sábado, 31 de agosto de 2019

O Grau Zero da Humanidade

por Luiz Carlos Oliveira Jr.



Em Sherlock Jr (1924), certamente um dos ápices de sua carreira, Buster Keaton interpretra um rapaz que trabalha como projecionista num cinema, mas que sonha em se tornar um detetive. Um belo dia, ele adormece no meio de uma sessão do filme Hearts and Pearls (espécie de pastiche de filme de mistério com ar melodramático). Um duplo se desprende então de seu corpo, sai da cabine de projeção, caminha até a tela e, como quem cruza uma fronteira clandestinamente, entra no mundo do filme dentro do filme, onde faz o papel do herói e protagoniza uma série de peripécias que incluem algumas das mais incríveis gags acrobáticas de Keaton (como na longa sequência em que ele vai sentado ao guidão de uma bicicleta motorizada, equilibrando-se enquanto o veículo, cujo piloto ficou pelo meio do caminho, vara a cidade em desabalada carreira.)

O herói de Keaton nesse filme é praticamente uma versão burlesca de Jeff (James Stewart), o repórter fotógrafo de Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), de Alfred Hitchcock. O passatempo de Jeff, que se recupera de um acidente que o deixou com a perna imobilizada, é bisbilhotar a vida dos vizinhos com o auxílio de binóculos e de uma lente teleobjetiva. Numa das madrugadas em que se entrega ao seu perverso hobby, ele chega à conclusão de que houve um crime no apartamento da frente, por mais escassas que sejam as evidências em que se apoia – Jeff parece mais desejar o crime do que propriamente vê-lo. Por uma espécie de regressão à concepção mágca e animista do universo, os pensamentos e desejos do fotógrafo parecem exercer influência sobre a realidade circundante, e sua vontade de achar indícios que comprovem a hipótese do crime começa a se projetar no espaço da cena.


Como muito já se falou, Janela Indiscreta traz uma reflexão sobre a força psíquica do desejo encarnada no olhar e o mecanismo de projeção/identificação no cinema: sentado em sua cadeira de rodas, na penumbra de seu apartamento, com motricidade limitada e atenção hipertrofiada, Jeff está em situação semelhante à do espectador cinematográfico. O cenário construído em estúdio reproduz o próprio dispositivo da sala de exibição, o apartamento de Jeff sendo a cabine de projeção e o imóvel à frente, a tela. 

A personagem cômica de Keaton em Sherlock Jr., à semelhança do protagonista do clássico suspense de Hitchcock, projeta um crime no quadro enfadonho de sua vida diária e banca o etetive amador para tentar solucioná-lo. No filme de Keaton, porém, não há espaço metafórico: o protagonista de Sherlock Jr está efetivamente numa sala de cinema. E se, em Janela Indiscreta, o corpo que Jeff projeta no apartamento da frente (na “tela”) não é o seu, mas o de sua namorada (Lisa/Grace Kelly), que é quem efetivamente invade a casa do suposto assassino para procurar por evidências, enquanto Jeff assiste tudo à distância), em Sherlock Jr, o corpo que Keaton projeta na história de detetive imaginada não é outro senão o seu. Ele se inscreve no lugar da ação, ao passo que Jeff permanece na posição de espectador. De Sherlock Jr a Janela Indiscreta, da comédia burlesca ao suspense hitchcockiano, do exibicionismo ao voyeurismo, a aventura inesgotável do corpo se trocaria pela atividade inquieta, só que interiorizada, do olho. Restrito à cadeira de rodas e ao perímetro de um cômodo, o corpo não mais se locomoveria: todas as energias estariam concentradas no olhar. Ao excesso de ação se substituiria o excesso de visão. É toda uma mudança profunda na história do cinema que aí se concretiza.

