sábado, 3 de maio de 2025

Corpo [sobre Husbands de John Cassavetes]

 por João Piovan


Mais uma vez retornamos ao evidente interesse de Cassavetes na fisicalidade das ações de seus personagens e retornamos à temática do corpo enquanto veículo de manifestação de gestos, sentimentos e intenções. O “cinema de ação” de Cassavetes é menos impulsionado por uma necessidade narrativa, como provavelmente seria se estivesse mais intimamente ligado ao cinema clássico, e mais vinculado à uma necessidade expressiva, uma forma de sublimar os sentimentos latentes e daí deriva sua intensidade. Ainda dentro desta sequência na casa de banho do bar, Archie acaba por vomitar em seu próprio sapato. Gus expressa um absoluto asco, beirando o completo desespero causado pelo nojo. Narrativamente, esse momento não progride ou acrescenta informações relevantes, mas oferece a oportunidade de Gus, interpretado por Cassavetes, incorporar um certo comportamento, a expressão de um sentimento de horror absoluto e, profundamente, a possibilidade da atuação em plena liberdade.

O corpo masculino surge como veículo ideal para esse cinema, uma vez que mais livre para alcançar seus limites, suspensos de censura, e mais constitutivamente apto para o exercício dos gestos de expressão, comummente violentos, mas também das mais variadas naturezas. Em oposição, dentro da própria filmografia de Cassavetes, temos A Woman Under the Influence, em que a protagonista, interpretada por Gena Rowlands, vive crises nas quais age de forma infantilizada, ou, em outras palavras, expressa um profundo afeto pelo seu marido, pelos amigos do marido ou pelos seus filhos. A esta mulher, cabe ser constantemente podada, constrangida e finalmente internada para retomar seu estado de normalidade. Seja de forma consciente ou não, Cassavetes expressa essas duas diferentes formas de experiência do corpo entre o homem e a mulher, como sintetizado por Simone de Beauvoir em ‘O Segundo Sexo’:

(O homem) Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo, que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão.” (Beauvoir, 2009, 10-11, o ênfase é meu)


A cena inicial de Husbands oferece um retrato interessante sobre a dúbia relação desses homens com seus corpos. Perante uma concepção ancestral do corpo masculino, como símbolo de poder tal qual nas figurações gregas das divindades, sempre tão cheias de vigor e virilidade física, belos em suas proporções harmônicas e plenos de potência atlética, vemos Archie, Gus, Harry e Stuart celebrando seus corpos ao redor da piscina. Nestas imagens, que passam tal qual slides fotográficos ou uma revisita a um antigo álbum familiar, este grupo de homens exibe seus músculos e celebram seus corpos, orgulhosos e satisfeitos. A contradição, no entanto, é que em pouco podem se comparar com a vigorosidade juvenil ou a plenitude física: sua condição já se aproxima de uma certa decadência, os músculos contraídos apresentam flacidez e a gordura abdominal é evidente. A calvície avança por entre alguns fios grisalhos. Todos esses elementos expressam a contradição entre o ideal masculino e a realidade destes homens, mas que não é motivo de vergonha, pois possuem o privilégio da liberdade. Com isso, nada os impede de exibi-los livremente e expressar, simbolicamente, suas aptidões físicas, e, mesmo que em tom jocoso, gozar.

A resposta de Harry, Archie e Gus para a crise que lhes é imposta se posiciona entre a lógica esportiva e a bélica: necessitam superar seus inimigos particulares (o trabalho, a vida doméstica, a sociedade) e a si mesmos (a insatisfação, a tristeza, o luto) através de vitórias, ou, melhor dizendo conquistas simbólicas que afirmam a sua superioridade e a sua capacidade de dominação. Tal qual Archie diz a Harry, quando questionado sobre a sua indignação sobre aqueles que jogam para ganhar, “If you don't' play to win, why keep scoring?

Esta expressão tão tensa da vida certamente só pode ser aliviada pela amizade, pelo profundo afeto que compartilham. Em conjunto, contam com a compreensão de seus pares, conscientes das que só eles podem compartilhar. Este coletivo, como posto anteriormente por Bourdieu, facilita a expressão da carga à qual esses homens são submetidos, pois unidos podem triplicar suas capacidades de dominação, de expressão da violência e também da sua compreensão mútua. Formam assim um time ou um pelotão, daí também derivam suas inseguranças e desconfianças, advindas do medo da traição ou do abandono. Recusam sua individualidade por que nela são mais frágeis. Eis a contradição: na prisão desta parceria, encontram sua liberdade.


