domingo, 28 de abril de 2019

Uma mulher que você precisa conhecer

por Matthew Eng

 
Desde que Marlon Brando pegou de surpresa a luva branca de Eva Marie Saint em Sindicato de ladrões não surgia uma forma inteiramente nova de atuação originada da potência de um ator na maior performance de sua vida. A atuação de Brando permanece – indisputável – como uma das maiores já vistas em celuloide, mas cada vez mais, francamente e com o devido respeito à Stella Adler, a de Rowlands neste filme parece a mais arriscada e, portanto, destemida façanha.

Na primeira vez em que vi Uma mulher sob influência na faculdade, eu fui muito intimidado pela volatilidade intramural da história e pela declarada falta de pudores do cinema de Cassavetes para realmente entender – muito menos apreciar completamente – as excelentes sutilezas do desempenho de Rowlands. Eu assisti a Uma Mulher novamente pela segunda vez em agosto passado, preparado para me submeter a essa experiência cinematográfica assustadora e emocionalmente desgastante mais uma vez. Eu esperava me emocionar, mas não esperava ter o ar praticamente arrancado dos meus pulmões, meus olhos jorrando e meu coração subindo rapidamente em direção à minha garganta enquanto Mabel tentava desesperadamente afastar seu marido amoroso mas violentamente exasperado, Nick (Peter Falk), o homem a quem ela é intrínseca e desesperadamente ligada, que acaba de recorrer à ajuda de um médico para levá-la para um manicômio no inesquecível e traumático colapso no meio do filme. 

Enquanto Brando e seus colegas do Método trabalhavam a partir de um sistema intensamente estudado de imersão, motivação e reação que havia sido fundado décadas antes por Stanislavski, Rowlands quase que sozinha liderou seu próprio movimento de ser na tela descomunalmente emocional enquanto psicologicamente guiada, uma escola de desempenho que só parece inconsequente para aqueles que observam as loucuras furiosas de Rowlands de uma perspectiva puramente superficial. A sublime atuação de Rowlands é de forma quase inédita dirigida pelo id: suas heroínas sitiadas operam a partir de reservas tão profundas que podem ser acessadas por Rowlands, que não apenas estabelece momentos, mas também luta com eles para extrair camadas ainda mais robustas de autenticidade. Esticando o corpo esguio e a voz maleável até seus pontos de completa ruptura, Rowlands exibe esta autenticidade, esta necessidade, com todos os brilhos de emoção que a tela poderia conter. Suas personagens encurraladas e instáveis ​​agem não porque Rowlands acha que deveriam, mas porque precisam, a fim de que sejam ouvidas, vistas e, quem sabe, compreendidas.


Uma mulher foi um divisor de águas no cinema americano, mas também uma marca sem paralelos da atuação norte-americana que foi recebida em êxtase pelos grupos de críticos e associações de premiação. Cassavetes recebeu uma indicação ao prêmio de Melhor Diretor e Rowlands, claro, conquistou uma vaga na maior disputa de Melhor Atriz de todos os tempos no Oscar de 1974, apenas para ver sua óbvia vitória entregue à reconhecidamente maravilhosa Ellen Burstyn em Alice não vive mais aqui. Em retrospecto, talvez a encarnação selvagem de Rowlands fosse chocante demais, a desesperança de sua Mabel perturbadora demais para os votantes da Academia, os quais acabaram por votar no papel de uma mãe solteira resiliente da classe trabalhadora que é, na verdade, uma encarnação muito mais heroica da feminilidade da era setentista?


De qualquer maneira, a obra-prima de Rowlands é aquela se tornou o critério, um momento inestimável na história do cinema americano que irá perdurar mais que qualquer disputa do Oscar. Ela se tornou, junto com o pai fundador Cassavetes, uma embaixadora vitalícia e defensora orgulhosa do cinema indie, tendo chegado a declarar “eu amo o cinema independente. Não concordo com muito dele, mas este é o ponto”.



Após Uma Mulher, Rowlands fez mais três filmes com Cassavetes até a morte prematura do diretor em 1989 aos 59 anos. E ela está estupenda em todos: como uma contrariada diva dos palcos em passos falsos que só nós podemos ver em Noite de Estreia, como uma irritadiça amante da máfia tornada protetora de criança e vingadora de batom em Gloria (sua segunda indicação ao Oscar) e como a emocionante e avoada mãe-esposa em Amantes, no qual Rowlands faz a mais melancólica performance screwball de todos os tempos na habilidosa carta de amor de Cassavetes a todos os laços imperfeitos de família. Todos esses filmes merecem ser vistos, bem como o contemplativo A Outra de Woody Allen, no qual Rowlands abre mão de todos maneirismos e consegue queimar um buraco na tela de forma sutil e cativante no papel de uma professora de filosofia cuja confiança começa a vacilar diante de um despertar pessoal desagradável.



