domingo, 8 de julho de 2018

Crítica de "Banjiku" (A Flor do Crepúsculo)


Mikio Naruse 

“Bangiku” ["A Flor do Crepúsculo" no Brasil, "Late Chrysanthemums"] prova cabalmente que a mais antiga profissão do mundo é o dinheiro. Se recuarmos todos os séculos e dias possíveis, mesmo antes da Bíblia, veremos que só existe o apelo da carne porque existe o apelo do poder. Toda a minúscula excepção confirma a grande regra. O último plano deste terrível e aflito filme realizado por Mikio Naruse em 1954, a descida (e não a subida, como no título mais famoso da sua filmografia) de uma mulher por aquelas escadas num picado que perde imediatamente a sua nominação técnica ou estética para ser a imagem mais acabada da perdição e do abismo desse apelo mais antigo do que o mundo, vale triliões de ienes ou de dólares. Kin, o pêndulo ou o ritmo cardíaco que marca o ritmo a todos os demais dependentes dela, a protagonista cobradora de rendas e de dívidas várias (tipo a Emel dos carros multados e rebocados em Lisboa, o fisco partidário, especuladores imobiliários no caso português ou demais abutres citadinos engravatadinhos) que trocou todos os sonhos e possibilidades de amor oferecidos em bandejas de prata, preferiu casar-se com o vil metal e o castrado homem que a acompanha nessa curva descendente não conseguirá procriar mais do que novos esquemas para a desmultiplicação do metal.

“Bangiku” é um puzzle, um mosaico, uma polifonia, tremendo nesses ziguezagues quatro mulheres aninhadas pelo passado de maneira diversa, e só aquela que se rende ou não se rende pode aceder a esse portal triunfante ou não. Quatro mulheres, ou três, pois a personagem da menina muda pode ter sido tudo ou nada na sua curta caminhada, foram mulheres da vida, e parece já não lhes ser permitida a possibilidade da paixão para lá ou para cá da moeda de troca. Vamos a elas: a cobradora, diz-se por lá algumas vezes, era e continua a ser a mais irresistível e talentosa de todas, e muitos anos depois da reforma ainda é apetecível para muitos. Teve amantes e pretendentes sem conta descontando os clientes ou mesmo com eles, mas vamos conhecer um que tentou matar-se com ela (e aqui entram valores, lendas e tradições nipónicas), foi preso e precisa de dinheiro dela; e outro mais, o soldado do costume que amou até ao presente e de quem guardou o retrato, ainda belo e desejante, mas que precisa tanto de dinheiro como o outro e que mesmo se dando por inteiro a ela é literalmente queimado e trocado pela moeda da ocasião; outro anjo, parecido com a muda, em mais um paralelismo significante, que despoleta a voz-off dela como diálogo interior e trucidante à Faulkner, cavalgante como Virginia Woolf, cedendo degrau ao único momento onde ela se despe toda, quando lhe oferece a música que busca o milésimo de redenção. Depois, a mais comovente delas, essa viúva sem remédios químicos e sentimentais para a pele e para a alma, a que tem um filho que se encontra náufrago do dia-a-dia e que arranjou uma amante para alimentar o vício, mas que no tempo curto mas retumbante do filme ainda a vai salvar; certos dias, lá para trás da narrativa que vamos auscultando, essa mãe exigiu-lhe que a tratasse por irmã, para conveniências várias que ficarão no segredo e nos silêncios dos Deuses mas também pela tramada da vergonha. E, penúltima das rainhas e princesas, a sua companheira, com quem se costuma embebedar, partilhar a carne quando existe ou as chagas comuns; essa tem uma filha moderna e liberal que vai deixar a casa para um casamento que a todas parece precipitado e que não costuma pedir desculpas nem medir consequências, estava boa para o filho da colega. Por último, mas tão bela e primeira como qualquer delas, a tal muda, que parecendo muito jovem talvez guarde mesmo todos os segredos dentro dela, os existentes e os vindouros, a mentira algures esquecível e a verdade duradoura como rocha, como alguém sugere, e fiel seja então um relicário do profano, pronta para uma explosão que parece nunca chegará.

