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sábado, 16 de fevereiro de 2019

Jacques Tourneur, por Louis Skorecki

Nightfall (A Maleta fatídica)

Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard man e Wichita. De Leopard man, pode-se dizer que é o melhor realizado, o mais perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton (é o último. Os dois primeiros são Cat people e Walked with a zombie). Um cenário praticamente único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. (...). Enfim, quase todos. Uma exceção: um personagem- central, principal ele também, embora secundário nos créditos- que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão.Desta mediocridade, desta pobreza de contrastes, Tourneur tira o máximo, o filme que mais perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história (uma rua, uma mulher que anuncia o que vai se passar, alguns personagens em miniatura, como bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso (nenhum a priori teatral ou linear, nenhuma ambiência onírica e poética convencional), isto que se sabe o tempo todo- confusamente- e ao longo do qual se avança, enquanto a monótona espera por alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia total, a angústia ordinária. Angústia causada, durante todas as etapas deste trágico e triste trajeto, por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo sob uma transparente luz, trans-lúcida.

Passa-se de outra maneira, e de forma semelhante em Wichita. De outra forma porque se trata de um roteiro complicado, (roteiro que Biette errou ao tomar ao pé da letra, de forma tão sisuda, em primeiro lugar porque não é um roteiro muito bom, mas também porque Tourneur não se importa em nada com temas e tramas, só se trata para ele de filmar o entre-deux -o interstício: o espaço, o vazio, o ar, o intervalo entre os atores, com o cenário, e até mesmo o espaço entre os atores e seus personagens, seus figurinos, suas roupas), um roteiro complicado e um filme entre dois orçamentos: nem a superprodução, nem o filme B, um filme monstro, uma aberração. Semelhante porque Wichita é, devido à sua hibridez, livremente aceita por Tourneur- que nunca, com uma exceção ou outra, recusou um projeto de filme - do roteiro e de suas condições de filmagem, um filme sobre o tédio e um filme onde nos entediamos. Não como se deve (on doit) entediar- é algo habitual- com os grandes clássicos da pretensa história do cinema. Nenhuma relação. Com freqüência se disse- e com freqüência é falso dizê-lo- que todo grande filme é um documentário sobre sua própria filmagem. Neste filme isso é verdade: um homem de mais de quarenta anos (Joel McCrea), sem dúvida um homem inteligente, sensível, orgulhoso, obrigado a se fantasiar de Wyatt Earp, o célebre justiceiro do Oeste, a fim de impor a lei e a ordem na pequena e próspera cidade de Wichita.

E tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur (com quem ele rodou,seis anos antes, um pequeno filme intimista, Stars in my crown, uma série de vinhetas sobre a vida de uma pequena cidade americana, um filme que é para ambos a mais bela lembrança e o mais belo momento de suas vidas...), um velho amigo com olhar cético e divertido ( mas sempre correto) que devia estar se perguntando, porque (...) “ ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e esperam muito tempo pra tomar um trago. Quando o fazem, bebem muito e quebram tudo. É real. Isso se passou, na época”, um velho e divertido amigo que devia estar se perguntando, diante de Joel McCrea, incomodado em suas roupas de justiceiro em missão implacável, como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar as inépcias de um roteiro para crianças retardadas, e esta violência que explode mortalmente e que, para ele, constitui a força da fábula. Na verdade, Jacques Tourneur não está se perguntando por nada, porque ele escolheu: ele filma ao pé da letra e de encomenda os protagonistas entediados e fantasiados desta mascarada histórica que reconstitui as historiazinhas verdadeiras do Oeste folclórico ( e nos entediamos como eles ao vê-los ocupar da melhor forma que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do Cinemascope, que no entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso trata-se de um tédio formidável, de uma inteligência e precisão fotográficas como só nos podem mostrar dois mecanismos que possuem para nós, hoje em dia, status de pré-história, mais de cem dentre os mais belos- e dentre os piores- westerns. Tudo está no cadre. Nada de fora de campo. Nada existe- e isto é mais do que suficiente- senão a complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage impossível de se acreditar mas possível- e para Jacques Tourneur tudo é possível- de ilustrar,de filmar, tal qual); mas Tourneur filma também a morte, em pessoa: no cadre de uma janela, no cadre de uma porta, arrastados por duas balas perdidas e precisas, uma criança e uma mulher, (culpados simplesmente por serem parentes dos atores do drama), passam, num piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais inexorável, do estado de vida ao estado de morte. O que ainda se movia há um instante é marcado definitivamente pelo selo da imobilidade, da rigidez. A morte é a parada (arrêt) brusca e irreversível de toda vida, de todo movimento. E não há nada mais a dizer. “Para Jacques Tourneur, os personagens de uma história são perfeitos desconhecidos, cujo mistério não deve ser esclarecido ou explicado” (Jean Claude Biette). Acrescentemos: nada existe além da fidelidade a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se submeter, nada existe além do que está na tela, no cadre. O cinema de Jacques Tourneur é sim o cinema do invisível, mas de um invisível que é capaz de se ler e se desenhar sobre a tela: os traços estão lá, as pegadas, e as sombras, e basta, em seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal, não velar os próprios olhos diante da persistência do real, destas manchas do real que são as efetivas marcas sobre a tela de uma experiência única do invisível; basta olhar o filme, isso dá medo, é assim, assim se vê.