Retirado de “It’s About Damn Time Gena Rowlands Got An Oscar” (novembro de 2015). Disponível em https://www.tribecafilm.com/stories/it-s-about-damn-time-gena-rowlands-got-an-oscar-john-cassavetes-honorary-oscar-2015. Tradução de Giovanni Comodo.

sábado, 27 de abril de 2019

Paul Verhoeven sobre Isabelle Huppert: "Vi-a acontecer e filmei"


Ele deixou-a ir para zonas que não estavam previstas no argumento. Dizia cut, ela continuava. “Vi-a acontecer e filmei”. Verhoeven dirigiu Huppert, Huppert dirigiu Verhoeven. Elle, elegante, irónico, melancólico, a aproximar-se do Mal.

Por Vasco Câmara, 18 de Novembro de 2016.

Depois da sua metamorfose como cineasta americano – Robocop (1987), Instinto Fatal (1992) ou Showgirls (1995) o holandês, 78 anos, regressou à sua Europa em 2006 (O Livro Negro). Agora, dez anos depois, mostra-se como se fosse um cineasta francês, mergulhando num território e numa cultura que até já foram seus, pois viveu em Paris “há mais 60 anos”. Teve agora de voltar a reforçar os conhecimentos da língua. Para esse movimento imersivo, Paul Verhoeven decidiu que na rodagem de Elle/Ela entre a equipa técnica e actores não se falaria inglês, só se falaria francês.

Parecendo uma programada sintonia com o momento de reavaliação da sua obra – as retrospectivas, as entrevistas e as capas de revista no último ano – Elle emerge elegante, irónico, reflexivo, até melancólico, sendo a história de uma mulher violada (Isabelle Huppert) e do que parece ser o seu périplo de vingança. Elle é uma acrobacia de reinvenção. É um filme de acção contemplativo, afinal, em que Verhoeven coloca nas alturas do êxtase, se calhar mesmo da santidade, mais um exemplar das suas heroínas. Será a variação definitiva, um fecho para esse segmento da sua obra, o das guerrilheiras que já tiveram, em filmes anteriores, os rostos e acções de Renée Soutendijk, Sharon Stone, Elizabeth Berkley ou Carice van Houten? É que há aqui Isabelle Huppert. "Tudo o que ela fazia era óptimo, não havia necessidade de a corrigir", conta Verhoeven. "Para além das conversas sobre mise-en-scène, sobre a colocação da câmara ou dos actores, não houve conversas com ela sobre motivações psicológicas [da personagem]. Vi-a acontecer e filmei. É absolutamente único sentir perante um actor que qualquer coisa que se lhe diga diminui a sua performance."

Utiliza, numa sequência de festa, Lust for life, canção de Iggy Pop, que já tinha utilizado em Spetters (1980). Não foi uma coincidência, pois não? A canção do filme de uma das suas primeiras heroínas, Renee Soutendijk, é a canção do filme da sua mais recente heroína, Isabelle Huppert.

Foi parcialmente uma coincidência. Quando começámos a filmar a cena, levei seis canções para a rodagem, havia ainda Bowie, Bryan Ferry, Arcade Fire e mais umas quantas. Toquei para os figurantes e perguntei de que canção é que eles mais gostavam para dançar. A escolha unânime foi Lust for life. Foi o que fiz. As outras eram favoritas minhas também, mas eles acharam que essa era a mais agradável, mais ritmada, que lhes dava maior prazer dançar. Foi uma coincidência o facto de a terem escolhido, já não o foi o facto de a ter levado para o set.

É que o título, Lust for life, diz algo sobre a energia das suas personagens femininas, como o programa delas.

Completamente. Por isso a pus na lista. Mas se os meus figurantes tivessem preferido outra, eu teria escolhido outra. Queria que a cena funcionasse, era importante que eles gostassem. Felizmente escolheram uma das minhas canções favoritas, que tinha usado muito pouco em Spetters e é verdade que sempre pensei dar-lhe outra hipótese e utilizá-la de novo. É também o título de um filme sobre Vincent van Gogh de que gosto muito [Lust for Life/A Vida Apaixonada de Van Gogh, Vincent Minnelli, 1956].

