terça-feira, 22 de março de 2022

Uma Confusão Confuciana (1994)

 

  por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[Contém spoilers]

Neste filme de 1994, Edward Yang abre um leque de personagens arquetípicos do nosso tempo.

Comecemos com a apresentadora de TV que encanta os telespectadores com suas mensagens cor-de-rosa, separada de um marido escritor que trocou esta seara, onde também semeava e colhia, pela dimensão trágica da existência - e já não vende mais seus livros, que antes eram consumidos em larga escala.

Os dois primeiros arquétipos já colocam em cena as legiões de devotos arrastados pelas mensagens edificantes de Poliana e que, agora que o pensador põe um pé no Real, castigam aquele que desertou do caríssimo caminho da Ilusão, levando-o ao ostracismo.

A própria migração do escritor – do Romance para a Tragédia, como ele mesmo anuncia – não deixa de ser também alvo de uma crítica mordaz: um dos livros que ele não consegue vender é um “Manual de autoajuda para artistas”; e, depois de uma experiência de quase-suicídio, ele experimenta mais uma metamorfose histriônica e inicia um novo ciclo literário – que não se sabe no que vai dar.

Um artista cênico da moda – quer dizer, mais um folião do reino da fantasia – põe em cena uma obra que o escritor repudia a ponto de não se importar com o plágio. E o show pode seguir sem a discussão de direitos autorais que os jornalistas desejam incendiar – afinal, o que vale para a plateia é a fogueira de vaidades. São os mesmos jornalistas que se movem para fazer do divórcio de Poliana um espetáculo sórdido, bem ao gosto do respeitável público.

Um segundo casal, um par de executivos, encarna a ambivalência entre a tradição - casamento arranjado pelos pais - e a escolha consensual entre cônjuges. Sucedem-se as vicissitudes que o tema suscita, enquanto seguimos uma dupla de oportunistas sem escrúpulos tentando extrair vantagens dos bem-sucedidos na roda da fortuna.

Yang vai apresentando a confusão em contrapontos dinâmicos entre os diversos personagens, com humor e lucidez, sem nunca negar a dimensão humana de cada caráter que explora. Com profunda ironia anuncia que Confúcio, se retornasse, seria tomado por um charlatão.

A gente que ele expõe pode até não cativar nossa simpatia, mas carrega sempre aquela marca de autenticidade que só um autor atento e respeitoso consegue imprimir no desdobrar de sua obra: pessoas à deriva, numa pretensa autonomia que toca a farsa, sempre contra um fundo de tristeza.

Vale a pena esclarecer que as pessoas retratadas são confusas, agitando-se freneticamente pela vida em vez de por ela caminhar em passos consequentes – não o filme. O enredo segue pelo encadeamento de uma sucessão de esquetes, nenhum deles gratuito, anunciados por letreiros alusivos ao conteúdo de cada qual, revelando as transformações que essas pessoas vão experimentando no curso dos acontecimentos, para o bem e para o mal.

E no meio daquele mar de confusão emerge finalmente uma ilha de paz onde é possível apostar na amizade e no amor - e o filme termina com uma lufada de ar fresco.

Curitiba, 14 de Fevereiro de 2022

sábado, 19 de março de 2022

O carrossel de Cimino

por Giovanni Comodo

Foi como um sonho. Durante cerca de 15 anos, Hollywood abriu suas portas a jovens talentos vindos de toda parte. Em meados da década de 1960, o descompasso entre os chefes dos grandes estúdios e as vontades do público permitiu a entrada em cena de novos nomes com novas ideias tanto narrativas como formais. O resultado foi um período fértil em filmes que puderam contar com liberdade artística pouco vista desde então e que, para surpresa geral, reverberaram fortemente com a plateia. Eram títulos que levavam suas câmeras para locais inéditos até aquele tempo, exploravam performances de atores como nunca antes, revisitavam grandes gêneros quase esquecidos, bebiam das novidades estilísticas europeias e asiáticas do momento e expunham tabus da sociedade do país, especialmente sua violência e desencanto. Foi a chamada Nova Hollywood, breve e intensa como um fósforo na escuridão.

Grandes cineastas foram revelados, grandes histórias contadas e os estúdios se alegraram com rios de dinheiro e prestígio. Entretanto, até os melhores sonhos terminam. Os custos dos filmes começaram a disparar, assim como a disputa de egos nos dois lados da produção – os donos do poder e os donos da visão artística, diretores e roteiristas. O próprio público, exaurido pelas notícias da Guerra do Vietnã e pela crise financeira do final da década de 1970, mostrou aos estúdios que o que mais desejava para a década seguinte seria o escapismo, com suas filas de dar a volta no quarteirão para “Guerra nas Estrelas” e afins – na verdade, foi a criação e aperfeiçoamento do blockbuster (literalmente, “arrasa-quarteirão”) que deu fim à Nova Hollywood. Mas alguém precisava levar a culpa.

Este homem foi Michael Cimino e seu “O Portal do Paraíso”.

