugar em que me atingem. Se eu tenho um machucado no punho e me atingem o bíceps, nada acontece. Mas se essa mesma pessoa bota o dedo na ferida, aí eu grito.
Godard – É preciso saber dizer o que é bom e o que é ruim. Não se trata de dizer o sentimento que se teve, mas fazer a crítica técnica ou científica do filme. Só a Nouvelle Vague disse isso. Ela disse: esse travelling é bom e eis aqui por que achamos ele bom em comparação com aquele diálogo que é ruim. Hoje, isso se perdeu completamente. A noção de autor ganhou uma tal importância que agora quando se faz um filme até o seu assistente não te diz mais isso. O único que às vezes tem um pouco de coragem de dizer isso, o único com quem eu tenho bizarramente uma relação artística, é o produtor. Porque o produtor colocou dinheiro ou ao menos arriscou o dinheiro dos outros, e em nome desse risco ele ousa me dizer: "Jean-Luc, isso não funciona." E eu digo "Ulalá!", e penso. Ao menos, tenho uma possibilidade de reflexão, me ancoro melhor. Se os cientistas são muito fortes hoje, é porque eles são os únicos que ainda trocam críticas. Um astrônomo diz: "Eu vi um eclipse da Lua, eu fotografei." O outro diz: "Então mostra a foto." Ele observa e constata: "Mas aqui dá pra ver a Lua! E você falava de eclipse?". E o outro diz: "Ah!, sim", ele fica abobado, mas ele recomeça. Existe um momento na arte, na crítica de arte, por exemplo entre Baudelaire e Delacroix, em que essa confrontação dos críticos deve acontecer. Senão, não avançamos. É a única coisa de que eu tenho necessidade, a crítica. E eu não tenho.
Oliveira – Eu tenho antes necessidade de meios para fazer filmes. Não sei nunca o que vai ser um filme. Tenho uma decupagem, tenho atores, cenário, mas não tenho filme. Durante a filmagem, a realização vai mudar a cada instante a configuração dessa nebulosa. O concreto aparece apenbas no momento em que eu vejo as tomadas do filme. Detesto ver as tomadas, porque sempre me sinto desolado.
Godard – Acho que isso sentimos todos. Acho que só Hitchcock ficava contente vendo suas tomadas. Então era isso que, como crítico, eu gostaria de dizer sobre o seu filme: de primeira eu embarquei com o filme e depois por um momento em me soltei, e logo depois comecei a pensar em alguma coisa. Eu pensei, ah, não é tão bom, e logo depois, ao mesmo tempo eu sonhava, pensava em Newton, na gravitação. Depois eu voltei a mim, e nesse exato momento, no diálogo do filme, alguém pronuncia a palavra gravitação. E aí eu falei para mim mesmo: finalmente, é um belo filme, é preciso que eu vá vê-lo de novo.
Oliveira – É efetivamente o tema do filme: a gravitação e as leis do peso.
Godard – De um ponto de vista mais científico, mais técnico, se eu tivesse sido assistente do seu filme, eu teria dito: "Você tem certeza, me explique melhor para que eu possa melhor assisti-lo, por que você pegou essa atriz para encenar Emma jovem (Cecile Sanz de Alba) e por que para Emma mulher você pega uma outra (Leonor Silveira) com uma diferença tão grande? Foi por vontade própria, aceito?" Essa é minha crítica: a segunda atriz não está à altura da primeira, ou ao menos, quando a segunda atriz aparece, o filme cai, é a gravitação. Depois volta.
Oliveira – A resposta é muito simples: no começo, eu escrevi o filme para a segunda atriz, Leonor Silveira. Essa mulher estava em estado de crise, de depressão. Meu produtor, Paulo Branco, tentou me dissuadir de escolhê-la. Existe, no livro O Vale do Abraão, de Agustina Bessa-Luís, o livro que eu adaptei, uma frase muito bonita que diz que os cabelos de Emma "caíam sobre o ombro como uma mancha de tinta negra". Para filmar essa frase, eu fiz pintar os cabelos de Leonor, que são loiros. Ela estava traumatizada com isso. A cena ficou ruim. Era preciso então encontrar uma outra atriz para encarnar Emma adolescente. Essa é a resposta técnica à sua crítica técnica. Eu queria acrescentar que um filme é sempre acompanhado de acaso e de sorte. É isso que me leva adiante: todos esses pequenos acontecimentos que aparecem no momento da realização. É um fenômeno que eu não entendo bem e que pode engendrar tanto o pior como o melhor. Não existe filme sem acaso. É uma criação, o filme é uma concepção de uma única pessoa, é muito difícil entrar nisso.