No conhecido livro-entrevista, Hitchcock garante para Truffaut que a eficácia de Janela Indiscreta se pauta no “efeito Kulechov”, ou seja, na justaposição de um plano no rosto do ator, sempre com a mesma expressão (não tão mesma assim: há variações, ainda que discretas), e diferentes contra-planos que mostram diferentes situações. As cenas se articulam da seguinte maneira: o primeiro plano mostra James Stewart olhando pela janela; o segundo mostra o que ele está vendo; e o terceiro, sua reação. A cada nova articulação, um novo sentido se atribui à expressão do ator que, todavia, manteve-se praticamente inalterada. Em outras palavras, é a montagem que cria o sentido; o filme só se construí de verdade na mente do espectador, pela soma de imagens que, vistas isoladamente, não teriam significado. A pedra de toque do efeito Kulechov, portanto, é a neutralidade do rosto, ou sua indefinição: uma vez que a expressão facial do ator não é rigidamente codificada, ou não representa nenhum estado de alma em particular, ela se presta a uma grande maleabilidade semântica, podendo adquirir sentidos sempre novos de acordo com o plano que o antecede e/ou sucede na cadeia fílmica.
Ora, se há uma característica marcante no estilo de performance de Buster Keaton que constitui um aspecto inevitável para qualquer comentador de sua obra, é a inexpressividade do seu rosto, a máscara insondável por trás da qual ele aparece em cena. Contudo, ao contrário do jogo de montagem do olhar propiciado pela face requerida pelo efeito Kulechov e pelo suspense hitchcockiano, o “rosto de pedra” de Buster Keaton engendra outra dinâmica: em vez de concentrar a mise-en-scène no olhar e na interiorização psicológica, ele a expulsa para a periferia do corpo, para as partes encarregados do movimento exteriormente visível. Com isso, potencializa a ação física da cena. Porquanto o rosto não “diz” nada, resta buscar o sentido da cena alhures. No rosto neutro do suspense hitchcockiano, tudo o que importa é o olhar, ou ainda, a direção do olhar – daí a necessidade da inexpressividade, para que haja uma redução do rosto ao olho, ao raio ocular, cabendo ao ma­estro-metteur en scéne a função de produzir o sentido e a emoção da cena. Já o rosto neutro de Keaton inviabiliza a montagem psicológica: sua face e seu olhar não servem como elo da cadeia significante, ou como peça mediadora da passagem de um plano a outro, em suma, não são vetores da narração. Alheio à transitividade do rosto no cinema clássico, Keaton prefere anulá-lo em sua função propriamente narrativa. Enquanto a montagem hitchcocko-kulechoviana prescreve o olhar como eixo distribuidor dos planos e dos sentidos (na dupla acepção de direção espacial e de significado), a montagem keatoniana trabalha em outro regime, catapultando (às vezes literalmente) o corpo do comediante-acrobata de um plano para outro e permitindo um encaixe puramente mecânico dos blocos de espaço-tempo que constituem o filme. Cada plano é a peça de uma engrenagem ou, num modelo geométrico, um cubo que se comunica com outro por uma abertura lateral, numa espécie de sistema de tubulação virtualmente infinito – tal esquema de montagem já é levado por Keaton ao paroxismo em 1920, no final de O Grande Sinal (The High Sign, 1921). Se a montagem do cinema clássico hollywoodiano se guiou pela “tradução permanente de toda a passagem de plano a plano em termos psicológicos”, a de Keaton seguiu as regras de uma construção rigorosamente geométrica, a mesma aplicada à composição dos planos, e talvez por isso Éric Rohmer tenha atribuído a Keaton, assim como a Griffith e a Murnau, o mérito de lhe ter desvendado “os segredos de uma das operações principais da mise-en-scéne cinematográfica: a organização do espaço.”

