O Antigo
e o Novo
É com um
cineasta, Eric Rohmer, que queríamos há muito tempo nos ocupar. Mas para nós,
nos Cahiers, trata-se antes de devolver a Eric Rohmer uma palavra
que, mesmo abortada na ocasião do abandono de uma forma de escrita por outra,
jamais deixou de nos guiar. Pois, ao deixar o mármore nos Cahiers,
ele não nos deu no celulóide suas melhores críticas? Além disso, após a
mesa-redonda que precede e a entrevista que nós tivemos no mês passado com
Jean-Luc Godard, o que segue deve ser lido no mesmo sentido de um
esclarecimento de nossas próprias posições críticas, com ênfase na continuidade
de uma linha dos Cahiers a qual Eric Rohmer e Jacques Rivette
asseguraram (naquilo que tiveram de melhor) ao mesmo tempo a firme orientação e
a flexibilidade (maior do que por vezes se contentaram em imaginar). O título
que demos a esta entrevista ecoa tal preocupação; com ele desejamos também,
trazendo à mente a conjunção mais aditiva que explicativa, sugerir que o cinema
moderno na pessoa de um de seus melhores representantes se reconhece como um
local no domínio instaurado por Griffith, da mesma forma que a crítica não
saberia ser verdadeiramente nova sem encontrar em Maurice Schérer o segredo de
uma tal novidade. E, vindo após o texto de Pier Paolo Pasolini (Le cinéma de
poésie, cf. número precedente), é um tour de force teórico
que conduz nesta entrevista o defensor de um cinema de prosa.
Eric Rohmer - Admiro que Pasolini possa escrever este tipo de coisa
sem deixar de fazer filmes. O problema da linguagem cinematográfica me
interessa muito, apesar de não saber se é um problema verdadeiro ou falso, e
que ameace desviar a obra da criação em si. Como esse problema é extremamente
abstrato, exige a adoção de uma atitude frente ao cinema que não é a do autor,
nem tampouco a do espectador. Ela nos interdita de gozar do prazer que vai de
encontro à visão do filme. Dito isto, estou de acordo com Pasolini quanto ao
fato de que a linguagem cinematográfica seja na realidade um estilo. Não existe
uma gramática cinematográfica, mas antes uma retórica que, ademais, por uma
parte é extremamente pobre e por outra extremamente mutável.
Cahiers - O que também pode parecer igualmente interessante
no ponto de vista de Pasolini é a distinção que propõe entre dois momentos do
cinema: um que seria a era clássica e outro que seria a era moderna, a
diferença entre elas sendo, grosso modo, que por um longo tempo o autor,
o metteur en scène, empenhou-se em apagar de sua arte todos os
sinais de intervenção, a suprimir-se por trás de sua obra, enquanto que agora
manifesta cada vez mais sua presença.
Eric Rohmer - Neste ponto, estou em completo desacordo com
Pasolini. Não creio que o cinema moderno seja necessariamente um cinema no qual
se deva sentir a câmera. Acontece que atualmente há muitos filmes dos quais se
sente a câmera, e antes também havia muitos, porém não creio que a distinção
entre o cinema moderno e cinema clássico possa residir nesta afirmação. Não
penso que o cinema moderno seja exclusivamente um “cinema de poesia” e que o
cinema antigo seja somente de prosa ou de narrativa. Para mim, existe uma forma
de cinema de prosa e de cinema “romanesco”, onde a poesia está presente, mas sem
ser buscada de antemão: aparece por acréscimo, sem que se lhe solicite
expressamente. Não sei se conseguirei me explicar sobre este ponto, na medida
em que isso me obrigaria a julgar os filmes dos meus contemporâneos, o que
nego-me a fazer. De todo modo, parece-me que os Cahiers por
uma parte, os críticos por outra, têm uma tendência excessiva a se interessar
sobretudo por esse cinema onde se nota a câmera, o autor - o que não quer dizer
que este seja o únicocinema de autor - em detrimento de outro
cinema, o cinema de narrativa, que se considera de saída como clássico, ao
passo que no meu parecer não é mais que o outro. Pasolini cita Godard e
Antonioni. Também poderia citar Resnais e Varda. São cineastas bastante
diversos, mas que de um certo ponto de vista podem ser colocados no mesmo saco.
