segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Do Movimento das Coisas, de Manuela Serra

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

O recorte é claro – tempo e espaço definidos – mas o filme não é nem paroquial e nem datado. Também não se inscreve no tempo mítico, pois é um filme realista: dá conta de uma realidade dura na qual, entretanto, sobram dignidade e alegria. Mulheres em sua faina ocupam a cena. Ao longe, na fumaça turbulenta da indústria, em vivo contraste com a névoa que a natureza estende como véu pacífico, é mostrada a face da transformação por vir. Se Rosselini, em Europa 51, escancarou a monstruosidade desta transformação, aqui ela é anunciada com delicadeza – como uma advertência.

Esse é o resultado esperado do trabalho de um realizador que se apruma em seu desejo: ele arranca algo do Real e o apresenta aos demais. A estes, resta o reconhecimento – na medida de sua própria sensibilidade e de seu repertório de experiências.

Se é verdade, como aponta Nietzsche, em suas Segundas Considerações Intempestivas (1874), que a História, para realizar sua função de acrescentar felicidade à vida das pessoas, precisa contemplar três dimensões – a monumental, a crítica e a antiquarista – então Manuela Serra nos presenteia com um documento poético que, servindo à terceira vertente da História, nos lava a alma nas águas do rio Lima e nos põe em irmandade com pessoas, simples e elevadas, que se entregaram, fazendo ofício de atores, ao registro da cineasta.

Cineasta capaz de dirigir o ator e a si mesma para esse foco, onde se dá o cruzamento dos raios da luz refletida – convergentes desde a realidade – raios que, depois, pelos poderes do instrumento ótico, serão dirigidos para deixar impressa na película a marca do Real: foco que é ponto de encontro onde dois, por um instante cósmico, ocupam o mesmo espaço e o mesmo tempo – e se reconhecem, um no outro.

Cineasta que, pela captura precisa, transforma o ator – no início, ator de si mesmo – em imagem prototípica, com a qual todo ser humano pode vir a se identificar, na medida de sua própria vulnerabilidade, dando, a cada um, ocasião de também comparecer ao ponto mágico de encontro.

Capturando o movimento das coisas, protegendo-o nos arquivos do Cinema, Manuela Serra registra uma realidade banhada em poesia e, destarte, a eterniza.

Sexta-feira 13, Novembro de 2020

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

João César Monteiro e Silvestre

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva


Em artigo publicado pela Cahiers du Cinéma[1], João César Monteiro alude a fazer filmes que invocam em vão o “gai savoir” dos elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Tal alusão aparece, no artigo, correlativa a um pergunta: Qual será o nosso destino? Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios e a coisa nenhuma? A que é que se parece a nossa tão vaga e tão obscura natureza? Para tentar responder a esta pergunta, tão candente quanto universal, é que ele invoca o “gai savoir” dos elfos. Estamos em cheio no campo do saber, mas não um saber qualquer.

Referindo-se a “elfos”, Monteiro faz uma dupla inscrição daquilo que convoca, em vão, para encontrar resposta à pergunta formulada: uma inscrição no tempo – o Medievo; outra, no espaço – a terra dos Celtas. Ou seja: ele busca a resposta na história de seu povo. Em vão, disse ele – e eu sublinho. Sublinho para lembrar que ele está no caminho certo: é preciso buscar na
própria história – na própria vida – uma possível resposta à questão sobre a própria natureza e o próprio destino. Mas é preciso buscar o próprio saber – Freud diria, construí-lo. Caso contrário, será em vão.

Retrocedendo: Em 1969, Jean-Luc Godard fez um filme intitulado “Le gai savoir”. Nas suas primeiras falas, os personages declaram um propósito: aprender. E o sumário da IMDB informa (eu traduzo): Como aprendemos? O que sabemos? Noite após noite, não muito longe do amanhecer, dois jovens, Patrícia e Emile, encontram-se num estúdio de som para discutir aprendizagem, discurso e o caminho para a revolução. O filme deveria ser uma versão para a TV francesa do livro Emílio, de Jean-Jacques Rousseau.

Emílio (ou Da Educação) é uma obra filosófica sobre a natureza do homem, escrita em 1762. Aborda temas políticos e filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade, particularmente explica como o indivíduo pode conservar sua bondade natural (Rousseau sustenta que o homem é bom por natureza), enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente corrupta. No Emílio, Rousseau propõe, mediante a descrição do homem, um sistema educativo que permita ao “homem natural” conviver com a corrupção sem se contagiar. Rousseau acompanha o tratado de uma história romanceada do jovem Emílio e seu tutor, para ilustrar como se deve educar o cidadão ideal. No entanto, Emílio, que não é um guia detalhado, considera-se hoje o primeiro tratado sobre filosofia da educação no mundo ocidental.[2]

O texto se divide em cinco “livros”, os três primeiros dedicados à infância de Emílio, o quarto à sua adolescência, e o quinto à educação de Sofia (a “mulher ideal” e futura esposa de Emílio) e à vida doméstica e civil deste, incluindo sua formação política. O Emílio foi proibido e queimado em Paris e em Genebra, ao tempo de sua publicação, o que o converteu, rapidamente, em um dos livros mais lidos na Europa. Durante a Revolução francesa, serviu como inspiração para o novo sistema educativo nacional.

