por João Piovan
Mais uma vez retornamos ao
evidente interesse de Cassavetes na fisicalidade das ações de seus personagens
e retornamos à temática do corpo enquanto veículo de manifestação de gestos,
sentimentos e intenções. O “cinema de ação” de Cassavetes é menos impulsionado
por uma necessidade narrativa, como provavelmente seria se estivesse mais intimamente
ligado ao cinema clássico, e mais vinculado à uma necessidade expressiva, uma forma
de sublimar os sentimentos latentes e daí deriva sua intensidade. Ainda dentro
desta sequência na casa de banho do bar, Archie acaba por vomitar em seu
próprio sapato. Gus expressa um absoluto asco, beirando o completo desespero
causado pelo nojo. Narrativamente, esse momento não progride ou acrescenta
informações relevantes, mas oferece a oportunidade de Gus, interpretado por
Cassavetes, incorporar um certo comportamento, a expressão de um sentimento de
horror absoluto e, profundamente, a possibilidade da atuação em plena liberdade.
O corpo masculino surge como
veículo ideal para esse cinema, uma vez que mais livre para alcançar seus
limites, suspensos de censura, e mais constitutivamente apto para o exercício
dos gestos de expressão, comummente violentos, mas também das mais variadas naturezas.
Em oposição, dentro da própria filmografia de Cassavetes, temos A Woman Under the Influence, em que a
protagonista, interpretada por Gena Rowlands, vive crises nas quais age de
forma infantilizada, ou, em outras palavras, expressa um profundo afeto pelo
seu marido, pelos amigos do marido ou pelos seus filhos. A esta mulher, cabe
ser constantemente podada, constrangida e finalmente internada para retomar seu
estado de normalidade. Seja de forma consciente ou não, Cassavetes expressa
essas duas diferentes formas de experiência do corpo entre o homem e a mulher,
como sintetizado por Simone de Beauvoir em ‘O Segundo Sexo’:
(O homem) Encara o corpo como uma
relação direta e normal com o mundo,
que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da
mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão.” (Beauvoir, 2009, 10-11, o ênfase é meu)
A cena inicial de Husbands oferece um retrato interessante
sobre a dúbia relação desses homens com seus corpos. Perante uma concepção
ancestral do corpo masculino, como símbolo de poder tal qual nas figurações
gregas das divindades, sempre tão cheias de vigor e virilidade física, belos em
suas proporções harmônicas e plenos de potência atlética, vemos Archie, Gus,
Harry e Stuart celebrando seus corpos ao redor da piscina. Nestas imagens, que
passam tal qual slides fotográficos ou uma revisita a um antigo álbum familiar,
este grupo de homens exibe seus músculos e celebram seus corpos, orgulhosos e
satisfeitos. A contradição, no entanto, é que em pouco podem se comparar com a
vigorosidade juvenil ou a plenitude física: sua condição já se aproxima de uma
certa decadência, os músculos contraídos apresentam flacidez e a gordura
abdominal é evidente. A calvície avança por entre alguns fios grisalhos. Todos
esses elementos expressam a contradição entre o ideal masculino e a realidade
destes homens, mas que não é motivo de vergonha, pois possuem o privilégio da
liberdade. Com isso, nada os impede de exibi-los livremente e expressar,
simbolicamente, suas aptidões físicas, e, mesmo que em tom jocoso, gozar.
A resposta de Harry, Archie e Gus
para a crise que lhes é imposta se posiciona entre a lógica esportiva e a
bélica: necessitam superar seus inimigos particulares (o trabalho, a vida doméstica,
a sociedade) e a si mesmos (a insatisfação, a tristeza, o luto) através de
vitórias, ou, melhor dizendo conquistas
simbólicas que afirmam a sua superioridade e a sua capacidade de dominação.
Tal qual Archie diz a Harry, quando questionado sobre a sua indignação sobre
aqueles que jogam para ganhar, “If you
don't' play to win, why keep scoring?”
Esta expressão tão tensa da vida certamente só pode ser aliviada pela amizade,
pelo profundo afeto que compartilham. Em conjunto, contam com a compreensão de
seus pares, conscientes das que só eles podem compartilhar. Este coletivo, como
posto anteriormente por Bourdieu, facilita a expressão da carga à qual esses
homens são submetidos, pois unidos podem triplicar suas capacidades de
dominação, de expressão da violência e também da sua compreensão mútua. Formam
assim um time ou um pelotão, daí também derivam suas inseguranças e
desconfianças, advindas do medo da traição ou do abandono. Recusam sua individualidade
por que nela são mais frágeis. Eis a contradição: na prisão desta parceria, encontram
sua liberdade.
Texto retirado de "Escola Superior de Teatro e Cinema da Politécnica de Lisboa,