Tourneur não existe. No momento de seu esplendor (ou seja, para ele, quando filmava em Hollywood e, para nós, quando o descobrimos, deslumbrados, no começo dos anos 60, nos cinemas dos bairros podres, e sob forma de Versions françaises tão podres quanto), ele já estava além (il était dejá ailleurs). Além: inconsciente de sua própria importância, arrasado de tanto cinema, mas muito intoxicado de admiração por um modelo por essência fora de alcance (seu pai, Maurice, cineasta prestigioso que Jacques, toda sua vida, se persuadiu de jamais poder igualar),e sobretudo distanciado de seus colegas, os mais dotados artesões do filme B (Ulmer, Dwan, Heisler, Ludwig), por uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe permitiu saber que ao fim de contas o gênio era ele.

(...) Jacques Tourneur: “Reparei que , na maioria dos filmes, os atores tem tendência a gritar. O mesmo diálogo, dito bem mais baixo, é melhor apreendido, tem mais intensidade. Fora isso, o próprio som é muito importante, não gosto de misturar os sons. Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus filmes. Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém vai falar, se levanta ou vai caminhar, corto todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Se um malfeitor entra numa casa e vai subir uma escada, sei que, depois eu ir embora, os técnicos vão manter todos os sons, a escada,a porta, os passos. É por isso que faço minha própria dublagem de som no estúdio. Assim que o ator terminou de falar ou de abrir a porta, corto o som e ocorre um grande silêncio, enquanto ele atravessa a sala ou sobe a escada. Assim,eu sei que quando o filme estiver terminado e eu não estiver mais lá, os técnicos não farão besteira na dublagem. Com freqüência, faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena, como ele quiser. Depois, lhe digo: Muito bem. Refaça exatamente a mesma coisa, mas fale duas vezes menos forte. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam um pouco sem brilho (ternes), inexpressivas. Talvez tenham razão, mas acredito que isso lhes acrescenta, de qualquer modo, um elemento de verdade”. Tudo está dito. Que outro cineasta hollywoodiano (salvo talvez John Ford, que desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de película a mais, que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas costas), que outro cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis, duplo- sempre preservando-o previamente das alterações que Holywood número 01 com certeza decidiria impor? Nenhum, não conheço outro.

O mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele descreve. Revejam Appointment in Honduras (se puderem arranjar uma cópia): efetivamente, vocês vão ouvir atores, Ann Sheridan em particular, que não gritam. Coisa rara: personagens que murmuram seu texto. E , claro, toda a mise en scéne que se segue: uma maneira única (e inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas, sombras familiares. Esta ternura pelos atores- espectros (revenants), aliada a uma insensata preciosidade do trabalho sobre as cores (a robe amarela de Ann Sheridan, que literalmente desbota, eclipsando tudo ao redor dela), é isto o que ainda hoje constitui o gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur.