Godard – A criação pode ser preparada?
Oliveira – Pode ser preparada, mas não reparada. Como a vida. As coisas estão lá, esperando que nós as filmemos. O que você vai querer reparar? A fome, as crianças que morrem na África, sim, isso é importante, precisa ser reparado, merece o público mais vasto possível. Mas um filme não, é uma confusão tão grande que eu me sinto pequeno diante de mim mesmo. Dito isso, aceito a sua crítica a respeito do seu abandono do meu filme e sobre o retorno: é preciso ser muito sensível para poder entrar e sair do filme sem se perder. Efetivamente, é a lei da gravitação.
Godard – Eu acredito com muita modéstia que os cineastas da Nouvelle Vague fizeram cinema partindo do museu. Descobrimos o cinema na cinemateca. Nascemos lá. Claro, tínhamos visto Chaplin quando éramos menores, mas ninguém entre nós disse aos quatro anos de idade, "Eu vou fazer cinema" depois de ter visto Carlitos Bombeiro. Logo, eu sempre tive uma referência na cabeça. E eu penso assim que a obra tem mais importância que o homem. Não é algo evidente para todo mundo. A mulher faz obras abrigando homens. Tudo que o homem pode fazer para se encontrar em pé de igualdade relativa é fabricar obras: pintura, literatura ou política, guerras, desemprego, comércio. No fundo, o homem me interessa pouco. O homem Manoel de Oliveira me interessa pouco, Se nós habitássemos na mesma cidade, lado a lado, eu acredito que não encontraria com você mais do que estamos acostumados a nos encontrar. Claro, quando nos víssemos, falaríamos melhor dos filmes, mas não muito mais. O que me incomoda mais hoje é que os meios de comunicação desenvolveram a noção de personalidade antes da noção de pessoa. Na obra há a pessoa, ha pessoa há a obra. Há pessoas que não fazem obra, mas cuja vida, particularmente as mulheres, é uma obra. Os homens são forçados a fazer obras porque muitas vezes eles não fazem nada. Digo em coro com Buñuel, os filmes são o que existe de mais importante para mim. Mas se eu devesse pôr em jogo a vida de uma criança e o futuro de um filme, eu não hesitaria um segundo: a criança vem antes do filme.
Oliveira – Naturalmente. Sob esse ponto de vista, eu digo também que a arte não é tão importante.
Godard – Mas então se isso não é muito importante, não vale a pena fazer. As mulheres são mais lógicas, eles fazem na vida. Não estou certo que podemos dizer tão facilmente que a arte não é importante. Principalmente hoje quando não existe quase arte e muitas crianças que morrem. Isso quer dizer que deixamos viver muita arte e sacrificamos as crianças?
Oliveira – A arte não é o artista. O artista, a posição de artista, é a vaidade do homem. Essa maneira de expor a visão do mundo, de dizer: "Isso vai, isso não vai", uma efusão de vaidade. É o rés do chão. A arte é mais elevada, mais interessante que o artista. Um filme é sempre mais inteligente do que seu realizador, como diz Straub. Essa maneira que o realizador ou o artista tem de sair para se expor, diz respeito somente à vaidade.
Godard – É também uma atitude de criança: "Olha, mãe, fiz um desenho."
Oliveira – Sim, também, mas muitas vezes esse desenho é bonito também. Essa diferença entre a arte e o artista é também a diferença entre a História e a arte. A História mostra a evolução dos povos, das civilizações, dos sentimentos, do gosto. A arte exibe a substância dessas evoluções. Nós somos todos responsáveis, mesmo se, como realizador, eu nada possa fazer. Como realizador, eu só posso fazer uma coisa, realizar filmes. É tudo. Entretanto, o artista, no momento em que cria, ele tem sempre razão. É sua ficção, a interiorização.
Godard – Ah, eu não acredito, tudo está fora.
Oliveira – Sim, mas antes. Mas, depois, tudo entra na cabeça para sair de novo. Por exemplo, frente a Infelizmente Para Mim, eu estou diante do filme como uma esponja que vai aspirar tudo.