Texto retirado de "
Homens sob influência: a masculinidade em ‘Husbands’ (1970), de John Cassavetes" (Editora Onze Cultural, 2024) de autoria de João Piovan, resultado de sua dissertação de mestrado homônima defendida na Escola Superior de Teatro e Cinema da Politécnica de Lisboa, disponível em e-book pela Amazon.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Cineclube do Atalante: Husbands

Neste sábado às 16h na Cinemateca de Curitiba. Sempre com entrada franca e seguido de conversa!



Sábado, 3 de maio:

HUSBANDS
Dirigido por John Cassavetes.

(Husbands, Estados Unidos, 1970, 131 min., drama, 14 anos.)
Com Ben Gazarra, Peter Falk, John Cassavetes, Jenny Runacre.

A morte repentina de um amigo em comum leva três homens casados e com filhos a reconsiderarem suas vidas e, por fim, deixarem o país juntos. Mas o entusiasmo pela liberdade reconquistada durará pouco.

Serviço:


CINECLUBE DO ATALANTE
“Husbands” (1970), de John Cassavetes
Sábado, 03/05
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Design: @ogalsouza e @gw.vargas
Realização: Coletivo Atalante

Ciclo Corpo para ver e ser visto

Novo ciclo do Atalante: Corpo para ver e ser visto, de maio a setembro na Cinemateca de Curitiba.

 
A curadoria do Atalante Corpo para ver e ser visto convida à ideia de como diferentes corpos são dispostos na tela de cinema, principalmente no que diz respeito às questões de gênero. Pensaremos juntos corpo, representação e espectatorialidade. Uma via de mão dupla que leva em consideração o poder do olhar e da construção do olhar com uma câmera.

O quanto corpos de homens e mulheres, vistos nos filmes, puderam existir de forma plena? Em que medida o cinema influenciou a realidade nessa representação (e vice-versa)? O corpo tem sido usado somente como objeto de ação? O que fazer com o que foi feito do corpo nas telas todos esses anos?

Nossa seleção de filmes pretende resgatar uma noção de autonomia dos corpos a partir de uma revisão crítica da forma como corpos masculinos e femininos foram representados dentro dessas narrativas visuais, chamando a atenção para uma existência não-normativa tanto em títulos independentes como em grandes produções, com suas contradições e desvios inerentes.

Sempre aos sábados, às 16h, na Cinemateca de Curitiba. Entrada franca e seguido de conversa!

Design: @ogalsouza e @gw.vargas
Realização: Coletivo Atalante

terça-feira, 22 de abril de 2025

Curso: Brasil Anos 70 no Cinema e na Videoarte

 

Como estava o cinema brasileiro há 50 anos, quando foi fundada a Cinemateca de Curitiba? Que altos e baixos o nosso cinema viu acontecer na década de 1970? E, para além dele, quais transgressões e novas vozes nos trouxeram a videoarte neste período? O intuito deste curso gratuito é revisitar e apresentar a produção brasileira de cinema e videoarte dos anos 1970.

"Brasil Anos 70 no Cinema e na Videoarte" acontecerá neste sábado, 26 de abril, das 9h ao meio-dia, na Cinemateca de Curitiba, com duração aproximada de 3 horas, contará com coffee break e emissão de certificados de participação para os inscritos.
É destinada a estudantes universitários e todos os interessados em cinema brasileiro.

Inscrições gratuitas neste link.


Ministrantes:
- Giovanni Comodo: pesquisador, cineclubista, crítico de cinema e mestre em Cinema e Artes do Vídeo (PPG/CINEAV-UNESPAR), além de professor da FAP/UNESPAR no curso de Bacharelado de Cinema e Audiovisual. Integra a equipe de curadoria e produção do Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba desde 2018, pelo qual já realizou mostras, oficinas e publicações.
- Isadora Mattiolli: artista, professora e curadora. Graduada em Artes Visuais pela UFPR e mestre na mesma área pela UFRGS, pesquisa arte contemporânea sob uma perspectiva feminista, com ênfase nos processos artísticos que envolvem imagens técnicas. É professora na EMBAP (UNESPAR) e na PUC-PR. Atua como curadora independente desde 2016, organizando exposições individuais e coletivas.