Quanto àqueles que não digo que prefira a estes, mas que me parecem mais
próximos daquilo que eu mesmo venho a procurar, quem são? Cineastas em que se
nota a câmera, mas em que isso não é a parte essencial: é a coisa filmada que
tem maior existência autônoma. Em outras palavras, interessam-se por um
universo que não é de antemão um universo cinematográfico. O cinema para eles é
menos um fim que um meio, enquanto que em Resnais, Godard ou Antonioni, tem-se
a impressão de que o cinema se contempla a si mesmo, que os seres filmados só
têm existência no interior do filme; ou do cinema em geral. Para eles, o cinema
é um meio para que possamos conhecer, revelarmos os seres, enquanto que para os
“modernos” o cinema seria fundamentalmente um meio de revelar o próprio cinema.
São cineastas que rodaram poucos filmes, e os quais não sei se não mudarão, se
não passarão para o outro lado. Tomo seus filmes tal como são, e ademais menos
os filmes por inteiro que alguns de seus momentos: certas passagens, por
exemplo, de Adieu Philippine, em particular a cena das vespas, bem
como esse filme que vocês elogiaram com moderação e do qual gosto
enormemente: La vie à l’envers, de Alain Jessua. Ou ainda Chabrol
no que tem de melhor - porque evidentemente em Chabrol há também um lado
cinéfilo, mas é um lado mistificador e que não me parece o mais profundo. As
personagens de Chabrol são interessantes independentemente do fato de que são
filmadas. Eis aqui um cinema que não coloca a si mesmo em primeiro plano, mas
que nos propõe situações e personagens, enquanto que, no outro cinema, os
personagens me parecem menos interessantes na medida em que definem antes de
tudo uma concepção de cinema.
Cahiers - Talvez ambas as categorias possam confundir-se:
em Bande à part se encontram personagens interessantes em si
mesmos e aos quais o cineasta dá uma existência real, e, ao mesmo tempo, um
cinema que se interroga a si mesmo.
Eric Rohmer - Isso pode andar de mãos dadas. Mas, precisamente,
estas reflexões, eu as fiz logo após a visãoBande à part: é um mau
exemplo. Bande à part é um filme extremamente comovente, onde
Godard nos emociona; mas não são as personagens que nos emocionam, em absoluto.
É outra coisa. As personagens como tais, a garota e os dois garotos, são
interessantes apenas por sua situação dentro do filme e por suas relações com o
autor. Enquanto que as personagens de Les godelureaux nos
interessam independentemente da maneira que o autor se expressa e defende sua
idéia de cinema através delas, embora elas também sejam fotogênicas.
Cahiers - Não se assiste hoje a uma espécie de evolução
global na função das personagens, que cada vez menos são consideradas por si
mesmas e em si mesmas, e desempenham cada vez mais o papel de pretextos, de
máscaras para o autor?
Eric Rohmer - Nos filmes que cito as personagens não são pretextos.
E, ademais, isto não prova nada. Falo em nome próprio, e digo que sinto mais
afinidades com certos cineastas, apesar de tudo que me separa deles em outros
planos. Tenho a impressão de que, cada vez mais, minha busca se orienta nesse
sentido, e reivindico a modernidade da coisa. Um cinema onde a câmera é
invisível pode ser um cinema moderno. O que eu gostaria de fazer é um cinema de
câmera absolutamente invisível. Sempre é possível tornar a
câmera menos visível. Há muito trabalho (ainda) a se fazer nesse domínio.
Moderno é ademais uma palavra um tanto gasta. Não há por que tentar ser
moderno, você é se merece sê-lo. E não se deve ter medo também de não ser
moderno. Não é algo que deva se converter numa obsessão.