É claro que, mesmo com a supressão deliberada das impressões de personalidade, o rosto continua tendo, em Keaton, um papel de destaque na dramaturgia (tanto que em qualquer análise da sua obra tem de passar por esse elemento). Mas a opacidade que ele impõe ao espectador por meio dessa máscara inexpressiva gera uma ruptura com certas convenções dramáticas que vinham se tornando cada vez mais centradas no rosto em primeiro plano e em sua função narrativo-psicológica. Ao longo da década de 1910, a pantomima havia se modificado e ficado mais naturalista, ao passo que a câmera havia se aproximado e a montagem passara a justapor aos planos gerais e planos americanos toda uma gama de enquadramentos aproximados em que a expressão “natural” do rosto era o principal veículo do sentido. O cinema silencioso dos anos 1920, dando continuidade ao processo, seria o império do rosto: década da fotogenia (Jean Epstein), do primeiro plano, do close-up como solilóquio silencioso (Béla Balázs), da fisionomia como encarnação sensível da verdade trazida à luz na forma de “rostificação” ou como revelação mágica da alma dos seres e das coisas. 

Mas é justamente essa possibilidade de o rosto funcionar como revelador psíquico que o cinema de Keaton nega sistematicamente. Seu rosto imóvel e neutro é o próprio impenetrável: placa refletora, ele está lá para devolver à realidade ambiente o eco de suas vibrações. Enquanto o corpo de Chaplin se dobra constantemente sobre seu próprio centro, que não é senão o rosto (no qual se podem ler as emoções e estados de alma que o preenchem), o de Keaton, inversamente, está empenhado em medir o espaço em que o comediante se inscreve com a objetividade de um geômetra. É por aí que se deve aprofundar a eterna comparação Chaplin-Keaton, diferenciando um Chaplin “clássico”, ainda imerso numa visão humanista-antropocêntrica do universo, de um Keaton “moderno”, que reconhece o sujeito descentrado da era pós-industrial, um sujeito jogado para fora de si mesmo, arremessado no vazio de sentido, na obtuosidade opaca do mundo. “A calma de seu rosto, esse esplêndido meteorito branco como que suspenso em plena queda, apenas sublinha sua insolente beleza, em si mesma um verdadeiro desafio ao entendimento. Tal como Chaplin, Keaton é tragado pelas forças do mundo mecanizado. Mas, ao contrário do herói de Tempos Modernos (Modern Times, 1936), Keaton não emerge dessa mastigação industrial como um corpo sobrecarregado de uma energia (aquela usada pelas máquinas da indústria) cujo potencial transformador ele pode dialeticamente subverter em favor de ações com significado ideológico-revolucionário. Nenhuma fantasia romântica em Keaton, nenhum didatismo político. Nenhuma tomada de consciência sequer. Depois de sublinhar o modo perverso de funcionamento do sistema, ele segue em frente com a mesma obstinação de transpor os obstáculos físicos do mundo material e com o mesmo inescrutável do início do filme, como se não tivesse sofrido nenhuma mudança emocional ou psicológica no decorrer das reviravoltas pelas quais passou. Não há arco de personagem, por assim dizer. Keaton é uma bala de canhão a percorrer o mundo – e, não à toa, uma das cenas mais recorrentes de sua obra consiste em seu corpo sendo ejetado da janela de uma casa ou lançado de um lugar para o outro como um foguete.

Nos filmes que fez ao lado de Roscoe “Fatty” Arbuckle no período 1917-19, Keaton ainda pertencia àquela anarquia original que marcou a comédia burlesca na era de Mack Sennett: seu corpo era apanhado no meio de um caos coletivo, de uma avalanche de tortas na cara e quedas em série. A arte do primeiro plano, do close-up, é ulterior a esse cinema. O burlesco “primitivo” não tinha tempo nem interesse de se deter sobre os rostos. Naquele “verdadeiro turbilhão cósmico”, para retomar a expressão de Petr Král, os corpos dos comediantes consistiam basicamente em pernas e braços se agitando no ar: tudo participava de um desregramento sistemático que, em sua orgia generalizada, apagava até mesmo a individualidade das personagens. Depois, pouco a pouco, as gags se tornaram mais articuladas, os contornos das personagens se definiram com mais precisão: assistiu-se ao nascimento dos estilos individuais e dos universos cômicos pessoais (Lloyd, Keaton, Stan Laurel) que, na curva dos anos 1910 para os anos 1920 (a exceção, como sempre, é Chaplin, que desenvolve uma obra pessoal já em 1914), suplantariam o burlesco coletivo.

