por Jacques
Lourcelles
Henry King é um dos
cinco centenários do cinema americano, ao lado de Dwan, DeMille[1], Ford, Walsh
- formando os cinco um condensado do que o cinema americano, e talvez todo o
cinema, nos deu de melhor, nesta época um tanto morosa. Centenários em obras,
se não em idade, suas longevidades, pontuadas de filmes apaixonantes em todas
as épocas, contêm já uma indicação da sua generosidade criadora, e um antídoto
à morosidade.
Destes cinco gentlemen non maudits[a], que não se preocuparam com
os signos exteriores da glória cinematográfica[2], King é o mais reservado, o
mais apagado. A sua carreira exprime à perfeição o apagamento típico do
realizador hollywoodiano que se está nas tintas para inscrever o seu “nome
acima do título”, segundo a reivindicação bastante discutível de Capra. Mas se
pensarmos um instante na repercussão e importância histórica de tantos filmes
de King, nos fabulosos orçamentos de que muitos se beneficiaram, na liberdade
quase constante - e pouco habitual - de que King gozou durante os quarenta anos
da sua carreira no meio de uma das maiores entre as grandes companhias
americanas, e que lhe teria permitido, mais que tudo, destacar-se, este
apagamento é uma surpresa. De qualquer modo, ele manifesta no autor uma vontade
de recuo quase agarrada ao corpo, assim como uma higiene da criação mais que
recomendável hoje quando o realizador tem a tendência de se tornar a estrela
mais obstrutiva do circo cinematográfico. Esta reserva talvez o tenha
prejudicado, como impediu também de atrair para os seus filmes, e
principalmente para a sua continuidade, a atenção que mereciam. Mas como
criticar o que nele, mais do que um traço de caráter, é como uma marca da alma,
uma espécie de luz que cai sobre a obra e lhe dá, já, uma das suas dimensões?
Impossível, com efeito, abarcar num só golpe de vista, a extensão da obra de
King, tanto este parece ter querido apagar-se também, como criador, atrás da
multiplicidade dos objetos que estimularam a sua curiosidade. Um levantamento
topológico sumário desta obra mostrará rapidamente, quer no plano histórico e
geográfico, quer no social, a extraordinária variedade[3], surpreendente mesmo
num país onde, no entanto, os cineastas nos habituaram a ela. Mas quando
numerosos artistas esgotam uma parte da sua energia a fornecer ao espectador (e
à crítica) signos de reconhecimento, tranqüilizantes palavras de senha, King
não quis, por seu lado, senão compor uma espécie de Atlas do seu país e de
certas regiões do estrangeiro que também seja um livro de história por cujas
páginas circule, da mais remota época bíblica até aos nossos dias, todo um povo
de homens e mulheres de tradições, costumes, atividades e sonhos infinitamente
diversos.
Inaparentes à primeira vista, ou seja, não superficiais, as linhas de força que
percorrem nas suas profundezas este universo não são menos claras e
interessantes a relevar. No plano humano, King interessou-se profundamente por
dois tipos de seres, os humildes, o pequeno povo, os anônimos que desde a
origem dos tempos tecem a trama da história dos povos, e, a seu lado, por vezes
no meio deles, os gênios, os inventores, os sábios, os exploradores, os santos,
os grandes solitários, todos os que, de uma maneira secreta ou espetacular,
abalaram, nas suas épocas, um aspecto da face das coisas. No meio da sua
variedade, um movimento perpétuo anima esta obra que oscila de uma maneira
significativa entre estes dois pólos: gênio e humildade. E ninguém soube, sem
dúvida, mostrar tão bem como King a humildade própria do gênio e essa espécie
de gênio também que é preciso para se ser humilde. É que, longe de os opor,
King procurou em todo o lado o que pudesse unir estes dois rostos permanentes
da humanidade. Esse ponto comum, ele parece tê-lo encontrado, muitas vezes,
numa espécie de teimosa boa-vontade, saída das próprias entranhas das suas
personagens e que geralmente lhes torna a vida dura. Onde essa boa-vontade
acabará por levá-los: é essa a história deles, e a história comum dos filmes de
King, como veremos mais longe. O que há de comum também entre estas duas
categorias de seres, é aparecerem, graças a essa boa vontade visceral,
justamente como “indivíduos representativos”, designação que exprime a sua
dupla forma de existência. Indivíduos, ou seja, independentes, não tendo de
prestar contas senão a si próprios[4] - logo, representativos de si mesmos. Mas
representativos também da sua época e do lugar em que vivem: e se King soube
tão bem pintar as características de certo estado da América, de tal pequena
comunidade rural ou urbana, é que para ele a força de caráter das
suas personagens é o melhor cimento dessa comunidade, ao mesmo tempo que ela é,
na sua obra, a melhor introdução possível ao conhecimento dessa comunidade. Na
maior parte das vezes na sua obra, por uma osmose ao mesmo tempo poética e
realista (de que Na Velha Chicago [In Old Chicago,
1937] fornece o melhor exemplo), os conflitos íntimos das personagens refletem
e dizem diretamente respeito à vida da sociedade e do meio em que nasceram.