Cahiers - Para nós, a reivindicação de uma modernidade tem
um valor polêmico: os cineastas modernos são todos aqueles - incluindo os
cineastas com uma larga carreira, como Renoir - que não somente deram
existência ao seu mundo, mas que ao mesmo tempo redefiniram em cada ocasião o
cinema em relação a si mesmos, que o orientaram a um novo sentido.
Eric Rohmer - Que sentido é esse? O que é admirável no cinema é que
se pode fazer tudo, enquanto que, na música ou na pintura, há tabus,
proibições. Na música, é preciso escolher se situar antes ou depois da música
dodecafônica; na pintura, antes ou depois da pintura abstrata. Mas no cinema,
se é necessário optar por estar antes ou depois do sonoro, essa escolha está
ditada unicamente pela técnica. Todas as vezes que se tentou defender as
técnicas novas, se teve razão, e a história, o tempo, justificaram essa
atitude. Inversamente, cada vez que alguém tentou defender uma posição
severamente estética, ainda que parecesse estar ligada a inovações técnicas,
acabou sempre se equivocando, por mais inteligente que fosse. Por exemplo,
André Bazin: o que há de mais contestável na sua obra é precisamente sua defesa
de um novo cinema fundado sobre a profundidade de campo. Isso não se sustenta
em absoluto. E o mesmo acontece em relação a um cinema que seria puramente
realista. Ou ainda a um cinema que seria puramente “de poesia”; ou um cinema
como o de Resnais, onde a cronologia desaparece, onde o subjetivo e o objetivo
se mesclam. Abrem-se portas, mas são portas sem saída. Essas inovações não têm
necessariamente posteridade. Ninguém jamais pôde dizer em que sentido o cinema
poderia ir. Ocorre que cada vez que se acreditava que ia numa direção, acabava
indo numa direção completamente diferente.
O que há de melhor e de verdadeiro na Nouvelle Vague é a sua contribuição
técnica, tanto no que se refere à realização como à produção. É o fato de rodar
filmes baratos. É algo que veio a fazer parte dos costumes e a que não se pode
voltar atrás.
Cahiers - A essas inovações técnicas, que obtiveram uma
posteridade honrosa, não temos que adicionar a evolução de uma técnica mais
geral, como a da narração, que conheceu inúmeras variações, que fixou-se num
certo número de convenções na época do reinado de Hollywood, e que
agora reage contra essas convenções: a cronologia, por exemplo, não é uma
técnica do mesmo modo que a câmera sobre o tripé ou o campo-contracampo e,
enquanto técnica, ela não é suscetível a renovações?
Eric Rohmer - Sou favorável ao campo-contracampo e à cronologia.
Não quero dizer que sempre seja necessário fazer o campo-contracampo e sempre
respeitar a ordem cronológica, não penso que seja algo consubstancial ao
cinema; mas, enfim, se é possível raciocinar por analogias, a narração fragmentada
à Dos Passos, bem como o monólogo interior à Joyce e à Faulkner não impediram
que se voltasse à maneira de narrar denominada clássica, inclusive em obras
que, no fim das contas, também são modernas. Veja as pessoas que quiseram
imitar Faulkner ou Dos Passos, fizeram coisas da pior espécie, isto é, do
estilo Chemins de la liberté de Sartre.
Mas é preciso se resguardar do raciocínio por analogias: o romance não está
agora na mesma situação do cinema. Penso que é respeitando a ordem cronológica
que se irá o mais longe e que se será o mais moderno. É uma opinião puramente
pessoal, não sou capaz de demonstrar sua verdade. Mas as experiências feitas na
busca de um cinema não-cronológico demonstram que é um caminho pouco
interessante. Observem também que a maioria dos cineastas que citei segue a
ordem cronológica. Mesmo Godard não fez nada até agora de realmente
não-cronológico.
Cahiers - Não é realmente quanto à cronologia que a técnica
da narração evolui hoje. É antes na própria maneira de conduzir a história, de
estruturar a intriga, que ela sofre as maiores mudanças: há muito mais elipses,
do mesmo modo que se ignoram algumas coisas que durante muito tempo foram
consideradas essenciais para destacar outras...