No caso específico de Keaton, é como se ele saísse daquele caos original em que se encontrava no período Arbuckle e se transportasse para um cenário espaçoso, ao ar livre, onde pudesse organizar sua mise en scène e pensar suas gags como num processo de abstração geométrica. Ele guardou daqueles anos, todavia, o gosto pela acumulação, pela soma efervescente de gags, pela multiplicação progressiva dos corpos, obstáculos e ações: basta ver as perseguições épicas de O Enrascado (Cops, 1922) e Sete Oportunidades (Seven Chances, 1925), em que a cada esquina uma massa de figurantes surge do fora de campo para se juntar à multidão já em quadro e formar a turba incontável que persegue Keaton numa interminável jornada de superação dos limites físicos. 

É frequente em Keaton, como notou Král, um espaço deserto, um mundo reduzido a uma depuração essencial, reflexo tanto de uma nostalgia do espaço de uma América ainda primitiva, “selvagem”, em processo de conquista, para além do tempo dos pioneiros e das primeiras máquinas, quanto de um desejo de buscar no espaço a mesma neutralidade e a mesma qualidade imemorial que o rosto do comediante apresenta ao espectador. O crítico Robert Benayoun define Keaton como uma espécie de “recomeço do zero”. De fato, o cinema de Keaton nos faz encarar uma espécie de grau zero da humanidade, um ponto de partida para a reconstrução de um sujeito que o frenesi da vida moderna tornou estranho a si mesmo.

(Texto retirado do catálogo da mostra Buster Keaton - O Palhaço Que Não Ri, promovida pela Caixa Cultural em 2016.)

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

História(s) do Cinema - Cineclube do Atalante: Curta de Georges Mèlies e Sherlock Jr.

A partir de agosto, o Cineclube do Atalante começa uma nova fase: História(s) do Cinema. Durante um ano, a cada sessão iremos exibir um filme (ou mais, como neste mês) que ajudou a definir os rumos da sétima arte.
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O formato continua o mesmo: um filme seguido de debate e a distribuição de uma folha da sessão com um texto escolhido especialmente.
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Quinzenalmente aos sábados, entrada gratuita, na Cinemateca de Curitiba.

Neste sábado, o então História(s) do Cinema- Cineclube do Atalante, exibe e debate o curta "Viagem à Lua", de Georges Méliès e "Uma Semana" e "Sherlock Jr.", de Buster Keaton. Sempre com entrada franca!


No Instagram: @cineatalante

Serviço:
Sábado, 31 de agosto
16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Coletivo Atalante  

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Clube do Filme: A Carreira de Suzanne

O Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias continua em agosto. À semelhança de um clube do livro, toda quarta quarta-feira do mês nos encontramos para a discussão de um filme e textos relacionados. Com foco na Nouvelle Vague, o Clube se propõe a discutir as renovações técnicas, temáticas e filosóficas propostas pela crítica da época e seu cinema, que tomou de assalto a França e o mundo.

Neste mês, o ponto de partida é  "A Carreira de Suzanne" (1963) de Éric Rohmer.


A tarefa da arte não é a de nos encerrar num mundo fechado. Nascida das coisas, ela nos reconduz às coisas. Ela se propõe menos a purificar, isto é, extrair das coisas aquilo que se dobra aos nossos cânones, que de reabilitar e nos conduzir, sem cessar, a renová-los. (...) Uma longa familiaridade com a arte não nos fez senão mais sensíveis à beleza bruta das coisas; somos tomados por uma vontade irresistível de olhar o mundo com nossos olhos de todos os dias, de conservar conosco esta árvore, esta água que corre, este rosto alterado pelo riso ou pela angústia, tais como são, a despeito de nós.
Éric Rohmer, em "A Vaidade da Pintura".