Mesmo com essa intervenção da coincidência, não deixa de fazer sentido que a personagem de Isabelle Huppert, Michèle LeBlanc, fique ligada à galeria das suas personagens femininas e pudéssemos desenhar um arco da evolução dessa genealogia, onde ela começou – Renée Soutendijk em Spetters – e onde ela chegou. Huppert e Elle acrescentam algo que não poderia ser possível no passado. É um filme melancólico, este. Há um clima contemplativo, introduzido por Huppert, numa “família” de mulheres que seguiram sempre em frente atrás do seu objectivo sem se questionarem. Concorda?

Certamente. Não sei se todas estas coisas são claras para nós quando tomamos as nossas decisões; provavelmente não vamos tão longe no momento em que nos decidimos por um projecto. Spetters foi um projecto meu e do meu argumentista, Elle é baseado num livro, a personagem tinha sido criada por Philippe Djian [no livro Oh...]. Diria que a personagem de Renné em Spetters é muito clara, e o argumento é muito claro, no que toca às razões por que faz certas coisas. Ela está farta de vender batatas fritas e quer sair dessa existência. Quando encontra três tipos e escolhe o que ela pensa que vai ser campeão, e aposta nele, o seu objectivo é muito definido. E o filme parece-me claro na forma como foi estruturado e filmado. Ela persegue alguma coisa, não é? Seduz deliberadamente. Quer subir de posição social.

No caso da personagem de Isabelle Huppert, as razões para ela fazer o que faz, por exemplo, quando descobre quem é o seu violador, são mais ambíguas e turvas. Para mim, teria de ser deliberado não fazer psicologia com o que está ali. Há informação sobre o passado dela, mas não é argumentado, ninguém diz que ela passou por uma experiência violenta com o pai, que isso deixou nela uma marca de masoquismo e ficou viciada na violência, isso ou outra análise freudiana que se quisesse tentar. Não há nada de claro nas suas motivações. Parece às vezes que há a intromissão da coincidência, nos seus actos e encontros. Não há uma clara relação de causalidade. Era isso que eu queria quando trabalhava com o argumentista [David Birke] e quando filmava.

Os artistas ficam por vezes surpreendidos com as interpretações do seu trabalho. Não porque alguém acrescenta algo que não está lá, mas porque o artista muitas vezes não está consciente do que está lá. Na verdade, o artista não deve estar consciente das razões por que faz as coisas. Isso limita as possibilidade. O meu programa com Elle era deixar tudo em aberto. E deixar que o espectador preenchesse com as suas respostas os buracos. Ora, não há buraco algum no percurso de Renée em Spetters. Sabemos quem é, o que procura, o que ganha e o que perde, como salta de homem em homem, e como no final conseguiu alguma progressão: da caravana para o bar. Em Elle é o outro lado: não sabemos exactamente porque é que as pessoas fazem o que fazem.

Fala numa certa melancolia, numa certa atitude reflexiva: sim, como resultado do meu gesto de não preencher os buracos todos, e de o espectador poder completar e preencher o que não é explícito, fazendo-o reflectir sobre a personagem. O filme sugere algo que faz o espectador reflectir sobre a personagem, as suas acções e motivações: “posso seguir com ela, e, mesmo que não possa, será que ela está a ser autêntica”?

Temos a sensação de que Michèle está a descobrir coisas sobre si própria ao mesmo tempo que nós. Ou que está às escuras tanto quanto o espectador.

Olhe, eu sei, porque Isabelle me disse, que às vezes ela própria não sabia porque é que a personagem tinha certas atitudes, mas que conseguia sempre representá-las. Mesmo a ela, quando chegava ao set pela manhã, cabia-lhe descobrir porque é que a personagem fazia o que tinha de fazer. Mesmo sabendo de cor o argumento, e sabia-o, cada manhã era uma aventura de descoberta da personagem: segui-la, ver onde é que ela a ia levar. Dentro dos parâmetros da cena tal como estava escrita, muitas vezes ela aplicava uma dose enorme da sua liberdade na interpretação da cena. Aquilo que em termos antiquados poderíamos dizer que era o demónio a dominar a mente da personagem... Isabelle queria saber onde é que isso levaria a personagem naquele dia. O que diz sobre Michèle aplica-se a Isabelle.

O projecto chegou-lhe através do produtor Saïd Ben Saïd, que lhe passou o livro. Onde é que a actriz entra?