O filme de Godard – consta que não chegou a ser exibido – toma distância da “encomenda” e vai encontrar Emílio em sua intenção pedagógica e em sua forma ensaística mais do que em seu conteúdo de fundo – Rousseau falava de uma “coleção de reflexões e observações, sem ordem e quase soltas”; Patrícia, no filme, fala de “um amontoado de experiências”.[3]

Se o filme de Godard, em seu conteúdo de fundo, não é fiel a Rousseau, ele é muito fiel a Nietzsche, no tratamento que este dá ao saber: à necessidade de retroceder desde as imagens e os sons até a experiência primeira que lhes dá origem. Afinal, este é um tema caro à obra nietzschiana, cujo título Godard adota para seu filme - Le Gai Savoir (o saber alegre). Este mesmo título ele vai reiterar em quadros do filme, em palavras manuscritas sobre imagens de revistas em quadrinhos – alusão ao retorno à infância, para recuperar a pureza do pecado original?

Apenas recordando, Nietzsche publicou, em 1882, uma obra[4], cujo título em francês é Le gai savoir. O livro reúne reflexões do filósofo sobre “a história do saber, a busca do conhecimento, os percalços do homem nessa busca histórica”.[5] Num fragmento escrito no mesmo ano, Nietzche anotara a expressão “La gaya scienza” (em provençal), como título de uma lista de trovadores provençais e suas canções. Na segunda edição de A gaia ciência, em 1887, o próprio autor incluiu tal expressão como subtítulo.

Então, rastreando em ordem cronológica, a partir da declaração feita pelo cineasta - Silvestre é um filme sobre a aprendizagem[6] - parece-me possível isolar entre as suas referências:

·         o filme Le Gai Savoir, de Godard (1969),

·         cuja referência parece ter sido Nietzsche (1882),

·         embora o filme parta de um texto de Jean-Jacques Rousseau (1762).

Agora, se tomamos a declaração de que se trata de um filme feito por alguém que invoca o “gai savoir” dos elfos2 para responder a questões fundadoras; como “gai savoir” é o título atribuído, em francês, à produção de trovadores provençais – produção esta que demarca o nascimento da poesia européia moderna, durante o século XII – e Silvestre é ambientado na Idade Média; e como os elfos são criaturas místicas da mitologia nórdica e céltica - também chamados de “elfos da luz” - que aparecem com freqüência na literatura medieval européia; e que o saber dos elfos nos remete a um tempo mítico; então, para mim, Monteiro está dizendo que, para chegar às origens do saber sobre quem somos nós, é preciso fazer retroceder a própria história, não apenas até o passado, mas até um tempo que não passa – o tempo do mito.

Fato é que, qualquer que seja o conteúdo latente sob o filme ou sob as declarações conscientes do cineasta, retrocedendo, de referência em referência, chegamos de volta à obra prima que Silvestre é: mostração da jornada que vai da (des)obediência à condição de espírito livre[7] - aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra.

Aplico o aforismo a ambos – a Silvestre, o filme; e a Monteiro, seu autor.

Curitiba, 10 de Novembro de 2020.




[1] Monteiro, J. C. Cahiers du Cinéma nº 460, outubro 1992, retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. Disponível aqui.

[2] Wikipédia Brasil. Disponível aqui.

[3] Marchiori, D. A Gaia Ciência, Le gai savoir.1969.720p.BluRay.AVC-mfcorrea

[4] Nistzsche, F. Die fröhliche Wissenschaft. 1882. Traduzível como “o alegre saber”, “o saber feliz” ou “a alegre ciência”. Em português a obra recebeu o título A Gaia Ciência.

[5] Mioranza. C. In Nietzsche, A Gaia Ciência, Editora Lafonte Ltda, 2017

[6] Tavares da Silva, A. O Silvestre é um filme sobre a aprendizagem. 1982. Disponível aqui.

[7] Nistzsche, F. Humano, demasiado humano - um livro para espíritos livres. 1878. Aforismo 225.

sábado, 7 de novembro de 2020

Podcast do Atalante: novo episódio #3


Já está no ar o novo episódio do Podcast do Atalante, nosso programa dedicado a discutir cinema e crítica cinematográfica.