A partir deste filme de Rohmer, abordaremos seu trabalho como crítico, sua visão sobre a arte e as consequências em seu método de filmagem, especialmente no início de sua carreira, bem como a visão sobre o mundo contemporâneo presente na Nouvelle Vague, entre outros temas.

 
"A Carreira de Suzanne", segunda parte de sua série de seis contos morais, foi lançado em DVD no Brasil, disponível em locadoras e sebos. Qualquer dúvida, estamos aqui para ajudar.
Os textos para leitura (recomendada, não obrigatória):

1) "Vaidade da pintura", de Éric Rohmer:
2) "O Antigo e o novo", entrevista com Éric Rohmer (link alternativo)
3)
"Duas ou três coisas que sei dele", de Luiz Carlos Oliveira Jr:

Serviço:
Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias
"A Carreira de Suzanne" (La Carrière de Suzanne, 1963), de Éric Rohmer
Dia 28/08 (quarta quarta-feira do mês)
Das 19h15 às 21h45
Na Casa do Contador de Histórias
(Rua Trajano Reis, 325, São Francisco - Curitiba)
ENTRADA FRANCA

* Devido ao horário, não será exibido o filme na íntegra, mas alguns trechos (do filme indicado, de outros) ou mesmo curtas devem ser apresentados como pontos relevantes para a conversa.

Realização: Coletivo Atalante e Casa do Contador de Histórias

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Lumière, ''o último pintor impressionista"

Trechos do primeiro capítulo do livro “O Olho Interminável- Cinema e Pintura” de Jacques Aumont.

Lumière, “O último pintor impressionista”: em resposta a essa afirmação de Godard



O que isso significa? Duas coisas. Os efeitos da realidade, às vezes esquecemos de dizer, são também efeitos quantitativos, e é este, eminentemente, o caso na vista Lumière. O que encanta o espectador é também o fato de lhe mostrarem um número tão grande de figurantes a um só tempo e, sobretudo, de maneira não repetitiva. As “personagens” da Saída da fábrica ou da Place des Cordeliers são vistas como independentes umas das outras; as pessoas ficam encantadas ao descobrir, na décima vez que vêem o filme, um gesto, uma mímica que até então havia escapado; a cada instante acontece alguma coisa, e quantas se quiser, ou quase. Bastante esclarecedor, ao contrário, um filme como o Desembarque dos fotógrafos no Congresso de Neuville-sur-Saône:bem individualizáveis, já que passam um a um diante da câmera, eles acabam parecendo todos iguais. Vemos todos fazendo gestos afetados, instalamo-nos na repetição, nos entediamos em um minuto! Tal efeito quantitativo tornou-se difícil de ser apreciado, ficamos saturados e insensíveis. Ele foi, no entanto, capital, até na concorrência entre Lumière e Edison, e vários críticos opõem expressamente a profusão sempre renovada, a generosidade visual dos filmes Lumière, à avareza do cinescópio, onde um pobre grupo de figuras se repete interminavelmente.