Eric Rohmer - Nisso estou de acordo. Ou seja, o que antes era
ensinado, agora já não se ensina, e o que não se ensinava, é ensinado. Mas o
cinema poético não é o mais adequado para fazê-lo; acredito que, do ponto de
vista das elipses, ele seria mais tradicionalista que o outro, na medida em que
mostraria sobretudo os momentos fortes da ação. O cinema poético é feito muitas
vezes de morceaux de bravoure. É antes num cinema que não se
pretende poético, que se pretende prosaico, onde é possível encontrar uma
tentativa de romper a maneira tradicional da narração, mas de modo
sub-reptício, não de um modo espetacular, sem apoderar-se de certas técnicas do
romance. Quanto a este ponto eu não mudei de opinião em absoluto: creio que não
seja necessário transplantar para o cinema alguns procedimentos dos romancistas.
Porque é preciso que a coisa seja espontânea e chegue ao cineasta pelas
próprias necessidades de sua expressão, ingenuamente, sem referência alguma.
Cahiers - Tomemos o caso de Bresson...
Eric Rohmer - Mas Bresson, eu não sei em que categoria colocá-lo.
Pode-se muito bem afirmar que está acima das categorias, mas não estou seguro
disto. Atualmente, inclino-me mais a colocá-lo no cinema de poesia que no
cinema de narrativa. É um cineasta em que se sente a presença da câmera, mesmo
na sua ausência, se me atrevo a dizer. A câmera está eclipsada, mas é o próprio
eclipse que indica que poderia estar presente. Em Bresson se sente enormemente
o cineasta. Creio que o que lhe interessa é a maneira de mostrar as
coisas, mais que a maneira de mostrar certas coisas. Em outras
palavras, o cinema é bastante um fim para ele, e não um meio.
Falemos um pouco, se quiserem, da desdramatização. Não me agrada a palavra, nem
a coisa. Quando perguntavam a um cineasta dos anos 40, por exemplo Jacques
Becker: “Que filme você rodaria se pudesse verdadeiramente fazê-lo com toda
liberdade?”, ele respondia: “Gostaria de fazer um filme sem história”. Há
muitas pessoas que partilham a mesma opinião. No entanto, eu penso que um
cinema pode ser moderno e contar uma história. Não vejo por que o fato de não
contar uma história seria mais moderno que o contrário. Isto talvez possa ser
verdade no romance moderno, mas é preciso considerar o cinema em si mesmo. Não
somente se deve esquecer o que é a literatura moderna, como é necessário também
esquecer o que é o cinema, e é por este motivo que não gosto muito de falar
dele. Deve-se ir adiante, sem pensar no que quer que seja. Mas há cineastas que
não podem; há cineastas que gostam de refletir sobre o cinema e partir desta
reflexão no momento da criação, de modo que o cinema contemple constantemente a
si mesmo. Não sei em que categoria estou, não posso julgar-me, mas preferiria
estar na segunda categoria, e cada vez que vejo um cinema bastante aberto ao
mundo exterior, isto me seduz, talvez por considerar que atualmente o cinema
não esteja demasiado aberto a esse mundo, esteja um tanto demasiadamente
fechado sobre si mesmo. Seja expressamente, seja de maneira dissimulada.
Cahiers - Voltemos ao teu exemplo da cena das vespas em
Rozier: seria, ao que parece, antes de tudo um momento poético...
Eric Rohmer - Sim. O que queria dizer é que, mesmo filmada de outra
maneira, mesmo filmada por qualquer outro, seguiria sendo como é, igualmente
poética. Isso não quer dizer que Rozier não tenha feito um trabalho de câmera
muito importante, mas que deu ao espectador o sentimento de uma existência
independente da cena. Pode-se distinguir um cinema de poesia de um cinema que
filma a poesia. Pessoalmente, posto que realizo documentários pedagógicos,
gosto bastante de filmar a poesia, embora seja uma coisa quase impossível. O
cinema é um meio para se fazer descobrir a poesia, seja a poesia de um poeta,
seja a poesia do mundo. Mas não é o cinema que é poético, é a coisa mostrada
que o é. Em La vie à l’envers, tem-se a impressão de que a poesia
está no universo mostrado muito mais que na forma com que o cineasta a mostra.