Esta obra ignora geralmente a distinção entre vida privada e vida pública e não
propõe descrição social que não seja moral na sua essência: com efeito, a
perenidade de todo grupo humano não pode ter para King outra justificação e
origem que não seja moral, a partir do que se vai organizar a expansão
documental de sua narrativa.
Também os gênios (inventores, exploradores etc.) conhecem esta dupla
representatividade. Representativos de si mesmos pela originalidade da sua obra
e da sua visão, eles não o são menos do seu tempo e do seu meio, porque mesmo
os mais solitários deles respondem, no seu destino, a um apelo inexprimível do
público e do mundo que o rodeia. Essa ligação ao mundo é, no seu caso, ainda
mais forte e potente que para o comum dos mortais, porque as personagens que
mais interessam a King são aquelas a quem é estranho qualquer egoísmo. Entre as
conquistas que a ambição suscita, ele interessa-se, com efeito, quase
exclusivamente às que atuam sobre, e transformam profundamente, a realidade
social, tal como as energias individuais o apaixonam principalmente na medida
em que elas são capazes de desencadear essas transformações de alcance
universal (o barco a vapor sucedendo o barco à vela em Na Antiga Nova
York [Little Old New York, 1940], desenvolvimento do sistema de
seguros pelo mundo em Lloyd’s de Londres [Lloyd’s of London,
1936], novo estilo de música popular conquistando o coração das multidões
em Epopéia do Jazz [Alexander’s Ragtime Band, 1938]).
Por vezes gosta de imaginar que é uma associação particular entre os gênios e
os humildes que permitiu uma dessas transformações (cf. a idéia soberba, mesmo
que inteiramente romanesca, de ter tornado possível em Na Antiga Nova
York a concretização dos sonhos do engenheiro Fulton graças às
economias e à devoção apaixonada da dona de uma taberna).
King é também o pintor das vocações sublimes, dos apelos misteriosos vindos das
profundezas da terra ou do céu. Como tal, ele dá muitas vezes aos seus filmes o
ar de uma viagem de exploração. Exploração rumo a terras distantes, talvez
inacessíveis, do mundo visível e do mundo invisível que para ele fazem um só;
exploração também aos confins do ser, ao limite das possibilidades humanas e
cuja principal razão de ser é justamente fazer passar uma interrogação sobre
esses limites. Para lá das peripécias espetaculares da narrativa de aviação
que, aliás, King não mostra muito, Almas em Chamas (Twelve
O’Clock High, 1949) liberta através de cada uma das suas seqüências, uma
reflexão sobre os limites da resistência humana[5], esta resistência fornecendo
a prova concreta da força suprema que pode exercer a vontade moral ou
espiritual de um indivíduo sobre os meios físicos que a natureza pôs à sua
disposição. Mas esses limites existem e a sua ultrapassagem pode provocar a
pulverização da personalidade, uma destruição do equilíbrio fundamental do ser,
como o indica o aviso contido no anticlímax final do filme (a crise nervosa que
fulmina Gregory Peck após o seu triunfo). É também o propósito do filme sobre
Stanley arriscando apagar-se na sua busca por Livingstone, ou o do filme sobre
Bernadette Soubirous mudando de identidade à custa de um esforço espiritual que
põe a sua existência em perigo.
Uma outra ultrapassagem dos limites humanos existe nos filmes de King através
de uma experiência vivida, desta vez de preferência pelos anônimos desta obra.