Ela entra antes. Antes de Saïd me mandar o livro, estava eu em Los Angeles, Isabelle tinha-o lido, tinha falado com o autor e com o produtor. Queria fazer o filme. Saïd trabalhou com De Palma, Cronenberg, Walter Hill, por isso, quando falámos, estava assumido que íamos fazer um filme americano. Transpúnhamos a situação da personagem em Paris para uma cidade americana, tipo Seattle, Boston ou Chicago, com actores americanos. Foi assim que começámos. Estávamos à procura de um cast americano, não estávamos a ir em direcção a Isabelle. Mas, depois de o argumento ter sido transposto e adaptado à América, descobrimos que não havia interesse financeiro na co-produção, os estúdios ficaram com medo do argumento, por aquilo que acontece à personagem no terceiro acto. Mais importante, não havia actriz americana do nível A que quisesse fazer o filme. Foi depois do falhanço de Elle como filme americano que Saïd me disse que não chegaríamos a lado algum e desafiou-me a fazer o filme em francês. O passo seguinte foi telefonar a Isabelle Huppert – que ainda estava interessada.

Houve um momento na sua carreira em que como holandês se metamorfoseou em cineasta americano. Não só porque o dinheiro e o cast eram americanos, mas porque os filmes, numa espécie de excesso camaleónico, eram mais americanos do que os filmes americanos – Showgirls (1995) é um exemplo. Elle é a sua metamorfose como cineasta francês, torna-se parte...
 
... da cultura cinematográfica de um país, sim. Penso que consigo isso. A transição da Holanda para os EUA não foi fácil, culturalmente os EUA não são a Holanda, mas como estive sempre rodeado de americanos, produtores, equipa, actores – estou a pensar em Robocop (1987) —, tornei-me americano. Se reparar no filme que fiz antes de Robocop, Flesh+Blood (1985), havia dinheiro americano, 80, 90 por cento era americano, havia actores americanos, Jennifer Jason Leigh, mas a maior parte da equipa era holandesa e espanhola. Estava rodeado de europeus. E esse filme não se parece com nada. Estava a trabalhar supostamente para o mercado americano. Mike Medavoy, da Orion, disse-me nessa altura, depois do falhanço comercial e artístico do filme, que se fosse para os EUA e me rodeasse de americanos, estaria bem. E foi o que fiz, e fiz Robocop, tornando-me suficientemente americano.

Foi o que aconteceu com Elle. Vivi em França aos 17 anos, na altura o meu francês era óptimo, mas foi há mais de 60 anos e tudo desapareceu. Fiz um curso de Francês antes da rodagem, decidimos que ninguém no set falaria outra língua que não o francês. Foi a forma de me adaptar à cultura francesa, e ser mais francês do que os franceses.
 
Como é que, para ser cineasta “francês” e fazer um filme “francês”, utilizou Huppert, os filmes que ela fez, aquilo que, com eles, ela vem comunicando ao espectador? A personagem parece estar sempre dentro e fora – algo que é uma “marca” da actriz, espectadora de si própria.

Se o diz, é porque é isso o que acontece. Mas não foi consciente. As coisas por vezes acontecem independentemente do facto de sabermos que estão a acontecer. Não pensei nos outros papéis de Isabelle. Não pensei nesse lado de estar dentro e fora. E com ela não fiz nada daquelas coisas que se fazem com os actores: leitura de argumento, saber coisas sobre a personagem, nada, não fizemos nada disso. Fomos para o set e filmámos. Ao fim de um ou dois dias percebi logo que tinha de lhe dar toda a liberdade, e que ela chegaria perto da personagem, não precisava de lhe dizer nada, para ser mais assim ou assado.

Se comparar o que fiz com Sharon Stone [Instinto Fatal, 1982] e com Isabelle Huppert, teria de dizer que com Isabelle fiquei calado, ao passo que não parei de falar com Sharon Stone para conseguir o que eu queria. Com Isabelle, desde o primeiro take, foi claro para ela o que eu tinha na cabeça, ou o que estava no livro e no argumento. Ou então que o que ela tinha na cabeça era superior ao que eu tinha na cabeça ou ao que estava no livro ou no argumento. Aprendi rapidamente a confiar na intuição dela, a deixá-la ir para zonas que não estavam no argumento ou na minha cabeça e que apareciam quando ela actuava. Várias vezes dizia cut, ela continuava e eu deixava-a – tudo o que tem que ver com as reacções depois da descoberta do violador, a sequência do orgasmo, tudo isso é Isabelle a ir para além da página do argumento. Senti que, sendo ela mulher e eu homem, a intuição dela seria mais forte do que a minha. Cada coisa que ela fazia, de forma diferente ou superior, eu deixava-a. Tudo o que ela fazia era óptimo, não havia necessidade de a corrigir. Para além das conversas sobre mise-en-scène, sobre a colocação da câmara ou dos actores, não houve conversas com ela sobre motivações psicológicas. Vi-a acontecer e filmei. É absolutamente único sentir perante um actor que qualquer coisa que se lhe diga diminui a sua performance. Gastei imenso tempo a falar sobre guarda-roupa, sobre cores dos vestidos, make-up, coisas técnicas à volta dela, mas, quando a cena começava, e se gritava action, achei que devia deixá-la ir.