Godard – Não tenho certeza se essa é uma boa imagem. Claro, existe um lado espetacular e poético que é a missão profunda do cinema. Mas essa missão só se aplica se houver primeiro experimentação, verificação, trabalho, aquilo que podemos chamar de aspecto documentário de um filme. Existe isso nos grandes artistas, em você, em Pialat, em Anne-Marie Miéville, Straub, Cassavetes, Visconti, Rouch, pessoas muito diferentes, eu às vezes. Eisenstein, por exemplo, não há ninguém mais abstrato e estilista, ou até estiloso, do que Eisenstein. Entretanto, se hoje devemos mostrar planos da Revolução de Outubro, não é nos cinejornais da época que encontramos, ou mais exatamente os cinejornais se servem das imagens de Eisenstein sobre a Revolução de Outubro, imagens que foram completamente encenadas. Quando lemos o diário de filmagem de Nanook de Flaherty, que acreditamos ser um documentário, aprendemos que Flaherty pagou a seus esquimós, brigou com eles, os forçou a pescar peixes todos os dias mesmo que eles não tivessem vontade; ou seja, ele fez uma equipe de cinema com ele e foi um etnólogo formidável. Existe então todo esse lado documentário, essa forma, se não de conhecer perfeitamente a história do cinema, ao menos de ter o sentimento de que, para muitos, se perdeu hoje. É preciso ter esse sentimento da história do cinema, um pouco como Joyce, que tinha um sentimento profundo da história da literatura, e que sabia que, quando escrevia uma frase, certas de suas palavras tinham sido inventadas no tempo dos latinos, outras na Idade Média, e que ele, Joyce, no momento em que escrevia essa palavra, normalmente com toda essa bagagem e esse passado que ele sentia, ele estava na idade moderna da literatura, na sua idade adulta, se assim podemos dizer. No cinema, muito rápido, sob a influência americana que o mundo aceitou, uma parte desse trabalho documentário foi abandonada. Fomos para o espetacular de primeira, que era entretanto a missão final, digamos, a missa do filme. Nos filmes, hgoje, faz-se a missa, e depois a oração. Os grandes artistas, os artistas honestos, , fazem primeiro sua prece, e logo depois existe a missa, com o público, mais ou menos fiel. Os americanos regulamentaram a missa. O que importa para eles, na missa, é a coleta ("quête", que também quer dizer "busca", ndt): uma boa missa é uma missa em que a igreja está cheia, em que a coleta é grande.
Oliveira – A busca ("quête") é o tema de meu próximo filme.
Godard – Eu não faço busca ("quête"), mas pesquisas ("enquêtes"), me contento em ser um delegado. Eu registro as queixas. A crítica deve se exprimir sobre a oração, não sobre a missa. Sobre a missa, não se pode dizer nada. Ou então se diz: "Belo espetáculo, magnífico". A oração é um exercício também, é como o treinamento do esportista, os tons do pianista. Quando se é crítico, deve-se criticar os tons e o que podem dar esses tons.
Oliveira – O espetáculo e a missa não me interessam. O importante é a vontade de fazê-la. Você tem vontade de fazer cinema, eu tenho vontade de fazer cinema, como nesse momento eu tenho vontade de fazer xixi. Bergman dizia: "Eu faço filmes como alguns ingleses vão sozinhos caçar na floresta. Vestem-se, montam guarda com seu fuzil. Mas todas as manhãs, eles fazem a barba pelo seu próprio prazer." Eu acho isso muito bom. É preciso refletir sobre isso, sobre a vontade. Está em você, como um pintor que faz pinturas que ninguém vê, mas que não consegue impedir-se de fazer. A vontade é como uma flor magnífica que conduz sozinha ao coração da floresta virgem e que leva o desejo do fruto nela mesma, por ela mesma. Se ela encontra um olhar que a considera e que a julga bela, ela se realiza, ela se torna uma beleza notável e notada. mas muitas vezes esse olhar chega muito tarde, às vezes a floresta já foi queimada ou desmatada para ganhar terreno. Entre mim e você, há muitas diferenças, felizmente. Diferenças de língua, de país, de cultura. Você escolheu um cinema um pouco provocador e que destrói a ordem tradicional do relato. Você pesquisa a partir do caos, para imprimir desordem na ordem. Eu procuro colocar a desordem em ordem – inutilmente, reconheço –, mas eu pesquiso. Acredito que essa é a diferença entre nossos filmes: eu estou muito próximo do cinema em geral e você é um cinema particular.