Um cinema que, confessemos tudo, nos é a cada dia mais inútil, a nós, que esperamos tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo amorfo, último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a receita (estúdios + grana + engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade de uma arte industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. Um cinema cuja fase perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur.

Então, põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos, destas essências de obras-primas, quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs no domingo passado ( exatamente, 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de minuit, na FR3, um dos mais raros filmes de Tourneur, Canyon passage (1946). (...) este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Mas para realmente vê-lo, para apreciar sua inteligência clássica, que esforço é preciso fazer! Esquecer de forma ativa os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há anos, desaprender os “frou-frous” de imagens e de sons que nos jogam na cara em golpes furiosos de zooms, mudar o ritmo da visão. É preciso lavar os olhos. Unicamente sob esta condição (que é mais fácil de enunciar que de “preencher”) pode-se penetrar em Canyon passage: da abertura mizoguchiana (em primeiro plano, a chuva respinga sobre o teto, um cavaleiro se aproxima,a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão de preguiçosas vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável- o ritmo da elipse. Disputas de sombras sobre um muro, um ladrão visto de relance que foge por uma janela quebrada, paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do technicolor: todo Wenders aqui desfila em trinta segundos! E ainda: peso opressivo dos corpos, sentimentos em suspensão. Como nesta inacreditável provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews: “Você faria melhor?”, ao acabar de beijar sua noiva, Susan Hayward. E Dana não perde tempo: tasca em Susan um guloso beijo na boca, Brian permanece imóvel, seu corpo atarracado teso. A moça em um instante é eclipsada. Passamos aí a uma outra coisa.

E ainda: uma casa que se constrói coletivamente, convivialmente – o sentimento da felicidade que perpassa (talvez pela primeira vez) sobre a tela. Índios seminus que subitamente aparecem- como se jamais tivéssemos visto índios no cinema. E assim vai. Que outro cineasta saberia, no tempo de um único filme, inventar uma cena cega na qual um homem (Ward Bond) despeja toda sua fúria sobre um poste; uma outra onde uma idéia nasce literalmente sobre um rosto (Brian Donvely decide tornar-se assassino); uma outra cena, que capta o olhar terrificado de duas crianças (com a velocidade da bala assassina- de criança também- de Wichita)?


Ninguém. Não há ninguém à sua altura.

Tourneur não existe, ele é o único. Não o último cineasta: o único. Canyon passage: ao mesmo tempo uma saga americana, um western documentário, uma história de paraíso perdido, uma epopéia doméstica, o afresco de mil desejos que se entrecruzam e o mais belo melodrama homossexual jamais encenado.

Ninguém filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumiére inventa as imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois chega. Bom dia, Madame Televisão.

Jacques Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: uma flor que colhe a si mesma comete um suicídio”. (Câmera/stylo número 6, maio 1986).

Louis Skorecki.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Disponível em https://dicionariosdecinema.blogspot.com/2009/08/jacques-tourneur-por-louis-skorecki.html

segunda-feira, 23 de abril de 2018

TRÊS TOURNEUR



por Louis Skorecki

Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente se recusa a oferecer ao espectador o menor ponto de apoio por onde este poderia apreender seus filmes; ou antes, ele apenas extrai de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes, freqüentemente inesperados. A explicação é simples: sua maneira de narrar consiste em dar uma imagem abreviada da vida, obtida pela decomposição dos elementos mais variados da existência, em seguida recompostos de maneira a acelerar certos movimentos, evitando assim as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas às de um Hitchcock. Em Os Pássaros (The Birds, 1963) duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução: o velho com os olhos arrancados, do qual pouco a pouco nos aproximamos; o carro que explode, após termos acompanhado a causa desta explosão. Em Tourneur, ao contrário, a morte é uma coisa breve, irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente através da janela em Choque de Ódios (Wichita, 1955), da maneira mais inesperada que se poderia conceber, é exemplar desta estética: ao passo que Hitchcock organiza (encena) até mesmo as reações dos seus espectadores, Tourneur dá de sua obra ao mesmo tempo a visão mais brutal e mais elaborada possíveis, uma visão alucinada porque acuada, renegada e dissimulada.