Em Cannes, na conferência de imprensa, falou de A Regra do Jogo, de Renoir. Há uma citação explícita, num diálogo: “Todas as pessoas têm as suas razões.” O filme vai periodicamente trazendo as personagens à volta de Isabelle para o primeiro plano, para elas dizerem das suas razões.

De outra forma a personagem estaria sempre a caminhar no vácuo. Essas personagens também servem para definir a personagem de Isabelle. A forma como ela reage ao seu ambiente dá explicações sobre ela. Penso que era importante construir estas personagens com toda a honestidade. Quando li o romance, percebi que sendo fã de thrillers – ela é violada, descobre quem é o violador e chegamos ao terceiro acto —, sendo fã de Hitchcock, tendo já feito isso em Instinto Fatal, o que me interessava era o que não tinha feito: fazer dos outros seres humanos, torná-los vivos, o que permitiria a Michèle definir-se enquanto personagem. Em Instinto Fatal não se sabe nada da personagem de Michael Douglas. Era film noir americano, sem informação sobre as personagens à volta da protagonista. Isso também é eliminado do thriller literário americano, algo que é reposto pelo thriller escandinavo. O meu amor por estes romances escandinavos levou-me, em Elle, a ir em direcção às outras personagens. É preciso sentir que elas estão tão vivas quanto a de Isabelle.

Sendo Michèle o agente da revelação da humanidade das outras personagens – como um desígnio renoiriano nela, o que é espantoso –, isso diz algo de fundamental sobre a humanidade da personagem.
 
Michèle define-se através da relação com os outros, os outros dessa forma têm oportunidade de se definirem e de ajudarem a definir Michèle. Eleva as pessoas, eleva Michèle. A Regra do Jogo (1939) é um dos melhores filmes jamais feitos, foi considerado imoral no seu tempo. Michèle de certa maneira pode ser vista, numa perspectiva americana, como imoral. Estudei esse filme durante a minha vida, vi-o quando jovem em França, vi-o muitas vezes depois. E, quando é assim, isso mexe com o nosso cérebro.

Retirado de https://www.publico.pt/2016/11/18/culturaipsilon/entrevista/via-acontecer-e-filmei-1750234

domingo, 14 de abril de 2019

“The Women Who Knew Too Much – Hitchcock and The Feminist Theory” (trechos da introdução)

por Tania Modleski 


Ao providenciar que alguns de seus filmes fossem retirados de circulação para serem relançados muitos anos depois, Alfred Hitchcock garantiu que a sua popularidade com um público de cinema inconstante permanecesse mais forte que nunca. Com essa manobra, pela qual ele conseguiu continuar exercendo um poder sem precedentes sobre um público de massa, Hitchcock revela uma semelhança com um dos seus tipos de personagens preferidos – a pessoa que exerce uma influência para além do túmulo.

Que essa pessoa seja muitas vezes uma mulher - Rebecca no filme de mesmo nome, Carlotta e Madeleine em Um Corpo que Cai, Sra. Bates em Psicose - não é sem interesse ou relevância para a tese deste livro: A grande necessidade de Hitchcock (exibida através da sua vida assim como na morte) e sua insistência em exercer controle autoral pode estar relacionado com o fato dos seus filmes estarem sempre no perigo de serem subvertidos por mulheres as quais o poder é ao mesmo tempo fascinante e parecem ilimitados.

É claro, alguns críticos inclinaram-se a rejeitar o apelo dos filmes atribuindo-os simplesmente ao desejo do público de massa pela violência sensacionalista - geralmente dirigida contra as mulheres - e às emoções "baratas e eróticas", citando “Mrs. Bates”. Embora esses críticos se considerem cada vez mais minoritários, é, não obstante, surpreendente refletir que as feministas se viram compelidas, intrigadas, enfurecidas e inspiradas pelas obras de Hitchcock.

