por João Bénard da Costa
Vi este filme, pela primeira vez, ainda não tinha 13 anos, no Tivoli,
quando o Tivoli cheirava a Fox e eu dizia Vinte Century Fox. Talvez
por isso, a palavra vintage, que só aprendi muito mais tarde, me
esteja visualmente associada ao emblema da casa de Zanuck e me apareça sempre,
entre holofotes cruzados, ascendendo e descendendo por espaços efêmeros.
Lembro-me que gostei. Lembro-me que gostei muito. Mas nunca imaginei que
ia gostar tanto e que tanto, toda a vida, me ia lembrar desta história de amor
e de morte. Aos 12-13 anos, os grandes amores são solitários e são coisa de nós
com nós, sem mais corpo do que o próprio. Por esse lado, podia, obscuramente,
como através de um espelho, desvendar parte importante do criptograma do filme.
Mas ainda era muito cedo (e agora talvez seja muito tarde) para desvendar a
parte que com essa parte se soma. Aos doze anos, a morte é uma palavra vaga e
os fantasmas brincadeiras para sustos a pregar uns aos outros.
Precisei de mais trinta anos (trinta e dois, se contar pelos dedos) para
saber que o Capitão Daniel Gregg (Rex Harrison) não era fantasma nenhum ou era
o fantasma todo. Nesse dia, preguei o imenso pôster do filme (o original) na
parede que fica na frente da minha secretaria na Gulbenkian. Eu já lá não
estou, o pôster ainda lá está (Agora, já não está. Mas, embora empalidecido
pelo sol - quem é que se lembra de pôr fantasmas ao sol? - continua no meu
gabinete. Na Cinemateca). Gene Tierney
(Lucy Muir) em primeiro plano, imensa e vogante, “with that taunt in her
smile”. Rex Harrison, na sombra, atrás dela, “with that haunt in his kiss”. E, no canto direito,
embaixo, muito mais pequenino, George Sanders “without a ghost of a chance”.
“The Flesh ... So Weak.” “The Spirit ... So Willing.” Podia ser ao contrário,
mas assim sossega mais. E também por lá se diz, na capa de um livro fechado,
que “the film becames the delight of your life.” Não sei se “delight” é a
palavra mais própria, mas muita coisa em a minha vida “becamou”.
Mrs. Muir - já o disse - é Gene Tierney, nos anos de Laura,
de Leave Her to Heaven, de Dragonwyck, nos anos em que
mais Gene Tierney foi, mulher patchuli, mulher asfódela. Mr. Muir - quem quer
que tenha sido - nunca o conhecemos. Morreu antes do filme começar, de um flato
ou de coisa parecida, deixando-lhe a cara e o corpo magníficos envoltos em
crepes, como em crepes se envolviam as viúvas inglesas do princípio do século,
tempo e país do início da ação. A adivinhar pela família com quem a deixou a
viver (sogra e cunhadas), nem ela nem nós perdemos grande coisa. Mas deixou-lhe
uma filha de sete anos, papel confiado à criança que então era Natalie Wood.
Para fugir dessa casa londrina, casa de um morto, casa de mortos, decide
Mrs. Muir, com enorme escândalo da família, mudar de ares e mudar de mares,
levando-se a ela, à filha e à criada (Edna Best) para uma praia sobre o
Atlântico, onde, de noite, o vento assobiava nas frinchas de madeiras velhas e
onde brenhas de ondas se batiam contra os penhascos. Das muitas casas que lhe
mostraram, nenhuma a convence. E só quis a casa que não lhe queriam mostrar,
porque - dizia-se - estava assombrada pela alma penada do Capitão Gregg, que
nela se suicidara. O fantasma não assusta Lucy Muir. Um fantasma é o medo que a
gente tem dele. E o medo do desejo não é medo de Gene Tierney. Por isso, na
casa, ama tudo o que nela ficou do capitão: o óculo na varanda do quarto dele,
o bezerro dourado que trouxe de uma das suas muitas viagens, o retrato dele
toscamente pintado, fardado de lobo de mar, com um sorriso entre o sarcástico e
o diabólico.
Uma mulher em sombra (o luto, os véus) troca um morto por um fantasma. E
se o morto a quisera enterrar viva (em Londres) o fantasma vai e vem do mar,
atravessa-lhe as janelas e propõe-lhe a mágica dissolução, tão mágica como esse
plano, entre todos mágico, em que, na primeira noite passada na velha casa,
Lucy acorda e vê o mar através da janela, essa janela que fechara antes e que
durante o sono se abriu. E, quando já tem a certeza que ele está ali, Mrs. Muir
desencadeia a aparição. Levanta-se, vai à cozinha e risca um fósforo para
acender o lume. As luzes todas apagam-se, a trovoada e os relâmpagos começam. E
é nesse momento que ela diz: “I know you are there.” E Rex Harrison surge
diante dela, malcriadissimo como só Rex Harrison soube ser, para uma discussão
nada metafísica sobre o direito de qualquer deles à posse exclusiva da casa.
Fantasma de desejo, Harrison é também fantasma da violação (de desejo da
violação), donde a agressividade irônica das relações entre eles.
E se Rex Harrison exige que o retrato dele volte para o quarto, que é
agora quarto dela, Gene Tierney tapa-o quando se despe, escondendo a nudez da
imagem em movimento ao olhar da imagem fixa.
É depois que começa, nos muitos encontros com o fantasma, a felicidade
dela, tão mais intensa quanto mais necrófila e solitária. “I’m so happy”, diz.