O que não poderia ser dito dos filmes citados por Pasolini: neles, não é o
universo que é poético, é o olhar do cineasta que o poetiza. É algo que fica
bastante claro em Alphaville, que se torna fantástico tão-somente
pela maneira com que Godard toma um universo banal e o faz fantástico.
Cahiers - Você pôs o dedo sobre uma definição mais séria do
moderno: o cinema, hoje, é uma arte que se contempla, que se volta a si mesma.
O primeiro objeto do cineasta parece ser a pergunta: o que é o cinema, o que
ele teria sido até agora, o que pode ser? Esse não é o seu problema... Mas
seria possível continuar fazendo cinema hoje sem se colocar este problema
prévio? Seria possível conservar ou reencontrar aquela espontaneidade, aquela
ingenuidade dos grandes cineastas que não se colocaram o problema do cinema,
mas o do mundo?
Eric Rohmer - Não posso responder-lhes senão sobre o meu caso. Para
mim, está claro que, depois que comecei a rodar regularmente, sinto cada vez
menos, por um lado, a necessidade de refletir sobre o cinema, e por outro,
inclusive, de freqüentar o cinema. Vou muito pouco. Talvez seja uma questão de
temperamento. Não sei se disto posso tirar uma regra geral. É possível que
pessoas com a mesma idéia que a minha de cinema, ao contrário, freqüentem-no
enormemente.
Cahiers - Um cinema que se volta para o mundo e que não
tome a si mesmo por objeto é, certamente, o cinema americano que você defendeu
nos Cahiers.
Eric Rohmer - Estou bem fora do jogo. A ponto de quase dizer que
nem sei se um filme é americano ou não. Num certo momento, gostei muitíssimo do
cinema americano, mas, atualmente, esse lado americano me interessa menos.
Quando afirmo que pode existir um cinema moderno que não seja uma reflexão
sobre o cinema, isso não implica que seja um cinema ingênuo. Eu distingo dois
cinemas, o cinema que se toma por objeto e por fim, e aquele que toma o mundo
por objeto e é um meio. Mas posso refletir perfeitamente sobre o cinema como um
meio e sobre o mesmo tenho muitas idéias. Os americanos eram muito ingênuos,
como sabido nunca escreveram, nunca refletiram sobre o cinema nem como meio nem
como fim. Quando abordados, quase todos (com exceção talvez de Hawks, que tem
certas idéias sobre o cinema como meio, porém idéias muito simples) refletiram
sobre o cinema como técnica ou então sobre o mundo como objeto, nada mais. Nós
podemos refletir ao mesmo tempo o cinema como meio e como fim. Parece que os
choco em dizer que o cinema é um meio e não um fim.
Cahiers - Não, em absoluto.
Eric Rohmer - Dou-me conta de que os críticos freqüentemente
admiram alguns dos filmes que citei, mas não sabem muito bem o que dizer deles,
enquanto que cada vez que um filme toma o cinema como objeto, pode-se falar
dele, fala-se muito. Quando este não é o caso, dizem coisas mais banais, mais
convencionais: em poucas palavras, acaba-se por considerá-lo um bom filme
clássico, o que a meu ver não é o caso.
Cahiers - Se muitos filmes hoje parecem mais complexos,
mais abstratos, isso talvez ocorra porque o mundo que tentam descrever parece
em si mesmo mais complexo, mais abstrato, mais indefinível. Isso talvez proceda
do fato de que o mundo não pode se reduzir a um roteiro linear.
Eric Rohmer - Não estou de acordo. Vocês dirão que sou reacionário,
e não somente clássico: para mim, o mundo não muda, ao menos muito pouco. O
mundo sempre é o mundo, nem mais confuso nem mais claro. O que muda é a arte, a
forma de abordá-lo.