Esta experiência é a do amor partilhado. É verdade que King não inventou o
gênero “love story”, tão velho como o próprio cinema, mas, com o talento e
intensidade que pôs a ilustrá-lo, ser-se-ia tentado a dizer que é como se assim
fosse. O amor vitorioso sobre os anos de ausência (Sétimo Céu [Seventh
Heaven, 1937]), a pobreza (O Presente dos Magos [The Gift of
the Magi], episódio dePáginas da Vida [O. Henry’s Full House,
1952]), a diferença de condições sociais ou de raças (Ramona, a Aventura de
Ser Mulher [Ramona, 1936], Suplício de uma Saudade [Love
Is a Many-Splendored Thing, 1955]) é um dos seus temas privilegiados. Ele
viu, em particular, no amor do par, aquilo a que Chardonne pôde chamar “o
sobrenatural mais humilde”, uma superação de si misteriosa e cotidiana na
comunhão com o outro. Por vezes esse amor, para dar os seus frutos, tem de encarar
a separação definitiva do objeto amado, como no caso de Stella Dallas obrigada
a sacrificar à felicidade da filha, a felicidade de viver com ela, e
experimentando, por isso, um sentimento de frustração e desespero quase
intolerável. Aqui, neste movimento de balança, que transforma a plenitude em
insatisfação no limite do suportável, estamos no coração do universo de King.
Com efeito, o seu rigor moral e o classicismo do seu estilo não escondem a sua
verdadeira natureza.
Antes de tudo, é um moderno. Como historiador de costumes, ele soube ver que o
destino dos estados e das sociedades não pode ser apreendido senão através da
descrição das massas anônimas, mas de forma alguma indiferenciadas, que os
compõem. Esta intuição da importância do homem da rua permitiu-lhe fazer
reviver, com a ajuda de traços familiares, justos e profundos, todos os tipos
de comunidades. Como pintor de homens ilustres e de certos destinos obscuros,
mas excepcionais, ele adora retratar as vidas densas e cheias, que assim se transformaram
pela ação, a criatividade, o sentimento religioso ou o amor. Mas ele mostrou
que essa plenitude, alcançada de formas diversas, desembocava infalivelmente
num vazio do ser que é, sem dúvida, o apanágio do homem - e a sua maldição -
uma vez que se ultrapassem os limites usuais da sua experiência cotidiana.
Assim como o ar rarefeito dos cumes impõe um meio experimental e condições de
vida no limite do tolerável. Deste ponto de vista o único dos jovens cineastas
atuais que segue os seus passos é Herzog no seu filme sobre Aguirre.
Artista completo, King terá sido o poeta dos que encontram - por vezes depois
de bastantes dificuldades - o seu lugar neste mundo: almas simples cujas
atividades e sonhos moldam pouco a pouco o meio ambiente (camponês na terra
em David, o Caçula [Tol’able David, 1921], artista
preferindo sua pequena cidade sem prestígio a uma célebre em Cavalgada
de Paixões [Wait Till the Sun Shines, Nellie, 1952]; pastor
pregando nas montanhas de Um Homem e sua Alma [I’d Climb
the Highest Mountain, 1951]). Mas terá sido muito mais o poeta daqueles a
quem o mundo nada tem para oferecer; poeta dessa parte do homem que não é deste
mundo. Literalmente, há um aspecto da sua obra que se poderia situar entre
estas duas frases de Bataille (“O homem é o que lhe falta”) e de Marcel Raymond
(“Há uma falta de ser que nos é consubstancial”)[6]. Pintor da grandeza, da
concentração, da sede de absoluto, mas também dos abismos que estas rodeiam,
fascinado pelos construtores, mas sabendo sobre que tapete de poeira desliza a
sucessão dos séculos, King terá sido ao longo da sua longa carreira o contrário
de um cineasta triunfalista.
Fato ainda mais notável: essa abordagem do vazio, do abismo do ser para que
conduzem certas experiências do homem, King recusou-se sempre a mostrá-la num
estilo grandiloqüente, tonitruante ou barroco. Para ele, a calma do estilo
clássico, cuja perfeição no cinema existe desde meados dos anos trinta, basta
para isso. Pode-se ver na sua obra, levada a um ponto de espantosa expressividade,
esse sentimento de ubiqüidade que provém de diversos recursos, sabiamente
utilizados, da decupagem clássica. Em cada espécie de plano, King não esconde a
sua preferência pelos que permitem instituir uma ligeira distância com as
personagens, desconfiando dos closes como impudicos e contrários à emoção geral
do filme, usando com um virtuosismo discreto os planos longos, mas que não o
parecem ser. A sua direção de atores, precisa e penetrante na sua sobriedade,
contribuiu muito para afastar do mosaico de seus filmes o cabotinismo, as
suspeitas efusões e essa exaltação do herói em detrimento do que o rodeia,
coisas que o horrorizam. Na dramaturgia como na montagem, ele ignora essas
astúcias de ligação que dissimulam elementos da intriga, a qual, pelo contrário,
deve estar, a cada ponto do seu desenvolvimento, na sua totalidade, a serviço
do espectador. Este estilo franco e nu, nascido na época do mudo, acomoda-se
igualmente bem aos filmes de pequeno orçamento como às gigantescas
super-produções. Ele não foi surpreendido por nenhum dos avanços técnicos do
cinema (som, cor, CinemaScope), absorvendo-os a todos sem nada perder da sua
originalidade e da sua dignidade. É um estilo que, se pode levar tempo para se
fazer reconhecer, parece envelhecer muito pouco. Comecei lamentando que o
apagamento do autor possa ter prejudicado a sua obra. Por outro lado, King
terá, deste modo, saltado a etapa da celebridade passageira, da moda e do
inevitável purgatório. O seu nome, poupado aos estilhaços da glória, foi-no
também às idéias falsas, aos preconceitos e às vulgaridades que obscurecem
tantas obras mais conhecidas. Nunca tendo aparecido como um cineasta da
atualidade, ele tornar-se-á facilmente o que ele nunca deixou de ser: um cineasta
da eternidade, incomparável pela variedade dos seus gostos e pela sua
honestidade.