O ensaio de Laura Mulvey, "Visual Pleasure and Narrative Cinema", que pode ser considerado o documento fundador da teoria feminista e psicanalista no cinema, foca nos filmes de Hitchcock para mostrar como as mulheres do cinema clássico de Hollywood são inevitavelmente transformadas em objetos passivos de impulsos voyeuristas e sádicos masculinos; como eles simplesmente existem para satisfazer os desejos e expressar as ansiedades dos homens na platéia; e como, por implicação, as espectadoras cinematográficas só podem ter uma relação masoquista com esse cinema.

A identificação pela parte da mulher com o cinema é muito mais complicada do que a teoria feminista tem entendido: longe de ser masoquista, a espectadora feminina é sempre pega num duplo desejo, identificando-se ao mesmo tempo não somente com o objeto passivo (feminino), mas também com o objeto ativo (geralmente) masculino. Vez após vez nos filmes do Hitchcock, a forte fascinação e identificação com o feminino revelada neles subverte as reivindicações de domínio e autoridade não somente nos personagens masculinos mas no próprio diretor.

O que eu desejo argumentar é que Hitchcock não é completamente misógino nem que o seu trabalho é em grande parte simpático às mulheres e a sua situação no patriarcado, mas que o seu trabalho é caracterizado por uma arrebatadora ambivalência sobre o feminino.

Apesar da frequente violência considerável com que as mulheres são tratadas nos filmes de Hitchcock, elas permanecem resistentes à assimilação patriarcal.


Em Hitchcock, a "verdade" da consciência patriarcal está na consciência feminista e depende justamente da representação de mulheres vitimadas tão freqüentemente encontradas em seus filmes. O paradoxo é tal que a solidariedade masculina (entre personagens, diretor, espectadores, como pode ser o caso) dá expressão aos sentimentos das mulheres de "raiva, desamparo, vitimização, opressão". Este ponto é a maior consequência para uma teoria do espectador feminino. Como eu argumento nos capítulos sobre Blackmail e Notorious, na medida em que os filmes de Hitchcock repetidamente revelam o modo como as mulheres são oprimidas no patriarcado, eles permitem que a espectadora sinta uma raiva que é muito diferente das reações masoquistas imputadas a ela por alguns críticos feministas”.

Além disso, eu acredito que nós precisamos destruir a visão centrada no homem começando por ver com os próprios olhos deles – porque por muito tempo não fomos somente fixadas nas suas visões, mas também forçadas por olhar o mundo através das suas lentes.


Algumas feministas criticaram Mulvey pela inadequada teoria sobre a espectadora feminina, outros objetaram a sua restrição sobre o espectador masculino à uma simples posição dominadora, argumentando que os homens nos filmes – ao menos em alguns filmes – podem também ser femininos, passivos, e masoquistas.


O medo do homem de permitir o voyeurismo feminino não provém do medo de que as mulheres olhem para outros homens extraindo (para eles talvez desfavoráveis) comparações, mas também está ligado ao temor de que a bissexualidade das mulheres possa torná-las competidoras para a conservação masculina.

Como os filmes de Hitchcock repetidamente demonstram, o sujeito masculino está muito ameaçado pela bissexualidade, e embora ele esteja ao mesmo tempo fascinado por isso; e é a mulher que paga por essa ambivalência – frequentemente com a sua própria vida.


Ao reconhecer a importância da negação na reação do espectador masculino [referente a uma possível identificação com os personagens femininos, passivos e vitimizados], podemos levar em conta um fato crucial ignorado pelos artigos discutidos (...) - o fato de o homem achar necessário reprimir certos aspectos "femininos" de si mesmo e projetá-los exclusivamente para a mulher, que suporta assim o sofrimento por ambos.

Uma análise do voyerismo e da diferença sexual é apenas uma das maneiras pelas quais um livro adotando uma abordagem especificamente feminista pode fornecer uma perspectiva muito necessária sobre os filmes de Hitchock. De fato, existem muitas questões as quais eu penso que começam a parecer diferentes quando vistas por uma mulher.


Na medida em que tudo aceita prontamente os ideais dos sistemas semióticos masculinos, o feminismo também precisa ser desafiado por uma abordagem "francamente inventiva", uma abordagem que, se parece alienígena a princípio, é tão somente porque está situada no reino do estranho - falando com uma voz que nos habita a todos, mas que para alguns de nós se tornou estranha através do medo e da repressão.