Nesse episódio especial, fazemos a cobertura do 9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, comentamos sobre os filmes que nos chamaram mais a atenção e discutimos a função da imagem de arquivo nos festivais hoje em dia. Nos destaques, "Fakir" de Helena Ignez, "O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels" de Thiago Carvalho e "O Tango do viúvo e seu espelho deformador" de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento, entre outros.

No nosso próximo episódio iremos abordar o texto escolhido por vocês em votação pelo Instagram: "Da imagem à ideia" de Alexandre Astruc.

Ouça, participe, debata. E, se puder, fique em casa!


Disponível para ouvir aqui.

Apresentado e produzido por Catalina Sofia, Giovanni Comodo e Waleska Antunes. Editado por Catalina Sofia.

Realização: Coletivo Atalante

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Clube do Filme: O Movimento das Coisas

Excepcionalmente em novembro o Clube do Filme se reúne (virtualmente) na segunda quarta-feira do mês, dia 11, para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de novembro é "O Movimento das Coisas" (1985), de Manuela Serra.


“Histórias do quotidiano de silêncio. Em caminhos desertos de vento inquietante, numa aldeia Norte. Há um dia de trabalho atravessado por três famí- lias: quatro velhas, o campo, o pão, as galinhas, e, a lembrar-nos, clareiras de histórias velhíssimas de gestos saboreados em mineralógicas palavras. Uma família de dez filhos numa quinta mergulham na largueza do tempo, no gesto todo do trabalho, o pai corta uma árvore. Mais longe, a água do rio habitado por gente, numa barca, o sol, e o largo da aldeia, a ponte em construção, a varanda, a refeição, a densidade e o misticismo ao domingo, a missa e a feira: ritualizada ao sábado. Nestes fragmentos de cenário move-se Isabel, também, com os olhos postos no futuro, para lá dos outros, em que o sentido da vida é apenas viver."
- Teresa Sá.

O filme está disponível no YouTube (em caso de problemas com o link ou se desejar uma cópia um pouco melhor, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com).

Material complementar recomendado (textos bem breves):

A) O média-metragem
"35 Anos Depois, O Movimento das Coisas" (2014, 37 min), de José Oliveira, Mário Fernandes, Marta Ramos. Disponível aqui.
B)
Folha da sessão assinada pelo João Bénard da Costa. Disponível aqui.
C)
Texto por José Oliveira a respeito dos dois filmes indicados. Disponível aqui.
D) "A vida é tão mais ampla que o cinema", entrevista com a diretora. Disponível aqui.


Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: O Movimento das Coisas, de Manuela Serra
Dia 11/11 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Clube do Filme: Silvestre

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de setembro é "Silvestre" (1981), de João César Monteiro.


Silvestre, um filme, um coração de fogo; arde apaixonadamente - substância e matriz - da sua própria energia; sem defesa, transtorna-se, reaparece, renasce consciente da sua relatividade, humaniza-se em suma, como as matérias - teatro e vida - de que é tecido. Dos desertos do amor à solidão das estrelas, a travessia árdua, dolorosa e desordenada de todos os sonhos rebeldes: porque é pelo frio que subimos, ou, muito simplesmente, we can't go home again, como diziam nossos amigos que agora descansam.
- João César Monteiro.

O filme está disponível no YouTube (em caso de problemas com o link ou se desejar uma cópia um pouco melhor
, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com).

Textos recomendados para leituras, todos breves:

A) "Monteiro, A.K.A. João César" por Fernando Lopes. Disponível aqui.
B) "Silvestre", pelo próprio diretor. Disponível aqui.
C) "O Silvestre é um filme sobre a aprendizagem...", entrevista com o diretor. Disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: Silvestre, de João César Monteiro
Dia 28/10 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Belarmino, verdade e mentira

 por Vera Lúcia de Oliveira e Silva



O filme Belarmino [1] coloca na mesa a pergunta: Belarmino mente?
Respondo: Belarmino mente. Não mais do que você – ou eu.

O filme de Fernando Lopes mostra um contraponto entre o boxeur e seu manager, do qual emerge a pergunta: quem está mentindo?
Respondo de novo: provavelmente os dois.

Estou pensando nos conceitos de verdade e mentira explorados por Nietzsche[2] em seu sentido não-moral (ou extra moral): a mentira como inevitável e a verdade como ilusão.

Nietzsche faz a arqueologia do aparecimento da palavra, desde a coisa – das Ding – cujos atributos perceptíveis chegam a sensibilizar a consciência humana. Ele se dá conta de que, nesse primeiro momento, já há uma primeira quebra da verdade, pois só aquilo que estamos aptos a perceber chegará a produzir uma dada representação no sistema percepção-consciência. A coisa em si – das Ding an sich – como já dissera Kant antes dele, permanecerá incognoscível.