Cahiers - Isso quer dizer a mesma coisa.
Eric Rohmer - O problema que nos ocupa não é o de uma consciência
maior ou menor dos meios de expressão, nem da passagem de um estado ingênuo a
um estado intelectual: trata-se de opor uma arte que estaria fechada sobre si
mesma, que se contempla a si mesma, e uma arte que contemplaria o mundo. Mas
esta contemplação do mundo pode ser distinta, ainda que o mundo não mude, na
medida em que temos meios de investigação diversos. É uma coisa que aprendo
todos os dias, se apenas por estar fazendo documentários escolares para a
televisão: tem-se um dado e tem-se um meio, mas este meio pode fazer-nos
descobrir naquele dado coisas que não conhecíamos. Não se trata do fato de que
o mundo muda, trata-se de descobrir no mundo coisas distintas. O que amo nos
filmes de que falei é que nos fazem descobrir coisas distintas: o que há de
interessante no cinema é que é um instrumento de descoberta. E esse
descobrimento pode ir extremamente longe. Observem que o mesmo ocorre com a arte:
sempre é uma descoberta. Vocês me responderão que o cinema poético também é um
meio de descobrimento do mundo. Talvez, mas não é isto que diziam. Esta
propriedade que há em descobrir o mundo não é o que geralmente se destaca...
Cahiers - O cinema como meio de descobrir o mundo é, no
limite, o cinema-verdade. Entretanto, seu itinerário está bem distante daquele
do cinema-verdade.
Eric Rohmer - O cinema-verdade sempre me interessou na medida em
que é uma técnica. Esta técnica, finalmente, eu não a empreguei, embora tivesse
desejo de fazê-lo. Mas é preciso distinguir o que se gosta e o que se faz. Em
muitos pontos, sou bastante hostil ao cinema-verdade. Sempre sonhei, eu o farei
um dia provavelmente, numa obra pedagógica mais que numa obra romanesca, em deixar
os intérpretes improvisarem seu texto.
A verdade que me interessou até aqui é a do espaço e do tempo: a objetividade
do espaço e do tempo. Tomemos por exemplo Place de l’Etoile...:
tentei reconstituir o lugar de maneira que aparecesse tal como é, pois, no
cinema, freqüentemente é muito difícil dar a idéia de um espaço, de um lugar, e
o que me interessa é tentar apresentar esse lugar a partir de seus elementos
fragmentários. Não quis, com estes elementos, criar um lugar completamente
distinto, o que fazem alguns cineastas, filmando Paris e a convertendo em Nova
Iorque, bem como uma cidade de 1960 em outra do ano 2000. Pelo contrário, tenho
a sensação de que é muito difícil apresentar a realidade tal como ela é, e de
que a realidade tal como ela é será sempre mais bela que meu filme. Ao mesmo
tempo, somente o cinema pode dar a visão da realidade tal como ela é: o olho
não consegue. Portanto, o cinema é ainda mais objetivo que o olho. Trabalhei de
maneira que a place de l’Etoile fosse apresentada tanto pela maneira de filmar
como de narrar: a narração está a serviço do lugar, foi feita para valorizá-lo.
É isto a que chamo de busca da verdade: esta verdade é a que me interessa, ao
passo que talvez não seja esta verdade do espaço a que interessa ao cinema-verdade,
mas uma verdade psicológica, sociológica ou etnológica: existem milhares de
verdades possíveis.
Da mesma forma me interessa a duração, a objetividade da duração. Apresentar
uma duração não forçosamente real, mas que exista independentemente da maneira
como a mostro. Não creio que o chamado cinema clássico tenha chegado até o
limite desta reconstrução e descoberta simultânea do espaço e do tempo, ele
permaneceu no meio do caminho. É preciso ir mais longe e, ainda que
evidentemente não se chegue, é possível chegar a uma aproximação bastante
considerável.
Cahiers - Paralelamente a estas preocupações, você ainda
possui as de um moralista...
