Eric Rohmer, com seu humor sóbrio, seduz seu espectador, arma para sua heroína e coloca seu cinema em um alto nível de maestria.
Não
 há somente prazer em ver um filme de Éric Rohmer, há prazer em vê-lo 
suceder tão rápido outro filme de Éric Rohmer. Este prazer, tornado tão 
raro, da série.
 Nesses tempos em que o cinema francês perde-se em busca de “nichos”, um
 cineasta que combina uma vez por ano os elementos de um mundo que é 
somente dele é, de todo modo, um homem precioso. 
Seu nicho, Rohmer encontrou-o há muito tempo e é suficiente ler a apaixonante coletânea de seus antigos artigos (Le Goût de la beauté, publicado pela Cahiers du cinéma)
 para entender que ele fala sério. Rohmer começou por trabalhar para 
fixar alguns princípios (advindos de um bazinismo muito rigoroso), 
depois ele desobstruiu uma cena para fazer aparecer (comparecer
 seria mais exato) os personagens. Ele balizou seu território, 
teoricamente no começo, eroticamente em seguida. Um autor? Um homem que 
conseguiu filmar apenas aquilo ou aqueles que lhe interessam. 
Como
 é o último Rohmer? Como os outros, diríamos (e teríamos razão: nosso 
homem é repetitivo). Muito diferente dos outros, diríamos (e teríamos 
ainda razão, já que nós aprendemos a perceber – e a provar– a mínima 
variação dentro do coração da série). A série (depois dos Contos Morais, as Comédias e Provérbios)
 nos liberta do fardo de julgar cada filme como se ele fosse o último e 
nos deixa livres para “escolher” aquele que melhor nos convém. 
Prestidigitador e moralista, Rohmer não pode mais “falhar” em um filme. 
Seu sistema é muito pensado, muito ponderado, muito perfeito. É por 
isso, depois do fracasso de Perceval, o Galês (que é para Rohmer o que A Terra dos Faraós
 foi para seu mestre Howard Hawks: um passo muito grande, lá onde ele 
não conseguia dar pé, no turbilhão dos figurinos de época), nos 
colocamos cada vez menos a questão de saber se “o último Rohmer” é bem 
sucedido ou não e cada vez mais de saber se ele irá nos agradar, 
pessoalmente. 
Noites de lua cheia
 é, à primeira vista, um filme grave, áspero, pouco divertido, um pouco 
cruel e, obviamente, irrefutável, Rohmer, ninguém há de negar, 
continuará o etnólogo número um da sociedade francesa de seu tempo. Como
 todo etnólogo, ele vive de uma contradição: ele só ama seus 
selvagens mas ele os vê sempre “do exterior”, como a soma perfeita dos 
gestos que eles são capazes, das palavras que eles vestem e dos hábitos 
dos quais eles se cobrem. Este etnógrafo não ama todas as tribos, quase 
nenhuma na verdade. Ele estuda apenas uma (a chamaremos “burguesia 
francesa”) e ele é especializado em dois subgrupos (os chamaremos de 
“grande” e “pequena burguesia”). São grupos tagarelas que usam as 
palavras da língua francesa não somente para dizer não importa o que, 
mas para “fazer cinema” sobre a natureza de seus desejos. Trata-se, em 
geral, de um desejo de liberdade (no sentido restrito de “livre 
arbítrio”). Impávido, Rohmer os prende na armadilha de suas palavras e 
lembra-os secamente que seus desejos não existem para além dessas 
palavras que eles gargarejam. Cada pequena narrativa se fecha sobre a 
punição daquele (daquela, geralmente) que tomou a bexiga do seu discurso pelas lanternas do real. E como dizia Chandler: “There’s no trap so deadly as the trap you set for yourself.”
Quando
 ele filma os burgueses (aqueles que não trabalham de verdade, que não 
estão cansados, que são elegantes), Rohmer adota um tom veranista e 
sensual e pisoteia os canteiros de flores de Marcel Dassault (Pauline na praia).
 Quando ele filma os pequenos burgueses (aqueles que têm problemas de 
horário, de transporte, de trabalho, que têm que dar duro apesar do 
nariz empinado), Rohmer adota uma luz fria, com azuis fracos, corpos 
desossados, cenários feios, sem pena para aquilo que tem de naif e de apático em seu mundo. 
É a esta tribo ingrata que pertencem os personagens de Noites de Lua Cheia. A ação gira em torno de um apartamento, aquele que Louise (Pascale Ogier, simplesmente impressionante) quer morar também,
 já que ela já vive com Rémy (Tcheky Karyo, sim, um ator a ser seguido) 
na região parisiense. Louise acredita que sua liberdade de mulher 
depende da sua possibilidade de escolha entre essas duas “casas”, uma 
para ela em casal e uma para ela solteira. Evidentemente, ela engana-se e
 toda a história do filme será a demonstração desse erro de partida. 
Não
 podemos contar o filme. Podemos somente dizer que Rohmer não deixa nada
 ao léu, como se ele experimentasse um prazer soberano em mostrar o 
mínimo mecanismo da armadilha que vai se fechar sobre Louise. E um 
prazer ainda maior (beirando a perversão) de fazer crer que, quem sabe, a
 armadilha talvez não se feche. Ele sabe, melhor que qualquer um, fazer o
 espectador aceitar um ponto de partida artificial para melhor 
lembrá-lo, no fim do percurso, que ele fez mal em aceitá-lo. 
Les nuits de la pleine lune foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 157-162. Tradução de Cauby Monteiro. Retirado de https://vestidosemcostura.blogspot.com/2017/10/noites-de-lua-cheia-de-eric-rohmer.html
Mas
 como tudo é irrecusável, rápido e preciso no detalhe da mise-en-scène, 
esquecemos de nos perguntar onde se encaixa o conjunto. É a ilusão do movimento verdadeiro que nos faz perder de vista a realidade dos sentimentos simulados.