A partir dessa primeira captura fragmentária, o homem vai produzir uma sonoridade – um significante – que dirá, em ondas audíveis, aquilo que ele percebeu daquilo que da coisa é apreensível.

É sobre essa base frágil, através de convenções que os seres falantes estabelecem entre si, que se constrói um discurso cuja validade se deseja sustentável.

Freud vai tornar superlativa essa fragilidade quando nos aponta que, a própria percepção, mesmo daquilo que é plenamente perceptível, estará sempre enviesada pelo narcisismo e pelo gozo. Ele nos diz que, quando a verdade e a vaidade discordam, a verdade sai sempre perdendo; e que somos muito aptos a inclinar nossa percepção de modo a fazer com que a realidade seja lida de acordo com nosso modo próprio de satisfação. Ele vai mais longe, ao dizer que toda recordação é encobridora: se você se lembra, é porque não é bem assim – a lembrança já está corrigida segundo o gosto[3] daquele que se lembra.

Então... – com tanto perigo ameaçando a verdade; com tanta probabilidade de que a mentira seja tomada como verdadeira, não por uma decisão moral, mas por um incontornável nascimento precário; com a máxima possibilidade de engano, mesmo que não haja uma intenção consciente de enganar – ... fica a pergunta: de onde tiramos nossas certezas?

E mais: de onde tiramos nós a paixão pelas nossas certezas, a ponto de delas retirarmos critérios “seguros” para decidir entre o amor e o ódio?

Esta é a pergunta que me resta de Belarmino. A cada um, a resposta que lhe convém.

20 de Outubro de 2020.



[1] Fernando Lopes, cineasta, Belarmino, um dos filmes emblemáticos do Cinema Novo português, 1964.

[2] Nietzsche. F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. 1873. In Moraes Barros, F. Sobre verdade e mentira. Editora Hedra, São Paulo, 2012

[3] Zbigniew Herbert - O   poder do gosto (poema) “... no fundo era uma questão de gosto. Sim, de gosto, no qual habitam as fibras da alma e as cartilagens da consciência...”

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Silvestre

por João César Monteiro

Silvestre, um filme, um coração de fogo; arde apaixonadamente - substância e matriz - da sua própria energia; sem defesa, transtorna-se, reaparece, renasce consciente da sua relatividade, humaniza-se em suma, como as matérias - teatro e vida - de que é tecido.

Dos desertos do amor à solidão das estrelas, a travessia árdua, dolorosa e desordenada de todos os sonhos rebeldes: porque é pelo frio que subimos, ou, muito simplesmente, we can't go home again, como diziam nossos amigos que agora descansam.

Pelo fascismo fomos arrancados do cordão umbilical da nossa própria história, pulverizados: qual será o nosso destino? Atirados em mil pedaços, fazemos filmes que invocam em vão o gai savoir dos elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Atroz, a praia aberta por essa exploração - geografia irrisória de uma região fabulosa e conjecturada. Poderemos ainda ler os fragmentos do nosso corpo disperso? Voltar a ligá-los a um desejo cívico? O nosso destino é um palimpsesto insondável, um equívoco. Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios e a coisa nenhuma? A que é que se aprece a nossa tão vaga e tão obscura natureza?

in Cahiers du Cinéma nº 460, outubro 1992. Traduzido para português de Portugal por João Pedro Bénard.
Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Monteiro, A.K.A. João César

 por Fernando Lopes



Quando o conheci, nos idos de 62, no "Montebranco" do Saldanha (já a mania dos gelados...), ele era só o César que, com o Seixas, o APV, o António Escudeiro e o Zé Vaz Pereira, discutia filmes a manhã inteira e pensava nos "engates" - à época muito difíceis.

O César, no seu corpo desengonçado - meio Buster Keaton, meio Tati "avant la lettre" - era o mais ousado nesse desporto radical nos púdicos e hipócritas anos 60.

Aí por volta de 63 - com os Verdes Anos em rodagem e eu a preparar o Belarmino -, o grupo mudou-se, com armas e bagagens, para o "Vává", próximo da Ulyssea Filmes (laboratório e salas de montagem), que veio a ser a "alma mater" do "Cinema Novo Português" - assim mesmo, com maiúsculas e tudo!

O César passou a ser o João César, candidato a cineasta. Tal como nós todos.

O desporto radical do "engate" apurou-se (vejam os exemplos em todos os meus filmes...), graças às "Valquírias do Vává", como ele chamava às meninas da Faculdade, que por lá passavam todos os dias e que ele cortejava com modos de "dandy", pobre mas honrado.