Será que já, em pintura, um equivalente imaginável desse tipo de efeitos de realidade, quero dizer, um equivalente espectatorial que faça sentir o mesmo júbilo e o mesmo reconhecimento? Não estou certo de que a dimensão dos quadros tenha desempenhado aí algum papel: diante das grandes máquinas pictóricas do século XIX, ficamos mais tocados do que maravilhados, e mais angustiados do que satisfeitos. O valor pictórico quantificável por excelência, e no século XIX, talvez o único, é o caráter acabado do detalhe, a precisão, a impecabilidade. Valor burguês, é óbvio, a impecabilidade é igualmente cultivada pelo romântico e pelo pompier, pelo pintor de batalhas e pelo mais frívolo dos pintores mundandos; ela está tanto em James Tissot quanto em Gros ou Meissonier. O que causa a admiração do século XIX por esses quadros aos quais não falta sequer um botão de polaina? O que permite a transferência, para aquele valor, do deslumbramento técnico que a pintura sempre procurou (“vejam minha virtuosidade”: leitmotiv do pintor ocidental)? É, de modo inegável, poder imaginariamente, “computar” o real, fazer com que ele recaia sobre o indefinidamente adicionável, sobre uma pura aglomeração de peças e pedaços. O que seduz nas vistas Lumière seria, portanto, também seu lado impecável, de uma rara perfeição, já que a quantidade de detalhes, e sobretudo sua tão notada autonomia, tornam-se aí mais ou menos infinitas. Junção inesperada, mas efetiva: por essa pletora, por esse transbordamento de realidade, a vista Lumière escapa, de saída, de uma parte de sua herança— o brinquedo, o zootrópio ou fantascópio, o divertimento baudeleriano—, e passa, de saída para o lado da arte, mesmo que ainda de uma arte menor.
Segundo aspecto dos efeitos da realidade, mais importante ainda, como veremos: sua qualidade. Lembramo-nos da surpreendente reação a um dos primeiros espectadores do Lanche do bebê, George Meliès. Desdenhando comentar o que é, hoje ainda, o charme do filme, — as caretas da garotinha, seu jogo perverso com a câmera, a atitude incomodada e afetada dos pais, Meliès só nota uma coisa: no fundo da imagem há árvores, e maravilha, as folhas dessas árvores são agitadas pelo vento. Em outra parte, serão a fumaça as das Brûleuses d'erbe, tão notadas—, a neblina, vapores, reflexos, marulho das ondas, tão perturbadores que ocultarão quase todo o resto e, em todo caso, bem rápido, o próprio movimento. Como se, nas vistas Lumière, o ar, a água, a luz se tornassem palpáveis, infinitamente presentes.



E não é um acaso se esse aspecto escapa, em 1989, menos que outro. Claro, para nós, ele é óbvio, mas está sempre ali e participa o bastante desse efeito mágico tão bem descrito por Langlois, Godard e Garrel (comentado em um trecho anterior do texto). É que, ainda hoje, esse tipo de efeito responde a uma certa definição de arte visual, e esquecemos que ao longo de ao menos um século a pintura, e depois a fotografia, se obstinaram a produzir esse tipo de efeito. Há aí uma história, a da pintura das nuvens, das tempestades, e dos arco-íris, a das folhas trêmulas ao vento e do mar cintilante ao sol, uma história da qual o século XIX fizera, entre outros, seu grande negócio. Seria um exagero, é claro, fazer disso um fato só desse século. Pintores tão importantes e tão diferentes quanto Poussin, Velazquez ou Chardin, entre muitos outros, trabalharam para mostrar o tremor da luz nas folhas ou a atmosfera dos fins de tarde, ou o brilho tranquilo dos objetos do cotidiano. O que é próprio do século que vai inventar o cinema é o fato de ter sistematizado tais efeitos, e sobretudo de tê-los cultivados por si sós, de ter erigido a luz e o ar em objetos pictóricos.

Nessa pesquisa, três traços são salientados, como questões relacionadas à pintura:

— o impalpável: a luz ainda não pode ser tocada, ela é “matéria” visual por excelência, pura. Melhor ainda, a luz atmosférica não é, propriamente falando, sequer vista, a não ser por seus efeitos; ela é apenas a “cor” do ar... A herança luminista— a de Ticiano e Velázquez— deve ser repensada, seria preciso chegar a pintar o transparente em todos os seus estados.

— o irrepresentável: é, portanto, um desafio à habilidade do pintor, salientado como tal. Com a insistência um pouco obstinada que lhe é habitual, Ingres quer resolver o problema pela força, pela força técnica: “As nuvens também podem ser desenhadas, são linhas, nem mais nem menos”. No outro extremo, Turner mergulha, espetacularmente, —com outra virtuosidade, mas igual— qualquer linha em uma explosão de cor. Irrepresentável, o fenômeno atmosférico suscita ainda mais, dir-se-ia, a obstinação teórica: é para figura-lo que Turner aplica Goethe, que os impressionistas acreditam aplicar Chevreul.