Eric Rohmer - Sim, já que o que me interessa é mostrar os homens, e
o homem é um ser moral. Minhas personagens não são seres puramente estéticos.
Possuem uma realidade moral que me interessa tanto quanto a realidade física.
No que concerne os meus Contos Morais, considero que estão
compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta idéia de “contos morais”, se
coloco “conto” de um lado da máquina e a “moral” do outro, se desenvolvo tudo o
que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já
estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de
aventuras, será forçosamente uma história a meias tintas, portanto uma história
de amor. Numa história de amor, há forçosamente um homem e uma mulher. Mas se
há um homem e uma mulher, não é algo muito dramático: em todo caso, teria de
entrar em jogo os impedimentos: a sociedade etc. Por isso, é melhor que haja
três personagens: digamos um homem e duas mulheres, já que sou homem e meus
contos são narrações em primeira pessoa. É assim que os temas dos Contos
Morais se desprendem da própria idéia de conto moral. Uma vez
encontrado o tema, pode-se deduzir o conteúdo de cada um dos seis relatos. No
primeiro, a situação aparecerá em sua forma mais simples: a escolha não se
projeta verdadeiramente em termos de moral, mas simplesmente de conveniência
quase material. Um rapaz busca uma moça, enfada-se, encontra outra. E, dado
este lado material, o tema da alimentação terá importância: será portanto uma
padeira. O segundo será o mesmo tema ao inverso: o rapaz não será atraído, mas
rejeitado pela garota. O terceiro, que ainda não foi rodado, é aquele em que a
escolha se projetará finalmente em termos de moral, e até mesmo de religião, já
que a personagem principal é católica. E assim sucessivamente. Eu poderia ter
perfeitamente usado uma máquina para encontrar estes argumentos, portanto minha
intervenção nas histórias não implica em nada. Os problemas a que nos
referíamos jamais me incomodaram ao fazer filmes.
Cahiers - Em que medida, então, a prática do cinema
modificou as tuas idéias sobre o cinema?
Eric Rohmer - Pode-se dizer que adotei a visão oposta de minhas
idéias. Inclusive, pergunto-me se cheguei a ter idéias. Depois de ter pensado
bem, creio que Bazin, sim, teve idéias e que nós, nós tivemos preferências. As
idéias de Bazin são todas boas, seus gostos são bem discutíveis. Os juízos de
Bazin não foram ratificados pela posteridade, em outras palavras não impuseram
nenhum grande cineasta. Gostava de alguns que são grandes, mas não penso que o
que ele disse realmente os impôs. Nós não dissemos grande coisa sobre a teoria
do cinema, não fizemos mais que desenvolver as idéias de Bazin. Em troca, creio
que encontramos os bons valores, e os que vieram depois de nós ratificaram
nossas preferências: impomos cineastas que permaneceram e que, creio,
permanecerão. Senti-me obrigado a atuar contra minhas teorias (se é que alguma
vez as tive). Quais eram? O plano-seqüência, a decupagem preferivelmente à
montagem. Essas teorias, em sua maioria, estavam tomadas de Bazin e de
Leenhardt. Leenhardt as havia definido num artigo que se chamava À bas
Ford, vive Wyler!, onde dizia que o cinema moderno é um cinema não de
imagem ou de montagem, mas de planos e de decupagem. Não obstante, fiz um
cinema que é fundamentalmente de montagem. Até o momento, a montagem é a parte
mais importante dos meus filmes. Em última instância, eu poderia deixar de
acompanhar a filmagem, mas é necessário que eu acompanhe a montagem. Por outro
lado, na filmagem, cada vez me interesso mais pelo enquadramento e a
fotografia, até mais que pelo plano. Creio menos no plano do que antes.
Outra idéia, que era comum a todos de minha geração: a direção de atores. Eu
pensava que no cinema fosse a coisa mais importante, e sempre mantive certo
apreensão neste terreno. Tinha medo de não saber dirigir os atores. Agora penso
que a direção de atores é um falso problema, não existe, não há com o que se
preocupar, é a coisa mais simples que há no cinema. Portanto minhas
preocupações são exatamente o contrário do que eram, mas isso me parece
natural.