 Aí está a armadilha. Deliciosa e amarga, conforme nos identificamos com
 os personagens rohmerianos ou ao Rohmer marionetista (e comigo, eu 
admito, é assim, mas eu gosto ainda mais dos filmes de Rohmer em que eu 
também gosto dos personagens: A Marquesa d’O, A Mulher do Aviador). 
Ao
 longo dos seus ires e vires Paris-subúrbio, Louise frequenta diversos 
personagens. Mas há uma diferença entre ela e eles. Louise mente a ela 
mesma (sua segunda casa não é a que a aproxima da sua liberdade mas a 
que a joga para a solidão) e isso porque ela é de uma só vez patética e 
irritante. Os outros se contentam em mentir para ela. É porque são 
medíocres. Há também dois retratos dos homens em Noites de Lua Cheia
 que não são exatamente a propaganda de “homens de verdade”, mas duas 
destruidoras pinturas dos machos como eles são. Rémy, o bom Rémy, que 
construiu cidades novas perto de Paris e que, cobaia caseira, aceita 
viver nelas, o Rémy possessivo que diz ter achado em Louise “um 
absoluto” e que a trairá no momento em que ela virar as costas. Octave 
(Fabrice Luchini, de uma fanfarronice assustadora) o companheiro-melhor 
amigo que, subitamente incapaz de se segurar, fará uma cena pífia a 
Louise. 
Há
 uma acentuação da duração no filme. As relações homem-mulher não se 
ajeitam. Mulheres que fazem joguete com a ideia da sua liberdade (não se
 trata jamais de “liberação” que, por uma trapaça assaz hipócrita, 
Rohmer supõe já ter sido conquistada) e homens que se colocam como 
agradáveis companheiros-amorosos gélidos e que retornam durante o filme a
 um estado bestial (o estupro, a possessão doentia) que Rohmer, 
certamente, não filma nunca (é muito sujo) mas que ele tangencia às 
vezes. Há violência neste Noites de Lua Cheia, e não somente no 
incansável bate-pronto dos diálogos. Violência do tapa que não sai do 
braço de Rémy (ele bate o cotovelo, o que se torna uma gag), violência 
do interrogatório de Octave, ciumento e obstinado, quase um estupro. 
Louise sozinha em cena, sonhando em voz alta, escrava de seu capricho, 
presa na rede inócua dos homens, Louise, pensando bem, é heroica. 
Rohmer é, em certo sentido, o
 cineasta contemporâneo do feminismo e se ele é visto hoje como um 
cineasta tão atual – ele que é resolutamente estrangeiro às modas e que 
passa sua vida a se bater com a ideia de “modernidade” – é porque seus 
filmes mais recentes coincidem com o desaparecimento do discurso feminista. É o velho tema literário da “mulher livre” que já havia tratado, de uma maneira muito final do século XIX, em Minha Noite com Ela, que retorna, sob formas mais “antenadas” nas Comédias e Provérbios.
 Perceval, o ingênuo místico, foi o último personagem masculino e 
rohmeriano ainda capaz de cometer equívocos sobre seu desejo. Depois, 
todos os homens (mesmo os jovens) se dedicam à covardia daqueles que 
sabem muito bem o que eles querem conseguir. Sobram as mulheres. Somente
 elas se “beneficiam” desse grande privilégio, o de não confundir o 
desejo com a satisfação do desejo. 
É
 porque o etnólogo é, mais fundamentalmente, um teólogo, em que o enredo
 de predileção será o da imaculada conceição. As mulheres “se fazem ter”
 (em todas as acepções do termo) justamente onde elas não estão (a 
Marquesa d’O durante seu sono, Louise depois que ela se ausenta do 
domicílio conjugal) e nunca onde elas estão. E as mulheres “livres” 
sonham apenas em guardar por mais tempo possível seu quarto de moça. Não
 esqueçamos a dolorosa precisão com a qual Rohmer já cartografou um bom 
número de quartos de moças (o de Marie Rivière em A Mulher do Aviador, o de Béatrice Romand em O Casamento Perfeito). O etnólogo que se camufla toma então um ar de confessor sadiano ou de educador amoroso. 
O
 charme oblíquo dos filmes de Rohmer tem uma razão simples: é muito 
difícil de se identificar com seus personagens. Patéticos e irritantes, 
como crianças mimadas. É porque Rohmer pratica uma forma de 
brechtianismo perverso. No começo, quase que por convenção, ele nos 
propõe nos “aproximarmos” do personagem que, por seus caprichos, coloca 
em movimento a ficção. Mas o momento em que nós entendemos que esse 
personagem está indo em direção a uma punição merecida e que somos 
obrigados a largá-los (para vê-los “mais de longe”) é precisamente 
aquele que o autor esperava para ficar frente a frente com o seu 
personagem, para o consolar e para gozar com suas lágrimas. 
Não
 protestemos muito. Aí está a própria definição do “filme de autor” no 
cinema moderno. O autor “clássico” (diríamos Renoir) doaria a nós seus 
personagens e nem pensaria em repreendê-los. Era a sua generosidade. O 
autor moderno tem ciúmes de seu espectador. Sua arte, no máximo, 
consiste em nos conduzir à porta do quarto. Podemos chamar isso de 
“distanciamento”. De todo modo, ele engoliu a chave. 
4 de setembro de 1984 
Les nuits de la pleine lune foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 157-162. Tradução de Cauby Monteiro. Retirado de https://vestidosemcostura.blogspot.com/2017/10/noites-de-lua-cheia-de-eric-rohmer.html


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