Mostrar apenas movimentos inúteis - ou abortados assim que iniciados -, simular o rigor quando trágica é a desordem, são etapas que participam de uma impotência em captar a vida, ou melhor: de uma vontade de precipitar a morte. Almas Selvagens (Appointment in Honduras, 1953) é tudo isso e muito mais, pois o filme começa sem que haja um coração, ou antes, com o coração removido: vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil (crocodilos e serpentes terríveis no momento em que se aproximam, inofensivos ao fim das contas) tão-somente decorativa, poder-se-ia pensar. Mas há aí um viés constante em Tourneur: jamais mostrar algo dramático quando assim exigisse a instância; mostrá-lo quando o espectador já não o esperasse ou não o esperasse mais, dizer a verdade quando esta tiver desaparecido, equivale a preceder o inevitável a fim de descartá-lo (em vão), ou então a mostrá-lo como se já não se acreditasse mais nele. É um cinema de impressão, no qual o processo observado jamais ocorre no momento certo. Defasagens entre a aparência e a realidade, comédia e drama, vida e morte que são as provas, não de uma impotência em mostrar um todo, mas de um desejo de não mostrar nada. Ou melhor dizendo: mostrar o que já não é mais ou não será jamais, perscrutar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e extrair apenas o vazio. Este cinema é um cinema novo, na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor (ainda tão desesperado quanto antes). Cultivando nada, ele nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir uma outra medida: o de uma consciência que oprime um desespero, o de uma força distendida para sempre.

Eis no quê o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que se pode imaginar: se lhe falta essa força que animaria as imagens petrificadas (mesmo quando em movimento) de seus filmes, é ao espectador que cabe animar com um movimento novo esta obra da qual a vida foi suprimida; subsistem apenas impulsos destruídos rumo a uma obra jamais realizada, e que teria sido outra. A partir desses impulsos deve-se perseguir a obra, encaminhá-la (pela nossa própria sensibilidade) rumo a esse propósito que ela jamais atingirá. Os finais de A Vingança dos Piratas (Anne of the Indies, 1951) e de Almas Selvagens não são realistas; são até mesmo impossíveis. Cabe a nós completar o filme, conduzi-lo à conclusão que ele poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é inicialmente pensado e sentido, ele é em seguida destruído e recomposto: é o caso de se retomar o pensamento, retornar à idéia inicial do autor, que ele mesmo tentou subtrair no que diz respeito a nós. Não nos surpreenderemos então que, com freqüência, os personagens de maior destaque sejam animados por movimentos dos quais nos aprazemos em sublinhar a preciosidade; ocorre também que freqüentemente uma cor assume uma importância capital numa cena, à custa de ações importantes. Aqui é preciso sublinhar o papel dinâmico dessas cores (um exemplo admirável é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Almas Selvagens, que apaga tudo o que está ao redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Elas são ao mesmo tempo símbolos (o sangue vermelho nos lábios de Jourdan) e estruturas. O anódino se torna capital e (como o artista) vacilamos diante dessas coisas que se dissipam: anima-se o nada, desaparece a existência. Esse silêncio verdadeiro é a expressão de um vazio ainda mais desesperado que o de um Delmer Daves, por exemplo, que não sabe como preencher uma tela sempre muito imensa para ele.

Os limites e a ambição de Tourneur estão em outra parte: ver (e fazer ver) o que não é, o que não se é, invertendo para isso o indispensável e o dispensável, modificando o rumo das coisas, visando a mudar a vida. A imagem que nos é proposta é, portanto, invertida, os elementos agrupados em proporções diferentes, o equilíbrio natural perturbado. Assim, em A Vingança dos Piratas, impossíveis serão as relações entre uma mulher que se recusa a agir como tal e um homem que maquia a sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por essas inversões, essas imagens desmentidas logo após serem formuladas...

Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador, de imediato? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isso passa um pouco por dizer tudo o que não é, por enunciar a ausência. O sentido desapareceu. Se, entretanto, o signo mantém-se, é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos da ausência de sentido. Compreende-se a dificuldade que temos para senti-los (ao menos plenamente). Eles não são mais do que instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras preciosas, cintilantes de um brilho único, de tal intensidade que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos ao mesmo tempo em que somos encantados. Ela vem, talvez, do fato de que os atos são imediatamente situados em seu estágio terminal, sem que houvesse tido evolução até essa etapa (à diferença da estética do insustentável cara a McCarey, a qual consiste em nos apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e, no entanto, este instante nunca é alcançado. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de uma maneira indireta (distanciamento) e fugidia; as cenas de morte também (tomo como exemplo essa mulher em Choque de Ódios, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo brutais e inacessíveis (próximas nisso do gozo erótico).

Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur en scène, isto não deve nos impedir de ir em sua direção: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.

(Cahiers du Cinéma nº 155, maio 1964, pp. 35-37. Traduzido por Bruno Andrade e publicado em http://focorevistadecinema.com.br/jornal3tourneur.htm



IDA LUPINO POR IDA LUPINO



O INÍCIO COMO DIRETORA

Collier Young e eu havíamos formado nossa própria companhia produtora, chamada The Filmakers. Nós tínhamos co-escrito um roteiro sobre uma mãe solteira intitulado Not Wanted e tínhamos começado os trabalhos para filmar. Tínhamos acabado de começar quando nosso diretor Elmer Clifton teve um ataque cardíaco. Éramos muito pobres para pagar um outro diretor e então tomei as rédeas.

Nosso montador [em Not Wanted] foi o mesmo de Hitchcock em Festim Diabólico, William Ziegler. A cada cinco minutos, eu pegava o telefone para lhe perguntar: "Bill, escuta só, eu queria fazer um movimento de carrinho para frente, mas estou com medo de não dar raccord". No primeiro filme, ele me ajudou. Ele ia pro set. No segundo, tínhamos Bill de novo. Esse filme, Never Fear, era baseado em minha história original, a de uma jovem dançarina que fica com poliomielite. Eu o co-escrevi. Nesse eu ainda recorria ao telefone, mas Bill me dizia: "Não, não! Vire-se sozinha. Eu farei a montagem depois. Você não pode permitir que eu vá ao set". E foi assim que eu me tornei diretora.

THE FILMAKERS

Nós nos debruçamos sobre assuntos bastante perigosos à época: mães solteiras, bastidores do tênis amador, loucura criminal de caroneiro que atravessa o país a pé deixando treze mortes, bigamia, poliomielite. Rodávamos os filmes em treze dias no total e com um orçamento inferior a duzentos mil dólares, e eram filmes classe A. 

De fato, tínhamos o hábito de vender nossos filmes pessoalmente, cada vez que isso era possível. Pegávamos a estrada, íamos nas cidades, atraíamos reportagens durante a filmagem. Mas tivemos a sorte de ter um financiamento para o primeiro e o segundo filme. Depois, quando Howard Hawks, que dirigia então a RKO, se interessou por nós, fomos beneficiados por seu financiamento, suas facilidades de produção e de distribuição, em troca da metade dos benefícios. Era duro para os independentes.

Eu acho que nós éramos a nouvelle vague da época. Queríamos fazer filmes que teriam um sentido social e seriam divertimentos ao mesmo tempo. Eles eram baseados em histórias verdadeiras, coisas que o público poderia compreender porque elas tinham acontecido e se tinha falado delas na imprensa. Nossa pequena companhia era conhecida por esse tipo de projeto. A Filmakers era uma perspectiva para os jovens: atores, escritores, realizadores.