O João César foi o primeiro "sem abrigo" que conheci (lembrem-se das Recordações da Casa Amarela), dormindo ao Deus dará, ora em casa do APV, ora do Escudeiro (aqui sempre com um olho lúbrico na Lela...), ora, sobretudo, do Cristiano de Freitas (que era de nós todos o único que tinha meios financeiros, carro de sport descapotável e, claro, muitas conquistas femininas). O João César privilegiava principalmente a casa do Cristiano (em frente ao "Vává"), porque de vez em quando sobrava para ele uma "dama de muito bem fazer a quem lho pedisse". E o João César não pedia, atacava mesmo e de mil maneiras, "porque amor não há feito", como disse o poeta (também se vê, ora burlesco, ora trágico, em todos os filmes dele).

Às tantas apareceu no "Vává" o velho Ricardo Malheiros, um produtor da estirpe do Fernão Mendes Pinto, que eu conhecera no Brasil, em circunstâncias alegremente rocambolescas e que, de regresso a este jardim à beira-mar plantado, me veio anunciar a criação de sua nova Produtora, pomposamente designada "Cultura Filmes" (com o filme do Paulo, o meu e o do António Macedo era preciso um ar sério para sacar dinheiro à Gulbenkian...).

O Ricardo pediu-me então que lhe apresentava realizadores da nova geração.

Disse-lhe: "Oh Ricardo, veio ao sítio certo porque estão aqui quase todos à mão de semear!". O APV, o Seixas e eu, lá fizémos uma caterva de tarefas alimentares (sem grande consequência cinematográfica, diga-se em abono de Lumière e de Méliès...), até o dia histórico, a vários níveis - e não apenas cinematográficos... -, em que consegui convencer o Ricardo a dar ao João a oportunidade de realizar o seu primeiríssimo filme:

Sophia

(que eu considero uma obra-prima e que contém já muito do que ele viria a fazer depois, desde Quem Espera por Sapatos de Defuntos até a última e pungente despedida que é o Vai e Vem). E é neste percurso inicial que ele deixou de ser, primeiro - o quase pejorativo César; depois - o mais familiar e amigável (às vezes, às vezes...) João César; por fim - tal como acabou por ser reconhecido, aqui e lá fora, o
João César Monteiro.

Considerado pela crítica internacional, e já agora também pela portuguesa, o mais singular realizador do nosso cinema, raiando o gênio, através do risco e da mais elaborada, culta e vernacular provocação. Sonora e visual. Olha, João de Deus: assim seja! Mas não pares de fustigar com o teu chicote a insidiosa "dark Lady" que, em hora funesta, te "engatou" num banco de jardim de Lisboa.

Janeiro de 2005.


Interior da Pastelaria "Vává", em foto sem data, sem os verdes anos.

Texto em português de Portugal. Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O realismo aterrorizante em ''Elle''

 por Catalina Sofia

Elle é um filme sobre uma mulher que vive sob o modus operandi masculino, não somente por viver em um mundo comum à todas as mulheres, dentro do cinema ou não. Mas falamos de um mundo essencialmente masculino que o filme mantém. Michèle joga o jogo. Entra nessa queda de braço, não mede esforços para se manter.

O filme começa com o que se diz ser o ápice do que pode chegar a violência masculina, o estupro. Mas o estupro — ainda que carregue toda violência e força que representa no filme, mesmo como fio condutor da narrativa— é apenas o resultado de toda uma violência explicitamente minuciosa e detalhada. Verhoeven nos choca com o estupro e não nos poupa com os demais gestos que serão de suma importância para construção desse universo violento ao longo do filme.

Michèle, após ser violentada, recolhe todos os cacos e entra em uma banheira, que logo é tomada por sangue. É uma mulher violentada, que se vê imersa nessa banheira de sangue, esperamos uma reação dessa personagem, e essa sensação de espera quase agoniante se intensificará à medida em que vemos a forma minimamente incômoda que ela lida com a situação.

Aqui, lembrando, falamos de um filme, e em um filme, se ela chamasse a polícia, a polícia iria atrás do seu algoz. Dificilmente teríamos a história de Michèle enfrentando e desafiando seu algoz em uma lógica mais realista, ainda que estejamos falando de um filme violentamente realista e talvez isso seja o mais assustador.

Sigamos. Conhecendo Michèle, ela jamais aceitaria perder e aqui entra o toque talvez mais polêmico e igualmente fascinante do filme: ela não aceita perder nesse mundo, porque esse mundo é dela e ela lutou por isso. Michèle não aceita essa violência, pelo pavor de se ver como menor, como vítima, que de fato é. E como ela não aceita? Se incorporando a essa violência, tentando se vingar por e através dela.