Tradução e seleção dos trechos por Natália Noronha Torato (abril/2019). Retirados da 3ª edição do livro (2016).

sábado, 13 de abril de 2019

“Muito mais do que uma mãe”: Stella Dallas e o melodrama maternal (trechos)

por Linda Williams


O propósito da análise de Laura Mulvey [em “Prazer visual e cinema narrativo”] é se aproximar o máximo possível das raízes da opressão sofrida pelas mulheres a fim de quebrar os códigos que impedem a produção da subjetividade feminina. Seu maior objetivo é, para tanto, uma prática de vanguarda na realização de filmes que irá quebrar o voyeurismo e fetichismo do cinema narrativo para “libertar o olhar da câmera para a sua materialidade no espaço-tempo” e “o olhar da plateia para a dialética, o distanciamento passional”. Para Mulvey, apenas a destruição radical das maiores formas de prazer narrativas, tão amarradas a ver mulheres como objetos, pode oferecer esperança para um cinema que será capaz de representar não mulheres como diferentes, mas diferentes mulheres.


Reiteradamente foi destacada uma carência na influente análise de Mulvey sobre o prazer visual e o cinema narrativo: não há qualquer discussão sobre a posição do sujeito espectadora. Apesar de várias obras feministas na crítica de cinema destacarem esta ausência, raras se aventuraram a preenchê-la. É muito mais fácil rejeitar os “dominantes” ou “institucionais” modos de representação de uma vez do que descobrir nestes modos existentes vislumbres de uma mais “autêntica” (um termo em si problemático) subjetividade feminina. E, no entanto, é neste segundo ato que está uma abordagem muito mais frutífera, não apenas como um meio para identificar qual prazer há para as espectadoras no cinema narrativo clássico, mas também como meio de desenvolvimento de novas representações estratégicas que irão falar melhor com a audiência feminina. Pois tal discurso precisa começar na linguagem, a qual, por mais circunscrita com a ideologia patriarcal, será reconhecida e compreendida pelas mulheres. Desta forma, novos filmes feministas podem aprender a construírem-se sobre os prazeres que existem nos modos fílmicos já familiares às mulheres. (...)


Em cada um dos seus incidentes de transgressão do comportamento adequado, há um momento no qual vemos primeiro o ponto de vista inocente de Stella e então o ponto de vista da comunidade ou do marido alienado que a julgam uma má mãe. Seu julgamento se baseia no fato de Stella insistir em fazer de sua maternidade uma experiência prazerosa dividindo o centro do palco com sua filha. A única coisa a qual ela se recusa a fazer, ao menos até o final do filme, é se retirar para o segundo plano.


Um conflito básico do filme, portanto, gira em torno da presença excessiva do corpo e vestimentas de Stella. Ela ostenta de maneira cada vez mais exagerada uma presença feminina a qual a comunidade ofendida prefere não ver. (A própria performance excessiva de Barbara Stanwyck contribui para este efeito. Eu não consigo pensar em outra estrela de cinema do período que tão voluntariamente contribuiria para exceder tanto os limites do bom gosto e de sex appeal em uma mesma performance.) Mas quanto mais babados, penas, peles e joias barulhentas que Stella usa, mais ela enfatiza sua inadequação patética. (...)


Quando se vê pelos olhos de sua filha, Stella também percebe algo mais. Pela primeira vez Stella enxerga a realidade de sua situação social do ponto de vista de sua filha – compreensiva, porém cada vez mais da alta sociedade – e seu sistema de valores: que ela é uma mulher sem educação lutando para fazer o melhor que pode com os recursos à sua disposição. E é esta visão, através dos olhos piedosos e maternais de sua filha – olhos que percebem, compreendem e perdoam a graciosidade social que Stella não tem – que a convence a montar a farsa que irá alienar Laurel para sempre, comprovando a ela que o patriarcado reivindicou saber o tempo todo: não é possível combinar desejo feminino com deveres maternais.


É neste ponto que Stella afirma, falsamente, que quer ser “algo mais do que só uma mãe”. A ironia não está apenas no fato de que não há outra coisa que ela queira ser, mas também em ao fingir isto para Laurel ela precisa atuar em uma dolorosa paródia fetichista de si própria. Ela então ressuscita a persona de “good-times” woman que ela já desejara ser (sem que nunca de fato tenha sido) apenas para convencer Laurel de que é uma mãe indigna. Em outras palavras, ela prova seu valor como mãe (seu desejo de uma vida material e social plena para sua filha) atuando em um enredo patentemente falso de autoabsorção narcisista -  ela finge ignorar Laurel espreguiçando-se de négligée, fumando um cigarro, escutando jazz e lendo uma revista chamada “Amor”.