Serviço:

Curso: Brasil Anos 70 no Cinema e na Videoarte
Data: 26/04/2025 (sábado)
Horário: das 9h às 12h
Local: Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
Classificação indicativa: 14 anos
ENTRADA FRANCA

Realização: Giovanni Comodo
Promoção: Coletivo Atalante
Incentivo: Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura Municipal de Curitiba

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA – FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA.

Comunicação de pesquisa na Cinemateca de Curitiba + "A Margem" em 35mm

Importante centro de difusão, preservação, debates e formação do público curitibano, a Cinemateca de Curitiba, que completa 50 anos este mês, já ofereceu cursos de realização com cineastas essenciais da nossa história. Estas atividades foram objeto de pesquisa por Giovanni Comodo (do Coletivo Atalante) com foco nos cursos práticos de realização cinematográfica ministrados por Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias na década de 1980 – pesquisa selecionada pelo Fundo Municipal de Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura Municipal de Curitiba.

Em 24 de abril (quinta-feira), a partir das 9h, será realizada uma comunicação sobre a pesquisa, seguida às 10h da exibição em 35mm da cópia do acervo da Cinemateca de Curitiba do filme “A Margem” (1963) de Ozualdo Candeias, com conversa do pesquisador com o público presente mediada pela professora e pesquisadora Isadora Mattiolli (EMBAP/UNESPAR).

Entrada franca!

Imagem do post: Rogério Sganzerla em frente à antiga Cinemateca de Curitiba, no Largo da Ordem, durante a realização de seu curso prático de direção em 1982.

Serviço:

Evento:Comunicação de pesquisa na Cinemateca de Curitiba
Data: 24/04/2025 (quinta)
Horário: das 9h às 12h
Local: Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
Classificação indicativa: 14 anos
ENTRADA FRANCA

Realização: Giovanni Comodo
Mediação: Isadora Mattiolli
Promoção: Coletivo Atalante
Incentivo: Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura Municipal de Curitiba

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA – FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Cineclube do Atalante: A roda da fortuna

Neste sábado às 16h na Cinemateca de Curitiba. Sempre com entrada franca e seguido de conversa!



Sábado, 12 de abril:

A RODA DA FORTUNA

Dirigido por Vincente Minnelli.

(The band wagon
, EUA, 1953, 112 min., comédia/musical, 14 anos.)
Com Fred Astaire, Cyd Charisse, Oscar Levant.

Estrela de teatro e cinema Tony Hunter, veterano de comédias musicais, está preocupado que sua carreira possa estar em declínio. Seus amigos Lester e Lily escrevem uma peça que eles acreditam ser perfeita para o retorno de Tony. Mas durante a montagem da peça ocorrem problemas com o diretor e sua companheira de palco.

SERVIÇO:


CINECLUBE DO ATALANTE
“A roda da fortuna” (1953), de Vincente Minnelli
Sábado, 12/04
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

sábado, 29 de março de 2025

Le Bonheur [As duas faces da felicidade], de Agnès Varda

por João Bénard da Costa


Le bonheur n’est pas gai
Maupassant (citado em LE PLAISIR de Max Ophuls)
LE BONHEUR [As duas faces da Felicidade no título brasileiro] só estreou em Portugal em 1970. Nesses tempos, o tempo passava muito depressa e não me lembro que o filme tenha despertado particulares fervores ou particulares favores. A censura marcelista, que o deixou passar após algumas hesitações, também aos costumes disse nada. Se hesitou foi por causa de acidentes (nudezas a mais para os padrões dela) do que por essências. Em 1970, se a memória me não falha e as minhas fontes são correctas, ninguém, em Portugal, estremeceu com LE BONHEUR.

Mas eu lembro-me perfeitamente de ter estremecido e muito quando vi LE BONHEUR, no ano da estreia (1965) em Paris. E não fui só eu. O filme teve uma aura de escândalo, embora suave e embora rapidamente desvanecida.

Ao revê-lo, agora, na preparação do Ciclo Varda, ia curioso. Seria que o filme (como tantos outros da nouvelle vague) teria envelhecido muito e eu nada ia reencontrar da minha emoção de há vinte e oito anos? Sou suspeito, bem sei. Mas o que é certo é que a revisão de LE BONHEUR me trouxe o mesmo malheur e a mesma perturbação de 1965. Fui mais (ou menos) sensível aos tiques típicos da nouvelle vague, como a mania das citações, o excesso de carga dos significados (cada pormenor acumula) e a ultra-apoiada intencionalidade de diálogos pretensamente banais. Mas esses sinais de época não tocaram no essencial. E LE BONHEUR continua a ser uma parábola moral que, por absurdo, mina a declaração proposta pelo título e o credo sustentado pelos três protagonistas: «oh, quel bonheur!». Ou seja, o filme também se podia chamar Le Malheur. Ainda bem que não se chama (já vou explicar porquê) mas não imagino espectador que possa sair feliz deste filme.