Godard – Eu diria que fazemos a mesma coisa, mas que você consegue chegar lá e eu não consigo muito bem. Todo mundo, naturalmente, na imagem da ciência, parte do caos para colocar uma certa ordem. É essa "certa ordem" que é mais ou menos incerta, a qual se chega mais ou menos. Em momentos, não podemos, não conseguimos. Em Infelizmente Para Mim, é um pedaço de tempo que é extraído. Num outro filme, será outro pedaço. A partir de um pedaço, de uma foto, eu me faço um mundo. Vendo certos pedaços de seu filme, pensei em momentos do Van Gogh de Pialat, de que eu gosto muito. Para usar palavras simples como interior e exterior, mesmo se não faz muito sentido distingui-las, eu diria que Pialat, em seu Van Gogh, ficava no exterior, e entretanto ele só falava do interior. Ele estava mais para a tradição de Visconti, nesse aspecto. Você seria mais o contrário. Você permanece no interior. Ora, o interior, no cinema, não podemos mostrá-lo, só podemos senti-lo, mas ele não é visível, senão não é mais o interior.
Oliveira – Podemos filmar até a alma.
Godard – Isso. Quando eu era criança, diziam: a galinha é composta de interior e exterior. Quando tiramos o exterior, vemos o interior, e se tiramos o interior, vemos a alma. Eu ousaria dizer que você filma o interior de costas, mesmo que filmando as pessoas sempre de frente. O que num dado momento me incomodou no seu filme sendo dada essa aposta rigorosa e potente, é felizmente uma imperfeição ainda humana que faz com que você tenha ainda necessidade de fazer outros filmes. O que me incomodou foi que não houvesse visões de lado, que a câmera estivesse muito perto do projetor. A câmera não é feita para sempre coincidir com o projetor. O projetor transmitirá. É como o operador de raios-x. Ele não se contenta com uma chapa de frente, ele radiografa também de lado, de costas, na diagonal. Entretanto, no final, no momento da projeção, serão todas imagens planas. Sem dúvida, o que eu te digo aqui é uma imagem, mas nós somos pessoas de imagem. Isso não quer dizer que a c6amera deva se deslocar o tempo todo. É isso que faz com que, por momentos, no seu filme, haja buracos, o que os espectadores, os maus espectadores ou, dito de outra forma, o público de hoje, chama de "longo". Isso não quer dizer que eu reclame que um filme seja longo, eu fico até feliz que um filme seja longo se, no começo, eu percebo que há boas coisas. Eu posso cochilar tranqüilo, certo de reencontrá-lo. É isso que eu falo sobre ter uma discussão científica sobre um filme.
Oliveira – Eu coloco a câmera como você mesmo coloca, no lugar preciso em que eu acredito que ela deve estar. Por que ali e não aqui? Não sei por quê.
Godard – Seria interessante se se dissesse um pouco por quê.
Oliveira – A força vem da fixidez. Foi Bresson que me ensinou isso com O Processo de Joana d’Arc. Podemos também chamar isso de objetividade.
Godard – Eu tenho a impressão de que os cineastas, bons ou ruins, eles têm uma idéia, uma vontade, bom, e eles procuram pessoas com dinheiro suficiente para realizar essa vontade. Eles trabalham como uma pessoa que diz: essa noite, eu tenho vontade de comer espaguete à bolonhesa. Então o sujeito observa quanto dinheiro ele tem no bolso ou ele pede à sua mulher ou a um amigo para fazer espaguete à bolonhesa. Honestamente, eu sempre fiz o contrário. O produtor me diz: "Tem Depardieu, talvez seja o momento de fazer um filme com ele". Como não somos ricos, dizemos sim, sim, talvez ganhemos dinheiro logo depois. Depois, assinamos o contrato. Depois ainda é preciso fazer o filme, infelizmente para mim!

(...)

 (originalmente publicado no jornal Libération, dias 4-5 de setembro de 1993, e depois republicado em Godard par Godard, organizado por Alain Bergala, v.2, Éd. de l’Étoile, 1998. Encontro organizado por Gérard Léfort. Tradução de Ruy Gardnier)

Texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/53/godardoliveira.htm