A Filmakers era uma estrutura familiar. Nós tínhamos ideias em comum. Foram os quatro anos mais felizes da minha vida. Fico triste que meus parceiros tenham escolhido se ocupar da distribuição. Se isso não tivesse acontecido, ainda estaríamos juntos. Continuaríamos uma produtora idependente, a distribuição vindo do parceiro de alto nível que nos fizesse a melhor proposta. Eu achava que era um erro, mas fui minoria. E, bom, a Filmakers não conseguiu distribuir seus próprios filmes. Não obtivemos as boas datas nos bons endereços. Não foi muito sábio se aventurar em um domínio que não conhecíamos bem.
O que eu gostaria de fazer é retomar as coisas de onde as deixamos há dez anos, com uma companhia independente, descobrir novos talentos, escrever nossos próprios roteiros e fazer alguns bons filmes provocadores a preços justos.

OSSOS DO OFÍCIO

Eu estava no estúdio exterior da Universal preparando um episódio para a série The Virginian, mas tinha esquecido das visitas, você sabe, doze milhões de pessoas passeando pelos estúdios todo fim de semana. Eu estava no set, suando com o calor abafado, sem maquiagem, parecendo uma bruxa procurando uma antiga casa para assombrar, e lá vinham os turistas. E o brilhante rapaz que era o guia sabe-tudo declara aos curiosos: "Aqui, senhoras e senhores, está a célebre atriz e diretora Ida Lupino se preparando para a filmagem de The Virginian". Eu queria morrer, francamente. 

Eu senti desesperada necessidade de um amigo e o encontrei: um segurança do estúdio. Ele supriu minha necessidade de trabalhar em paz e ao abrigo dos curiosos, e ele vigiava a chegada dos tramways de turistas e quando um deles chegava ele vinha até mim e assinalava: "Os turistas chegaram". Então eu me escondia atrás de um prédio. 

TRABALHO COM GRANDES DIRETORES

Não houve influência sobre meu estilo de dirigir. Eu precisava encontrar minha própria maneira de fazer as coisas. Eu não podia copiar um ou outro. Mas para alguns, como Wellman, Charles Vidor, Walsh ou Michael Curtiz, era impossível impedir que eles "exercessem" um pouco de influência sobre mim. E Robert Aldrich. Meu Deus, que dádiva foi atuar para ele em The Big Knife. Ele não é apenas um bom técnico, mas ele conhece verdadeiramente o ator. Ele mergulha profundamente no papel e tira de você coisas das quais não suspeitava.

PERSONAGENS FEMININAS

Eu nunca escrevi simples papéis femininos. Eu gostava das personagens fortes. Não quero dizer as mulheres com qualidades masculinas, mas uma espécie de força visceral, de tripas. Um papel simples me põe para fora de mim. Interpretar uma gentil mulher que se contenta em sentar ali, isso eu não posso fazer.

Nem todos [os filmes produzidos pela Filmakers tratavam de questões femininas]. Realizei The Hitch-Hiker, que era uma história verdadeira de William Cook, sobre a morte de um caroneiro, e não era certamente uma história de mulher. E fiz The Bigamist, que não era certamente uma história de homem.  

HUMILDADE

[Um bom filme] é questão de alquimia. É a mistura de um bom roteiro, um produtor com o qual eu esteja completamente em sintonia, bons atores e um diretor de fotografia. Nas vésperas da filmagem e na hora de rodar o primeiro plano, eu sempre sinto meu estômago embrulhar. Depois, quando já tenho garantidos os primeiros planos, meu estômago se acalma. A comunicação com meus atores é capital também. Estando bem perto deles, compreendo seus problemas. Eu não digo que faço um trabalho excepcional, mas até que não me saio tão mal. 

Eu não serviria para Doutor JivagoO Mais Longo dos Dias; eu não creio que os horrores da guerra sejam para mim. Se eu tivesse de decidir sobre um diretor, não me escolheria. Filmes de suspense, aí sim. Coisas à la Robert Aldrich. O que terá acontecido a Baby Jane?, sim. Esse é meu forte. O suspense.

(Combinação de trechos extraídos de "Moi, la mère metteur en scène", depoimento publicado em Positif nº 301, e de "J'aimais les personnages forts", entrevista a Patrick McGilligan e Debra Weiner publicada em Positif nº 540; seleção e tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr. 
Publicada em http://www.contracampo.com.br/93/artlupinoporlupino.htm)