Quando mais o tempo passa – tempo do filme e tempo sobre o filme – mais o coração se nos aperta e mais a sombra ganha à luz, a morte à vida, a tristeza à alegria, a infelicidade à felicidade. LE BONHEUR é um dos filmes mais tristes que já vi. Porque a felicidade nada tem que ver com a alegria, como já ensinava Max Ophuls, pela boca de Guy de Maupassant, no último episódio de LE PLAISIR? Exactamente, não. E exactamente, não, porque, para os personagens de LE BONHEUR, felicidade e alegria são termos sinónimos. Querem ser felizes e querem ser alegres. A felicidade, para eles, é o caminho mais rápido e a solução mais natural para chegar à alegria. É a porta dourada (a inscrição do lugar com esse nome está no filme) para aceder a ela. «Je suis toute heureuse», diz Émilie (Marie-France Boyer) na sua primeira tarde de amor com François (Jean-Claude Drouot). «Quel bonheur!», responde-lhe ele. Perto do fim,Thérèse (Claire Drouot) descobre que o marido está ainda mais feliz, porque está ainda mais alegre do que era costume.

«Ça se voit?» responde-lhe ele, contentíssimo. A música de Mozart cala-se. Ouvem-se só as
cigarras e Thérèse faz-lhe a pergunta fatal: «Qu’est-ce qui te rends si content?» «Une pomme qui a poussé hors le carré». Como sempre – e como já tinha feito com Émilie quando a compara com a mulher – François recorre à natureza para explicar a sua felicidade. A felicidade e a alegria são estados naturais. «Et moi, j’aime la nature», como diz François.Todos a amavam, de resto. E a felicidade e a alegria eram – seriam – coisas tão naturais como ela. Talvez Adão e Eva, antes do pecado original, fizessem associações idênticas entre a natureza, a felicidade e alegria. De certo modo, o mundo dos pic-nics da família Drouot é o mundo do paraíso. Bilhete postal. As fotos dos acontecimentos felizes, quando o fotógrafo pede a toda a gente para rir ou sorrir. Afim de que fique gravado como todos estavam contentes. É Agnès Varda (há uma foto dessas no filme, há um pedido desses no filme, na sequência do casamento) a dizer: «Fotos de família. Olhando-as bem, vêem-se pessoas, um grupo de pessoas, à roda de uma mesa, debaixo de uma árvore. Levantam os copos e sorriem a olhar para a objectiva.Vemos a fotografia e dizemos com os nossos botões: é a felicidade. Só uma impressão. Olhamos melhor, e começamos a sentir-nos perturbados.Tanta gente. Não é possível. Há quinze pessoas na foto, velhos, mulheres, crianças. Não é possível que todos estivessem felizes ao mesmo tempo. Mas então o que é a felicidade, se todos parecem tão felizes? A aparência de felicidade já é a felicidade».


II

A aparência da felicidade. À excepção dos cinco minutos do filme que vão do momento em que François repara que a mulher já não está deitada ao lado dele até ao jantar do dia do enterro, a aparência da felicidade não abandona este filme que começa com um girassol (a flor que se volta sempre para a luz). Mozart e imagens captadas por uma câmara à mão de um jovem casal com dois filhos (um rapaz e uma rapariga) louros, saudáveis e bonitos. Instantâneo de família feliz. Um déjeuner sur l’herbe. «Quel beau dimanche».

François, Thérèse e os filhos são naturais, são alegres e são felizes. Muito naturais, muito alegres, muito felizes. Como os personagens de DÉJEUNER SUR L’HERBE, filme de Renoir, que está a passar na televisão quando regressam do primeiro domingo (e que eles não vêem) responderam com essa solução à dúvida hamletiana que aparentemente nunca tiveram. «La campagne est magnifique» diz Thérèse quando se deita nessa noite com o marido para fazerem amor, magnifique, também. Ele é carpinteiro, ela é modista. Não ouvem Mozart, música de fundo do filme e não deles. Ouvem Brassens, Dalida.Vêem filmes com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau. VIVA MARIA, chamou-se o primeiro filme com as duas, que eles vão ver.Vivem – vivam – eles, como João, o Bom e Ana, a Boa. Como «os noivos da Torre Eiffel» do quadro de Chagall. Vivem – vivam – eles, em Fontenay.