Cahiers - Teus gostos em matéria de cinema talvez correspondam
mais ao que fazes que às tuas teorias... Quais seriam as referências
cinematográficas de teus filmes?
Eric Rohmer - Não tenho. Se as tivesse, acabaria provavelmente
paralisado. Admiro as pessoas que podem dizer: “Pergunto-me o que Hitchcock
faria em meu lugar?” Pessoalmente, não só evito a pergunta, como nem vejo
sequer como poderia perguntar-me, já que não sei o que faz um Hitchcock: quando
vejo um filme, não penso em absoluto na técnica, e seria incapaz de plagiar um
filme. Conservo a lembrança do que se sucede, vejo momentos interessantes, um
rosto que tem uma expressão extraordinária, mas a maneira com que é mostrado,
não a vejo nem na primeira nem na segunda ou terceira visão, e isto não me
interessa. Quando filmo algo, penso naquilo que mostro. Se eu quero mostrar
essa cadeira, isso me trará alguns problemas, é possível que titubeie, mas o
fato que Hitchcock ou Renoir ou Rossellini ou Murnau filmaram uma cadeira não
me socorrerá. Quando fazia curtas-metragens mudos, eu certamente me inspirei em
Murnau, enfim, eu acreditava que havia sido inspirado sobretudo por ele, bem
como por Fritz Lang ou por Griffith: são os cineastas bem antigos, aqueles em
que posso encontrar o gênio do cinema, da mesma maneira que se pode encontrar o
gênio do idioma nos clássicos. Quando escrevo, poderia chegar a pensar mais em
Tácito, ou em Virgílio, do que em Marcel Proust ou em Jean Paulhan. Deste ponto
de vista, oponho-me bastante à maioria das pessoas dos Cahiers que,
ao contrário, gostam bastante de referências.
Cahiers - E das quais se poderiam dizer, elas mesmas o
disseram, que as críticas delas eram os seus primeiros filmes. Não foi este o
seu caso.
Eric Rohmer - Não creio. Rodei pequenos filmes amadores ao mesmo
tempo em que escrevia. Creio que todos nós nos Cahiers começamos
bem rápido, senão a filmar, visto que carecíamos de meios, pelo menos a querer
fazer filmes. Fazíamos crítica interessada. Não somos críticos que passaram ao
cinema, mas cineastas que fizeram um pouco de crítica para começar.
Quando filmo, reflito sobre a história, sobre o tema, sobre a maneira de ser
das personagens. Mas a técnica do cinema, os meios empregados, são-me ditados
pelo desejo de mostrar algo. Em outras palavras, se faço planos curtos, não é
porque gosto dos planos curtos mais que dos longos, é que, para aquilo que
quero mostrar, o plano curto é mais interessante. Se me ocorre que só poderia
mostrá-lo em planos longos, faria planos longos. Não tenho nenhuma forma a
priori, isso é fato.
Cahiers - Godard dizia que existiam dois tipos de
cineastas: os que queriam fazer cinema a qualquer custo, e os que queriam fazer
um certo filme. Você estaria mais enquadrado no segundo. E, contudo, trabalha
na televisão escolar, sobre temas de encomenda...
Eric Rohmer - Não considero em absoluto a televisão escolar como um
trabalho de subsistência. Trata-se, certamente, de um campo de experiências
menos livre que o cinema de autor que pretendo fazer com os meusContos
Morais. Há um lado de obra, se não imposta, ao menos circunstancial, de
obra proposta. Acomodo-me muito bem. Chega a ser mesmo estimulante, quando me
propõem algo, perguntar-me: “Faço, não faço?” Quando talvez nunca me tivesse
ocorrido a idéia de fazê-lo.
(...)
(Declarações recolhidas ao magnetofone por Jean-Claude Biette, Jacques
Bontemps e Jean-Louis Comolli.)
(Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965, pp. 32-43+56-59.
Traduzido por Felipe Medeiros)