Todas elas se vão lembrando dos seus tempos de gueixa, dos sonhos perdidos, dos sonhos possíveis, ilusões perdidas e rampas de salvação, todas vão analisar uma e outra vez até à vez derradeira as marcas eternas, e descontando (ou seja, contando mais dinheiro) a tal que mata tudo isso por um desejo e por uma posse do absoluto, aquilo que será a estampa de Deus na terra ou a cavalgada orgástica sem descrição romanesca, todas vão duvidar e perguntar sobre a existência, ladainha de rabo na boca; e na noite sem fim, no fundo dela, nas camadas mais escuras e densas, Mikio Naruse, vai olhando um e o outro lado, um e outro lado, sem ser o orquestrador de uma sinfonia da dor mas antes tentando curar e perceber, tentando pintar para os futuros percebam tais trilhos, e a tensão, o afago, as cordas e os nervos esticados e os elos que já se foram vão compondo uma paisagem e uma música nela contida que é a história daquele país e que só é assim pelas histórias dos outros países e das outras pessoas; todos os holocaustos e genocídios e toda a sede de poder e de dinheiro. Toda a dor.

Nessa noite tudo se liga e penetra, tudo é um e a mesma dor, para lá ou cá do que cada um faz com ela; assim a chuva perfaz uma imagem e um espaço distante, completa, corresponde, contradiz; uma vassoura a varrer o chão, acto tão inocente e corriqueiro, torna-se alegoria pela montagem cinematográfica, e mais do que isso une a crispação dos corpos com essa matéria sonora agreste; até se chegar à dimensão mais cava que revela o horror e solidão que é o horizonte de cada personagem, a cobradora de dívidas a desprezar a cama do amante e esse sono a tornar-se convulso na casa das amigas, as amigas a falarem com o pesadelo e a verem a cara dele e a cobradora de dívidas a rir-se desse semblante; a insónia a ser humilhada e a ficar na elipse do sarcasmo e do monopólio; as tempestades, raios e trovões, janelas e gatos, ladrões da noite e o tecto branco a assomarem e a assombrarem o mesmo lugar e tempo desfazendo e ignorando as regras e os raccords do cinema.

“Bangiku” é um filme de raiva, de justiça, de reposição continua e paciente do inadiável, até à irrisão e picaresco final com que fecha a cortina de um tal teatro, categoricamente e no inesperado que magoa mais. Raiva que vai sendo fundida e vomitada por baldes de água atirados às costas de quem se coloca a jeito como se faz aos cachorros vira-lata, diálogo indirecto e às três ou mais tabelas: «se nos precipitamos, o dinheiro cresce como uma bola de neve», comissões não oficiais, luvas de cores várias, numerário já a flutuar como nuvens, virtual, os cachorros e o faro destes a ser confundido e a misturar-se com o dos profissionais humanos... «Tranque as portas. A primavera é a época dos arrombadores» é o único conselho que um cobrador pode dar ao outro. Para a ambição desembocar na referida marcha nupcial, logo depois da viúva e da sua parceira imitarem o andar e o orgulho das novatas, oferecendo o ridículo à tragédia.

Onde Kenji Mizoguchi deixa correr, à maneira do rio e do vento, inexorável progressão, para se descobrir de rompante as penas e as culpas em cordas de enforcamento que revelam atrozmente e num suplicio deslizante o carácter fragmentário do Homem (“Akasen chitai”, 1956), Naruse trabalha imediatamente a partir do chão partido, do solo devastado da nossa actuação, do fundo e da atmosfera estilhaçadas quer pelas guerras mundiais quer pelas guerras caseiras, restando compor, unir através dos suspiros inaudíveis ou das forças da natureza a nossa partilha e o nosso composto; observa e trabalha depois de uma explosão, de terem rebentado as bordas do rio e os diques, indo à procura dos fragmentos, do passado, tacteando assim sem ameaças que não a de cada um dentro de si mesmo, pulando de um ser e do seu lar para outro ser e outro lar, cada animal diferente e fatalmente igual, reinventado todas as coordenadas e funções desta arte que se apega a cada partícula de real tal como os fantasmas a este. Naruse mostrou, descontando os segredos impronunciáveis e inacessíveis, que basta a frontal e decisiva imposição de concreto para todo o seu contrário advir. Começando o cinema sempre de novo. Uma segunda primavera a todos prometida. Crisântemos ressuscitados. Fogachos brutos e delicados como só uma Alma mater pode ousar. Um filme de Mães e dos seus pressentimentos, é isto, Naruse.

José Oliveira
Maio de 2018
Texto extraído de https://raging-b.blogspot.com/

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