Nesta cena a imagem convencional da mulher fetichizada ocorre com uma reviravolta particular, mesmo paródica. Pois enquanto o farsesco de feminilidade pode ser visto como uma tentativa de disfarçar uma suposta “falta” biológica [do falo] com uma compensação excessiva de gestos, roupas e apetrechos conotativamente femininos, aqui a fetichização funciona como um descarado e patético repúdio de faltas sociais prementes – de dinheiro, educação e poder. O espetáculo montado por Stella para o olhar de Laurel, assim, desloca as causas econômicas e sociais reais de sua suposta inadequação como mãe para um falso desejo de uma realização enquanto mulher – ser “algo mais do que só uma mãe”.



No começo do filme Stella finge uma preocupação maternal que ela não possuía (ao levar o lanche para seu irmão a fim de flertar com Stephen) para encontrar um lar melhor. Agora ela finge a falta da mesma preocupação para encontrar um lar melhor para Laurel. Ambos papéis são claramente falsos. E apesar de nenhum deles nos permitir a ver a mulher “autêntica” por trás da máscara, a sucessão de papéis que culminam na transcendente auto-anulação na cena da janela – na qual Stella abandona todas as suas máscaras a fim de se tornar uma espectadora anônima de sua filha no papel de noiva – permite um vislumbre das realidades econômicas e sociais que produziram estes mesmos papéis. A real ofensa de Stella, aos olhos da comunidade que impiedosamente a ostraciza, é ter tentado viver ambos papéis ao mesmo tempo.




Publicado em “Home is where the heart is: studies in melodrama and the woman’s films”, editado por Christine Gledhill, BFI Books (Londres, 1987). Seleção e tradução por Giovanni Comodo.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Clube do Filme: Cléo das 5 às 7

O Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias está ainda mais especial em abril. À semelhança de um clube do livro, toda quarta quarta-feira do mês nos encontramos para a discussão de um filme e textos relacionados. Com foco na Nouvelle Vague, o Clube se propõe a discutir as renovações técnicas, temáticas e filosóficas propostas pela crítica da época e seu cinema, que tomou de assalto a França e o mundo.

Neste mês, o ponto de partida é "Cléo, das 5 às 7" (1962) de Agnès Varda, marcando o início das nossas homenagens a uma das maiores diretoras da História, falecida no último 29 de março aos 90 anos.




Agnès Varda não é apenas a mais extraordinária dádiva de Diana do cinema francês, não apenas a mais aberta dos intelectuais preocupados sobretudo com seu coração e pelo que ele bate, não apenas o ser feminino mais dotado de sensibilidade e de espírito que possam encontrar aqueles que assombram (com olhos atentos) os círculos da cinefilia parisiense. Tudo isto seriam ainda qualidades restritivas, limitadas ao isolamento da Café Société. Contudo, até "Cléo", talvez por seu temperamento ainda fechado nas amarras do esnobismo e do preciosismo, não havia florescido totalmente à plena luz do dia.
Claude Beylie em “Le Triomphe de la femme”. Cahiers du Cinéma nº 130, abril de 1962.

A urgência das ruas, o olhar errante diante e atrás das câmeras, os dramas pouco abordados pelo cinema da época, a montagem moderna, todos aspectos característicos da Nouvelle Vague, serão alguns dos tópicos abordados, porém acrescidos da perspectiva da carreira da diretora como um todo: seu cinema confessional e inquieto, experimental e artesanal, suas buscas na ficção e no documentário, seu trabalho como fotógrafa e artista plástica.



"Cléo, das 5 às 7" foi lançado em DVD e Blu-ray no Brasil, disponível em lojas e locadoras. Também está disponível on-line em algumas plataformas (como Telecineplay).

Os textos para leitura (recomendada, não obrigatória):
2) "As duas faces de Agnès Varda", de Rafael Mesquita: http://www.contracampo.com.br/83/artduasfacesdevarda.htm
3) "Arquitetando Varda", de Leonardo Levis: http://www.contracampo.com.br/83/artarquitetando.htm

Serviço:
Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias
"Cléo das 5 às 7" (Cléo de 5 a 7, 1962), de Agnès Varda
Dia 24/04 (quarta quarta-feira do mês)
Das 19h15 às 21h45
Na Casa do Contador de Histórias
(Rua Trajano Reis, 325, São Francisco - Curitiba)
ENTRADA FRANCA

* Devido ao horário, não será exibido o filme na íntegra, mas alguns trechos (do filme indicado, de outros) ou mesmo curtas devem ser apresentados como pontos relevantes para a conversa.

Realização: Coletivo Atalante e Casa do Contador de Histórias