Nasce-lhes um sobrinho, outro acontecimento feliz numa família feliz. François, que foi em trabalho até Vincennes, manda um telegrama da estação dos correios. E conhece Émilie, a menina dos correios, pálida e loura, muito loura e nada fria. Gosta mais de maçãs do que de rosas e gosta de brincar com as palavras (chatel-chateau, oh saisons). Era no verão.

As legendas falam de tentação e mistério mas aparentemente não há tentação nenhuma nem mistério nenhum para François. É sem dúvidas, e com toda a clareza, que uma tarde lhe diz «Émilie, je vous aime». E explica-lhe que nunca mente.

Não mente, de facto, quando diz à mulher que naquele sábado não pode ir ao casamento da vizinha, que tem uma cliente. E a mulher de nada suspeita quando lhe responde: «C’est triste» (é a única vez que essa palavra é dita no filme). Nessa tarde, beija pela primeira vez Émilie (beijo muito branco, muito casto). «Aime-moi» diz ela. Ele ama. Mas não deixa de amar a mulher. Nada muda, para ele. Ou se muda é porque ama mais, e não menos. Fala com a mulher de mais filhos e diz que o que mais gosta é de estarem todos juntos. Muitos malmequeres.

E segue a história com a «postière très tentante» em que ele pensa «très tendrement». Não se transformou noutro homem, é cada vez mais ele próprio. Como explica a Émilie, cada vez gosta mais da mulher. «Je l’ai connue d’abord. Je l’ai epousée». Se tivesse sido ao contrário, seria o contrário. Émilie faz melhor o amor mas Thérèse é mais «sage». Mais terna, também. Thérèse é como uma planta vivaz. Émilie como um animal selvagem. Plantas e animais são por igual naturais. E é bom para o homem não comer sempre a mesma coisa.

E a aparência de felicidade (ou a felicidade?) continua. A psicologia e a moral não intervêm. Continuam os déjeuners sur l’herbe da família, continuam as tardes de amor em casa de Émilie e as noites de amor em casa de Thérèse. Num momento,Varda monta, rápida e elipticamente, bocados de corpos nus. Corpos de homem e de mulher. É o corpo dele, são os corpos de- las. Corpos não perguntam. Dão-se. Continuam as flores, flores. As festas na aldeia. A alegria. A felicidade.

Mais um pic-nic. E Thérèse quer saber demais. Porque é que ele está tão contente, tão feliz? Ele hesita. Ela insiste. E ele conta tudo. «Je ne peux rien, tu comprends?». Nada mudou.

«Tu m’aimes?» pergunta-lhe desassossegado. E ela responde, beijando-o: «Encore plus, parce que tu es si content». Ao lado deles, cobertos por um mosquiteiro, dormem as crianças. Faz calor, faz sol. Marido e mulher despem-se e amam-se, sempre ao som de Mozart. Adormecem. A expressão de ambos é feliz, muito feliz. Corte.

O plano seguinte é das crianças que acordaram e dizem que não têm mais sono. A câmara faz uma panorâmica para a esquerda, para o sítio onde estavam os pais e Thérèse não está ao lado dele. François acorda e pergunta aos miúdos onde está a mãe. Eles não sabem. Vão
procurá-la. Mais uma brincadeira. Mas não a vêem, ninguém a viu. A luz mudou, é luz de fim de tarde, luz obscurecida e esses planos rápidos em que domingueiros respondem que por ali não passou mulher nenhuma, sempre me lembraram A CAÇA de Oliveira. Tudo prenuncia um malheur.

Mas nós, como eles, recusamo-nos a acreditar. Até que alguém grita e François corre. Nas águas do rio, o corpo morto de Thérèse, a evidência do suicídio de Thérèse.

Depois, voltam os girassóis e volta Mozart (outro Mozart). François revisita Émilie que está triste e contente ao mesmo tempo. É o Outono. E François, Émilie e os miúdos voltam aos pic-nics no campo. O sítio é diferente, Mozart é diferente, mas todos estão igualmente felizes. Mudou tudo e não mudou nada. Fim.