Debalde, o fantasma lhe responde que tudo quanto ela vê é uma ilusão, “like a
blasted lantern slide.” Debalde, o
fantasma lhe diz: “I’m here because you believe I’m here.” Essa ilusão, essa
crença, são o mundo de Mrs. Muir, tanto como o mar e a praia, ou tanto como a
música off (que também está ali e não está ali), uma das mais
geniais partituras do genial Bernard Herrmann (deêm-me só essa música e já todo
o filme vem atrás).
Quando o Capitão lhe diz que é uma ilusão, Lucy Muir responde que “It’s
not very convincing, but I suppose it’s all right”. E ilusão não é o livro que
o Capitão lhe dita, memórias de marinheiro escritas por uma mulher. “What they didn't know about life would fill an encyclopaedia.” E, entre as muitas
coisas que ela não sabia, está essa palavra que dá origem a uma das mais
prodigiosas fintas jamais feitas aos códigos dos bons tempos de Hollywood. O
capitão dita-a, sem que o ouçamos. Ela pára de escrever à máquina, cora e
recusa-se a escrevê-la. O capitão berra e insulta. A câmera coloca-se em frente
de Gene Tierney e, dedo a dedo, hesitantemente, esta procura, letra a letra, a
palavra que tem quatro. E quem se lembra do teclado AZERT, não tem muita
dificuldade, seguindo-lhe os movimentos, em saber que ela começou no F e acabou
no K. Foi a primeira vez que esta palavra, não aparecendo, apareceu num fIlme.
Como o fantasma. Exatamente como o fantasma, também fantasma dela.
O livro faz Mrs. Muir voltar a Londres. O livro publica-se, não
fantomaticamente. E Londres e o livro vão trazer ao filme o terceiro “morto”: o
escritorzeco Miles Fairley (George Sanders). Há sempre um momento em que, no
reino dos mortos, alguém se volta para trás, à busca de uma imagem mais “real”.
Gene Tierney inicia o seu terceiro “love affair”, com a fraca réplica do
capitão, que é a presença sedutora de George Sanders. O fantasma começa por
tentar expulsá-lo. Depois, rende-se à vida, no seu segundo “suicídio”. E é
enquanto ela dorme (“Ah! Comme Gene Tierney est belle quand elle dort!”) que
Rex Harrison se vem despedir dela, na mais bela seqüência de sempre da história
de Hollywood. “Oh, Lucia” (a voz de Harrison, a música de
Herrmann) “you are so little and so lovely.” Depois, recita-lhe Keats (Ode to a
Nightingale) e fala-lhe de como teria gostado de a levar a ver o sol da
meia-noite, os fiordes da Noruega. “What you have
missed, Lucia, by being born too late to travel the Seven Seas with me! And what I've missed
too.” Depois, ele que, antes, num momento em que ela demasiado se aproximou
dele, lhe dissera rudemente: “Keep your distances, madam”, inclina-se para ela
num quase beijo que, de novo, interrompe. E afasta-se para a janela e para o
óculo, que nunca mais vai poder ver o invisível. No sol da manhã seguinte, o
capitão desapareceu da vida e da casa de Lucy Muir, que só o capitão tratava
por Lucia, como se ela viesse de Lammermoor.
Mas com ele - pouco depois dele - desaparece também George Sanders.
Quando Gene Tierney o vem buscar a terra firme (a casa dele) descobre que esse
outro “sonho” ocultava a dura realidade de uma banal mentira e de uma banal
mediocridade (Sanders era casado e a sua história uma história contada a muitas
e passada com muitas). Daí para diante não há mais homens - vivos ou mortos -
na vida de Mrs. Muir.
E o tempo começa a passar muito depressa. Depressa envelhece Mrs. Muir.
Depressa a filha cresce e a filha casa, para só então contar à mãe que ela
também, em criança, vira o fantasma. E depressa chega uma tarde (um fim de
tarde) em que Mrs. Muir, de cabelos brancos, se sente muito cansada e pede à
criada um copo de leite. Não chega a bebê-lo. O copo escorrega-lhe das mãos e
Mrs. Muir morre, agasalhada, na cadeira em frente ao mar em que sempre se
sentou. A imagem desdobra-se. E os dois fantasmas - o dele e o dela, como foram
quando eram - ficam a olhar para a velha morta. Depois, descem as escadas de mãos
dadas e depois abrem a porta e desaparecem, entre a música, no meio da névoa.
De todas as artes, o cinema é a mais onírica. E essa dimensão nunca
existiu tanto como nos filmes “germanizados” ou “germanizantes” feitos em
Hollywood nos forties. Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), o
realizador de The Ghost and Mrs. Muir e que só agora nomeio,
não era alemão, mas descendia de alemães e na Alemanha se formou. Toda a sua
vida procurou o cinema total. Apesar de muitas outras obrasprimas, nunca
esteve tão perto como neste filme de que disse recordar sobretudo “o vento, o
mar e a procura de qualquer coisa de diferente”. “E as decepções que se tem.”
Não há filme mais triste. Não há filme mais bonito. Deixem-me ficar ao
pé da mulher que nasceu tarde demais para atravessar os sete mares e para ver o
sol da meia-noite. Deixem-me ficar ao pé do capitão que morreu cedo demais para
a poder beijar ou para poder deitar-se com ela. Ou deixem-me acreditar que não
há cedo nem tarde e que o único amor que existe - porque é o único em que
acreditamos que existe - é o amor surreal, esse que Rex Harrison e Gene Tierney
encontram no final, quando desaparecem na névoa, atravessada a última porta.
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