Notas:
[1] Sejamos precisos: no que se refere a DeMille, para chegar à centena seria
preciso acrescentar alguns dos filmes que supervisou ou produziu.
[a] Nota do tradutor: Jacques Lourcelles faz, como bom cinéfilo, um trocadilho
com o título de um velho filme francês, Les cinq gentlemen maudits,
de Julien Duvivier (1931).
[2] Objetar-nos-ão: e DeMille? DeMille construiu uma lenda a propósito de seus
filmes e do seu gigantismo e não a propósito de si mesmo, permanecendo sempre
bastante discreto, como muitos cineastas americanos, sobre as suas ambições e
reais intenções.
[3] Para se restringir ao plano geográfico, a obra de King descreve com
abundância os estados do Kansas, Georgia, Maine, New York, Missouri, Nova-Inglaterra,
Carolina, Maryland etc. Fora dos Estados Unidos, os países seguintes tiveram
lugar nas intrigas dos filmes de King: França, Espanha, Itália, Inglaterra,
Rússia, Áustria, Israel, Índias, Hong-Kong, África do Sul, Jamaica, Canadá,
México, Panamá etc. Quanto às épocas, elas são mais numerosas ainda, e os
trabalhos ilustrados por esta obra são também inumeráveis. Apenas a obra de
Michael Curtiz, outro grande desconhecido, pode rivalizar com a de King no que
diz respeito à variedade. Mas enquanto Curtiz tem tendência a se perder nela,
de uma forma aliás apaixonante, King serve-se para traçar algumas linhas de
força que reencontraremos ao longo de toda a sua imensa carreira.
[4] O que King detestou em Fitzgerald (herói do seu penúltimo filme, O
Ídolo de Cristal [Beloved Infidel, 1959]), é justamente o homem
não livre de si mesmo e a sua lamentosa busca da aprovação dos outros, como se
o escritor procurasse no olhar dos outros a imagem da sua própria dignidade.
Enquanto que para King a dignidade de qualquer homem apenas depende de si
próprio, e não tem de ser procurada senão em si mesmo.
[5] Esse tema da resistência humana é já tratado nos filmes mudos de King, e em
particular no célebre Beijo Ardente (The Winning of Barbara
Worth, 1926), o filme em que King revelou Gary Cooper.
[6] Esta frase figura na conclusão de uma narrativa autobiográfica (Memorial,
José Corti, 1971) que relata uma experiência amorosa próxima de alguns filmes
de King. Talvez não seja inútil citar o contexto imediato, espantosamente
próximo de King, em particular dos seus melodramas: “A melancolia é o gosto do
infinito, assemelha-se ao Eros platônico, testemunha a favor da condição humana
(...) Esses buracos de ar, essas quedas no vazio não se devem apenas à
instabilidade dos nervos. Há uma falta de ser que nos é consubstancial. A
felicidade terrestre, por intensa que seja, é composta por uma parte impossível
de apreciar do sonho de felicidade, da aspiração sem termo para o absoluto de
felicidade, é a sua perfeição avassaladora que aqui não pode ser senão
entrevista”.
(Écran nº 70, 15 de junho de 1978, pp. 31-38. Extraído do
catálogo Henry King: A Câmara à Altura dos Sentimentos, Manuel
Cintra Ferreira [org.], Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema,
2007. Traduzido por Manuel Cintra Ferreira; transcrito por João Palhares;
revisado por Bruno Andrade e André Barcellos)
Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/jornalking1.htm