E se ela não aceita, ela vai se ver então submersa em violência dali pra frente e responder à altura, da maneira como lhe foi ensinada nos meios em que esteve. A ironia do destino nos mostra então que Michèle é chefe de uma produtora de jogos de videogame, algo dito como do “universo masculino” por excelência. Não basta ela ficar alguns minutos sozinha à noite em meio àqueles homens para que ela se sinta aterrorizada após o último incidente. É interessante notar em toda narrativa como ela tem que lidar na maior parte do tempo com homens e como nenhum está acima de qualquer suspeita e isso já colabora muito com o clima de tensão que o filme gera a partir desse primeiro episódio em que Michèle é violentada.

Duvidamos dos seus empregados da empresa (que fazem montagens com ela sendo penetrada por um monstro dentro do jogo que está sendo criado na produtora), duvidamos do seu amante (aliás, esposo da sua melhor amiga), duvidamos do seu ex-esposo (que é ex porque ele a agrediu fisicamente) e duvidamos do seu vizinho (homem pelo qual ela nutre um profundo desejo). Somente não duvidamos do seu filho, que é praticamente um “pau mandado” da noiva, completamente decadente e capenga, sem nenhum tipo de agregador do que se tem como “masculinidade” (ou repleto deles, nunca se sabe).




As relações em Elle, não se dão de forma despretensiosa e banal, todo gesto e conversa é pensado de forma a evidenciar esse clima prestes a transbordar. A vida de uma mulher dentro desse jogo sempre está por um fio, seja pelo medo ou seja pelo desejo, todos os passos a seguir acompanham a culpa. E culpa é algo que Michèle, que não poderia ser vivida por alguém melhor que Huppert, não se permite sentir.

Ela não é uma mulher ideal, custa acreditar que ela seja real. Ela é uma anti-heroína do seu próprio destino. Ela erra, é contraditória e mesmo assim, é vítima. Isso o filme nunca deixa de mostrar e talvez seja isso que alguns possam, erroneamente, insistir em não querer enxergar. Elle não é uma narrativa simples, está muito longe de ser e isso que torna o filme tão rico. Ele é construído sobretudo — e porque não seria? Aliás, falamos de um filme, pelas imagens e pelos gestos que esses personagens dão vida.

Michèle não é um ícone feminista que irá vingar todas as mulheres das violências que ela  constantemente sofre e com certeza todas sofremos. Ela é uma mulher que à sua maneira, controversa e irreverente, vai lidar com o que a vida nesse espaço não lhe poupou. Colocá-la como esse ícone, seria transformá-la em mártir e reduzir sua figura a algo que desde o início não é a premissa do filme, pois falamos de um filme e somente um filme nos permite ampliar as questões dessa forma. O mundo no qual vivemos é também terrivelmente diferente. Isso seria simplificar sua figura extremamente complexa, que vai de melhor amiga à traiçoeira. De chefe majoritária de sua empresa à mulher aterrorizada, em duelo com a culpa.

Michèle é dura e é dura porque assim conseguiu jogar o jogo e não ceder à queda de braço. Ela se insere nesse jogo masculino e se mantém até perceber da pior forma que não é seu espaço. O seu direito de desejar, de fantasiar, seu gozo, lhe é negado. O mesmo homem que a violenta, é o motivo do seu desejo e essa é o grande baque de não poder estar mais nesse espaço. Conviver constantemente com seu algoz.

É interessante notar como nesse filme não temos apenas o estupro que gera a ira de todo desenvolvimento da narrativa, mas também temos um bem mais escondido, quase imperceptível.

Isso é um grande exemplo de como as imagens trabalham.



Robert, seu amante e esposo da sua melhor amiga, a chama para um motel logo no dia seguinte em que Michèle reuniu todos em uma mesa, em que ele inclusive está sentado com Anna, sua esposa (melhor amiga de Michèle), para falar que foi estuprada. Michèle diz que não quer ir a esse motel e é então convencida a aceitar, com tanto que ele prometa que será a última vez.

E então ela vai, mancando, ao motel. Quando tudo termina, Robert diz que gostou de como Michèle se “fingiu de morta” enquanto estavam se relacionando e então ela diz que ali será a última vez, em um tom muito frio e despretensioso. Essa cena, ainda que não mostre a violência de um estupro no qual a vítima é surpreendida em sua casa, tal como na primeira cena, mostra a complexidade e gestos que compõem o filme e que levam a esse tipo de frieza frente a uma cena que ao menos deveria ser vista como tão violenta quanto.

A relação sexual que ocorre em um quarto de motel, “consensualmente” entre dois adultos, aparentemente não deveria ser uma questão, um assunto ou então (como falamos de um filme) uma cena. Mas é.



Vamos então tratar do desejo e o poder, duas constantes na vida dessa personagem. Desejo e poder que culminam em culpa, coisas que muitas vezes andam próximos na vida de uma mulher, mesmo uma mulher como Michèle. Desejo esse que fatalmente, é destinado ao seu algoz.