III

Sobre o Quinteto para Clarinete (K. 581) que se ouve durante quase todo o filme, até à morte (ou à desaparição) de Thérèse, escreveu Jean-Victor Hocquard: «É uma obra em que não há dualismo entre o instrumento solista e o acompanhamento. Apenas uma rivalidade [...]. A perfeição desta obra é a de um aboutissement, de um parachèvement.Tudo o que até aí, na música de Mozart, era apelo nostálgico, pura intensidade do canto, é levado ao cúmulo. Quão terrível deve ter sido, nos anos futuros, a queda de Mozart na noite mais escura, para que tudo isto se tivesse perdido».

No final do filme, não ouvimos mais esse Quinteto, mas outro (o K. 614) em que o que surge é a «tensão trágica que implica a luta contra o tempo nascido da oposição entre uma matéria musical, que só existe no presente, e a forma dela que só pode ser una para além do tempo, no seio de um Juízo imóvel e silencioso».

Na história do cinema, não conheço muitos exemplos de uma tão singular adequação da música ao filme, como o é a da música de Mozart a LE BONHEUR (por isso mesmo, em tempos, escolhi LE BONHEUR para um ciclo dedicado ao cinema musical).

Porque, ao contrário do que supõe muito imbecil que continua a associar Mozart e alegria, Mozart não é aqui chamado para reforçar o lado cliché da fotografia bilhete-postal, dos girassóis, das margaridas, das rosas, das maçãs ou dos pic-nics. O que essa música nos diz – duzentos anos antes de Varda – é que a felicidade, ao contrário do que pensavam os protagonistas, não é natural nem é provavelmente deste mundo e que o apelo a ela é o apelo mais terrível. Por isso, Bruno Walter dizia aos músicos que era preciso que Mozart soasse tão alegre, tão alegre, que desse vontade de chorar. Entre os dois quintetos – entre 1789 e 1791 – Mozart descobriu quase tudo o que está por trás deste filme.

Aparentemente, François tem toda a razão e a sua moral ou amoral – inocente, terrivelmente inocente – tem toda a razão lógica. Não roubou nada a ninguém. Porque não acrescentar uma felicidade a outra felicidade para uma felicidade ainda maior? Nem Émilie, nem Thérèse o contra- dizem. Ambas parecem vencidas, nas reservas que põem, pela felicidade, pela alegria dele. Só que há uma boca de incêndio ao pé dessa naturalidade. O que provavelmente Thérèse realizou, na prodigiosa elipse da sua última sesta, é que tudo ia mudar, mais nada seria igual. E não aguentou tanta felicidade ou tanta infelicidade. Por isso se matou.Talvez, nesse momento, ela tenha ouvido Mozart (Resnais dizia sentir a morte todo o tempo, porque todo o tempo se ouvia Mozart).

E se o Quinteto para Clarinete se consegue casar com as duas felicidades de François, não há música possível para a felicidade a três. E a felicidade do final, outonal e sem flores, já não é a felicidade da aliança fraterna entre instrumento solista e os instrumentos que o acompanham, mas a felicidade de quem quer persistir nela, sabendo-a já irrealizável. Depois de comerem a maçã proibida, Adão e Eva descobriram que estavam nus e tiveram medo. Perderam o paraíso. Em LE BONHEUR, François e Émilie recusam-se à nudez, ao medo e à ideia de um paraíso perdido. Mas o pic-nic final é o negativo do pic-nic inicial. E a felicidade surge, então, como a solução mais artificial. O círculo da harmonia rompeu-se. E nenhum deles, mortos ou vivos, saberá jamais explicar porquê. E o que mais perturba neste filme não é a sua falada amoralidade.

É exactamente a implacável demonstração que a moral da amoralidade é mais terrível do que a moral da moralidade. E que não devia ser assim. E que é assim.

Contra tudo o que vemos, tudo o que ouvimos (Mozart). Contra tudo o que vemos, tudo o que não vemos (a elipse da morte de Thérèse). E Mozart e esse buraco negro (a morte) são mais fortes. Muito mais fortes.

Em 1965, como em 1993, Agnès Varda fez-me perceber, menos e mais, o que era Le Malheur. Com este filme, chamado LE BONHEUR.


Texto originalmente escrito para publicação em Agnès Varda : os filmes e as fotografias (concepção e direção do catálogo: Luciana Fina). Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1993, p. 51-54, editado por ocasião do Ciclo “Agnès de 54 a 93”, que teve lugar na Cinemateca, em Junho de 1993. Publicado pelo site da Cinemateca Portuguesa como obituário à cineasta. Optamos por manter a grafia no português de Portugal.