Nunca houve um filme como este e nunca haverá. Cimino começou a rodá-lo com liberdade absoluta cinco dias depois da glória no Oscar de 1979 por “O Franco Atirador”. Seu perfeccionismo sem precedentes fez do filme uma joia rara: enfrentou intempéries climáticas nas locações e filmava quase sempre com luz natural durante a hora mágica do sol – o que permite muito pouco tempo de gravação, atrasando o cronograma planejado em meses. Para usar a locomotiva histórica que necessitava, construiu toda uma cidade ao redor de um trilho de trem antigo. Insatisfeito com o resultado, destruiu e reconstruiu a cidade para ficar como exigia para seu enquadramento. A enorme árvore no meio das comemorações de formatura do prólogo não existia ali, precisou ser construída com milhares de peças e toneladas de concreto. Por certo, estourou todas as previsões de orçamento e datas de lançamento. A imprensa e os poderosos hollywoodianos sentiram o sangue na água e o filme foi destruído perante o público a ponto de sair de cartaz com somente uma semana de exibição. A corporação dona do histórico estúdio United Artists que bancara o filme vendeu-o para a MGM logo em seguida. Foi o prego no caixão da Nova Hollywood e da carreira de muitos dos envolvidos na produção – especialmente Cimino, que teve pouquíssimas oportunidades e liberdades de trabalho posteriormente.

E apesar de tudo o filme permanece diante de nós, gigante como a tela de cinema, que poucas vezes teve suas dimensões honradas como aqui. Todo o esforço do trabalho transparece na projeção em força e beleza. Chega ao nível do impossível como o realizador e seu diretor de fotografia, Vilmos Szigmond, conseguem fazer do pó um personagem do filme (“és pó e ao pó voltarás”?), com as fumaças que parecem seguir exatamente suas vontades sublinhando ações e circundando os personagens – milagre, poderíamos dizer.

Cimino desenha círculos e mais círculos durante o filme: no grande baile em volta da árvore na formatura de Harvard, de patins dentro do pavilhão da cidade de Sweetwater, na rinha de galo, nas cenas épicas de cerco e batalha, filmando sempre tanto de dentro do círculo como com distância para o notarmos. É mais do que um capricho por esta forma, é como se o diretor estivesse ali para nos mostrar assim a inescapável roda da vida, um movimento recorrente que nos leva para adiante e enfim de volta ao mesmo lugar, com seus altos e baixos, na beleza e no horror. Um carrossel, portanto, embalado pelo som da valsa que não cessa.

Trata-se afinal de uma história amarga da impossibilidade de mudanças – uma ousadia de tons heréticos para o western, o que também ajuda a compreender sua recepção gélida na época. Entretanto, para quem embarca neste carrossel, a viagem é inesquecível, em razão das paisagens do Wyoming, das companhias que surgem ao longo da projeção e dos grandes momentos oferecidos pelo diretor – entre eles, o que é o cinema? Uma sombra que surge na tela branca e dispara um tiro na direção da plateia, parece responder Cimino na apresentação de Nate, personagem fascinante de Christopher Walken, um assassino de seus compatriotas, sem lugar no mundo, um analfabeto que deseja ler, escrever e ser aristocrático, que cobre as paredes de sua cabana com papel de jornal para agradar à mulher amada que gostaria de viver em um lar com papel de parede. A mulher, Elle Watson, ninguém menos que Isabelle Huppert, de quem nunca temos certeza para que lado irá o seu coração. E o terceiro vértice do triângulo, o James de Kris Kristofferson, tão privilegiado que pode agir desinteressado até escolher o lado dos mais fracos em meio às disputas de terra e gado entre os imigrantes e os aristocratas. “Negamos qualquer intenção de mudar no que estimamos no geral bem organizado” diz com pompa e satisfação no início o aristocrata de John Hurt (que se tornará cada vez mais alcoolizado a medida em que percebe a verdade de suas próprias palavras), em um anúncio do que virá, com as decisões que destroem vidas tomadas em meio a guardanapos de linho e talheres de prata.

Os barões com suas leis e meios sempre vencem os espíritos livres. A cruel ironia desta conclusão se refletiu sobre os realizadores da Nova Hollywood, Michael Cimino especialmente. O trágico é que continua valendo sobre nós, muito além das telas. Resistir é preciso, nos diz o cinema.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Cineclube do Atalante: O Portal do Paraíso

Neste sábado, o Cineclube do Atalante exibe "Portal do Paraíso", de Michael Cimino. Atenção: começamos uma hora mais cedo: às 15h! Entrada franca, sempre.

Instagram:@cineatalante

 

O Portal do Paraíso

 

(Heaven’s Gate, EUA, 1980, 217 min, 14 anos, com Kris Kristofferson, Isabelle Huppert, Christopher Walken)

1890, estado de Wyoming, Estados Unidos. Um xerife faz o possível para proteger fazendeiros imigrantes de ricos criadores de gado, em lutas por mais terras. Ao mesmo tempo, ele luta pelo coração de uma jovem com um pistoleiro. Filme que marca o final da Nova Hollywood.

 

Dirigido por Michael Cimino.

 

ATENÇÃO!

PROTOCOLOS OBRIGATÓRIOS PARA A SESSÃO (REFERENTES A PANDEMIA DA COVID-19):

 

- A entrada será permitida apenas utilizando máscara e ela deverá ser utilizada (cobrindo nariz e boca) durante todo o período de permanência na sala. (Indicamos o uso de modelos PFF2/N95).

 

- Por esse mesmo motivo fica proibido o consumo de bebida e comida na sala de exibição.

 

-Priorizem lugares que respeitem o distanciamento adequado entre pessoas.

 

- Está com sintomas gripais como tosse, dor de garganta, febre, congestão nasal, perda de olfato ou paladar? Procure ajuda médica e faça o isolamento, fique em casa.

 

Serviço:

 

Cineclube do Atalante: O Portal do Paraíso

Sábado, 19 de março

Excepcionalmente às 15h

Na Cinemateca de Curitiba

(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)

(41) 3321-3552

ENTRADA FRANCA

 

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.