O desejo: ela o observa através de um binóculo e se masturba enquanto ele carrega um dos três reis magos que ele irá colocar no seu presépio de jardim. Ela não permite frear seu desejo, seja ele como for e por quem for, ainda que ela não saiba exatamente quem é esse homem de verdade. Ela somente sabe que ele é seu vizinho, um homem casado pelo qual ela sente uma atração profunda.

Colocar uma mulher observando um homem através de um binóculo, ou seja, escondida, afastada e fetichizando através desse olhar, deixando pela imagem explícito que esses olhos pertencem a uma mulher, é algo muito forte. A imagem do homem observando o corpo feminino, tanto do dispositivo comum do cinema, na câmera que captura as imagens de um filme em questão, quanto no dispositivo inserido na narrativa,  como um binóculo, uma lente fotográfica ou que quer que seja, é notoriamente e constantemente explorada.

O contrário, no entanto, é algo cada vez mais fascinante de perceber, ainda que essa graça não venha somente com Elle e seja inédita aqui. Mas a forma como vemos em Elle é especial, aqui vários tabus serão questionados e colocados à prova. O direito ao olhar quando se é mulher, é extremamente importante, isso para bem e para mal (especialmente aqui), te insere no mundo.






O poder: Michèle sabe do seu direito de olhar e de por isso também desejar, mas isso não basta. Nesse mundo dominado pelos homens ela precisa do poder, ela quer jogar o mesmo jogo. 

Ela conta como quem tem um troféu em suas mãos, tal como um troféu de caça, a história de vida atrelada à série de assassinatos pelos quais seu pai foi culpado anos atrás e ela foi dada como cúmplice, ainda criança. Ela narra esses fatos com uma naturalidade e uma frieza assustadoras, até pra quem é capaz de atrocidades, como Patrick. No entanto, ela ainda não sabe disso. 




Nem mesmo nós, que como espectadores alguma vezes temos certos privilégios no ato de olhar. Algumas pistas podem ser dadas e talvez a maior delas seja de fato essa cena. O flerte para essa mulher não se dá através de um cortejo, de um charme lançado ao ar como quem quer mas não vai atrás do que quer. Não existe mais espaço para isso e as relações entre homens e mulheres aqui são no mínimo conturbadas. É necessário defender seu espaço, por mais que saibamos as reais intenções por trás disso tudo.




A culpa e o fim: quando ela realmente descobre quem ele é, ela tem seu instinto de dominação ainda mais aguçado e ao conseguir primariamente dominá-lo, vemos igualmente uma cena violenta, em que ele lhe dá um forte tapa, por impulso dela. E ela cai em gozo, o que assusta profundamente Patrick, que logo vai embora. 

E a partir disso, após descobrir quem ele é e como ele reage ao seu domínio, que Michèle vê se perder seu direito de desejar, de dominar, de querer. E isso é algo que ela não vai suportar. Isso é perder, não ter mais direito sobre seu próprio desejo. Ter culpa.



Elle, é por fim, a história de uma mulher que por mais absurda que possa ser é real. É imperfeita e errante. Ela cabe dentro de um filme e ali se mantém, mas por caber em um filme não é incapaz de existir no mundo também. Não é um filme que propõe uma inversão de valores de forma fácil e redentora, isso talvez possa incomodar e não tiro a razão de quem se incomode. Mas existem muitas nuances incrivelmente inseridas no filme que fazem dessa teia de relações algo muito complexo e interessante de ser visto. E visto, dificilmente dito. Cabe a nós, espectadores, olharmos por uma lente de aumento, tal qual Michèle observa, para entrar fundo no poder dessas imagens. As relações entre homens e mulheres talvez ainda não estejam em uma resolução possível de nos apresentar um mundo ideal, a realidade é realmente outra.

Sendo assim, o jogo se inverte, depois de toda resolução, os homens desaparecem. Aqui talvez seja o mais próximo do ideal para a resolução desse impasse. E nos minutos finais do filme, todas as mulheres do filme saem ou voltam de/para suas tocas. Vemos a esposa de Patrick, que se separa, vemos a esposa do filho de Michèle, que continua mandando na relação, vemos a namorada do ex-marido de Michèle, que havia se relacionado com ele pensando que ele fosse um escritor que ela admirava, quando ela apenas tinha lido o nome do autor errado e confundido os nomes e por fim, vemos a melhor amiga de Michèle e agora ex esposa de Robert, Anna, andando junto com Michèle, de braços dados. Rumo a um destino incerto, que nós, espectadores, esperamos que seja melhor que a culpa, que o medo, que a violência.



sexta-feira, 25 de setembro de 2020

As chamas dos Conselhos da Noite

por Giovanni Comodo


O que primeiro vemos em Os Conselhos da Noite, de José Oliveira, é um enorme horizonte em poente azulado com um pequeno homem com enxada, sozinho. Logo depois, observamos o mesmo homem junto a uma lareira, com uma carta do instituto de oncologia, “cuidados paliativos em pacientes terminais”. De dia, ele se despede, anuncia que voltará para casa, para Braga. Só então vêm os créditos. Nestes poucos instantes, tudo ali: a trama do filme, seu protagonista Roberto, sua morte iminente, a capacidade do diretor de selecionar e apresentar o mundo. Após as cartelas, já estamos em Braga e observaremos as consequências desta premissa por duas horas.

Trata-se de uma história de retorno e de tentar fazer as pazes com o passado presente – como no filme anterior do diretor (Longe) e no vindouro (Guerra). Roberto, obrigado pela doença a não ter mais um futuro, revisita fisicamente o passado, de si e de uma cidade que já se transformou: o hospital em que nasceu (e hoje é um hotel), a quadra da escola, o cinema, os bares, a cripta das igrejas... criando um trajeto da sua e de todas as vidas. Oliveira falou em entrevista que esta é a história mais antiga possível, da Bíblia a Hollywood, citando Frank Sinatra em Some Came Running – e talvez de Vincente Minnelli venha a inspiração para o encantador trabalho de cor deste filme (como nunca antes nos filmes do Oliveira): amarelos, azuis, vermelhos, violetas, esverdeados, quadros compostos com muitas cores e luzes, porém sempre em uma certa palidez, como que gastos por um outro tempo.

Há quem diga que sair de sua cidade natal não é trair suas origens, mas na verdade destacá-las e valorizá-las. O retorno de Roberto à Braga é neste sentido, de procurar voltar a se valorizar e de encarar as vertigens do sentir após seu longo exílio voluntário em uma quinta, às vésperas de sua morte. É um percurso de voltar a conhecer-se e despertar para os sentimentos, inclusive dor e amor.

Sobre amor, há o encontro fulgurante entre Roberto (Tiago Aldeia) e Sara (Marta Carvalho) em um bar-caverna em tons de terra bruta. Se Roberto – em uma grande performance de Aldeia, sempre entre fragilidade e soberba – vestido de jaqueta jeans preta o tempo todo, já desde o começo anda e age como um cowboy solitário (Oliveira e suas constantes explorações sobre os strong, silent types), ali temos um encontro como o de Johnny Guitar – e Carvalho, com seus grandes olhos, pele alva, boca escarlate e força telúrica, muito lembra a própria Joan Crawford neste filme.  Mais adiante, ele já a chama de Sarah Jane e ela, de cowboy. Dois perdidos na noite de Braga, caçando estrelas. A graça com que filma estas cenas, mais leves que o ar, é um dos grandes saltos que Oliveira se permite neste filme, repleto de ousadias. 

Uma delas é a de transformar Os Conselhos da Noite em uma imensa carta de amor à Braga, uma cidade nunca vista antes no cinema. Seus habitantes, bares e ruas, tudo se transforma em partes integrantes e valiosas do filme, em grandes achados, como Adolfo Luxúria Canibal em papel de destaque, e pequenos, como Roberto se abrigando sob o toldo de um café chamado “O Mal Amado”. Braga em muito me lembrou Curitiba, a 8.500 Km do outro lado do Atlântico: organizadas e cinzentas, distantes das “grandes cidades do país”, com grafites meia-boca e shoppings de 1990 esvaziados, em uma arquitetura de dias gloriosos longe do presente, com poucos lugares pra se divertir e muitos sinos de igreja, urbana mas provinciana. E sedutora, exatamente pelas pessoas que lá vivem e pela maneira que falam e andam. É o olhar generoso de José Oliveira sobre sua cidade que nos traz esta sensação tanto de familiaridade como de descoberta.

Um grande amigo do meu avô, exemplar quase folclórico de uma boemia que já não existe, tinha uma frase lapidar: “A noite é um filtro: só ficam os bons”. O caráter subversivo da noite, de seus ensinamentos tortos e surpresas, contagia todo este filme, também ele rebelde e indomado para nossos tempos: contemporâneo e essencialmente clássico, enganosamente simples ao espectador mas não para seus personagens, um filme que quer ser, antes de mais nada, um filme, com pessoas e dramas pulsantes, sem julgamentos fáceis. Somente isto pode explicar a ainda baixa circulação nas vitrines dos festivais e em parte da crítica, mais preocupadas em engajamentos automáticos. Azar o deles, sobram os bons.

Nos últimos instantes da projeção, vemos uma pequena chama acesa, o vento e algumas palavras rabiscadas com força. Com estes elementos, todo o cinema foi construído. José Oliveira, com Os Conselhos da Noite, "construiu" para nós uma cidade inteira, a revisitar.