— o fugidio, enfim, o infinitamente lábil, e portanto, em profundidade, a irritante questão do tempo. Como fixar o efêmero em pintura de outra maneira que não no modo da síntese temporal, à qual a doutrina do instante pregnante condena? Retomaremos de modo mais demorado esse ponto, mas notemos, logo, que a fotografia, ao “embalsamar” o tempo (André Bazin), duplicou a questão à qual está submetida a pintura, aprofundou o desacordo entre a lentidão do pintor e a infinita rapidez do raio a ser pintado.

É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça pra baixo, que ele ultrapassa definitivamente com seus efeitos de realidade, inocentes, e inocentemente perfeitos. A atmosfera continua aí impalpável, e, se se quiser, irrepresentável; mas não deixa de estar presente no cintilar das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem infalivelmente os críticos: é mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é claro, o fugidio é enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico que se mede o melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as centenas de folhas duramente pintadas, uma por uma, e um Théodore Rousseau, pelo aparecimento imediato de todas as folhas. E além do mais, elas se mexem...

(...)

Lumière enfim contemporâneo, ligeiramente atrasado talvez, da pintura: o cinema será sempre esse ”pequeno último”, mas o que a história das folhas que se mexem assegura é que ele faz mesmo parte da banda.

(...)

Eu tentei apenas apreender em que Lumière podia ser “o último grande pintor impressionista da época”, e minha resposta a essa questão consiste em agora duas ideias. Em primeiro lugar, Lumière encontra e, volens nolens, trabalha dois problemas que pertencem de pleno direito à reflexão pictórica, e à pintura simplesmente. Esses dois problemas— o dos efeitos da realidade, o do quadro— estão ligados particularmente no momento em que Lumière se apropria deles, à questão mais geral da liberação do olhar no século XIX.



(...)

Tratava-se, portanto, com Lumière, e na estratégia particular deste livro, de poder, de saída, afirmar com provas que a relação entre pintura e cinema não tem mão única, não é uma descendência nem uma digestão— ainda que é, uma outra história, o cinema, às vezes, tenha desejado ser o herdeiro da pintura, ou pior, dado, às vezes, a impressão de regurgita-la—, não é, de modo algum, a retomada de formas que teriam saído completamente armandas do cérebro dos pintores. É de outra relação que se trata e se tratará aqui: estimar o lugar que o cinema ocupa, ao lado da pintura e com ela, em uma história da representação, em uma história, portanto, do visível.


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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

História(s) do Cinema- Cineclube do Atalante: Curtas dos Irmãos Lumière e O Garoto

Sessão dupla: Curtas dos irmãos Lumière + “O Garoto” de Charles Chaplin
Curtas dos irmãos Lumière

Fundadores do cinema, os irmãos Lumière e sua equipe foram responsáveis por pelos primeiros filmes da História. Limitados pela duração da bobina de gravação da época e realizados com equipamentos pesados, seus vários curtas de pequena duração chocaram e inspiraram o mundo. Nesta sessão, serão apresentados alguns dos seus trabalhos mais famosos como “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon” (1895), “O jantar do bebê” (1895), “A chegada do trem na estação” (1896) e “Danse Serpentine” (1899).

Dirigidos pelos Irmãos Lumière.

O Garoto

(The Kid , EUA, 1921, 68 min, livre, com Charles Chaplin, Jackie Coogan, Edna Purviance)


Uma mãe abandona seu filho com um bilhete em uma limusine, mas o carro acaba sendo roubado e a criança é deixada em uma lata de lixo. Um vagabundo encontra o bebê e passa a cuidar dele. Cinco anos depois, a mulher tenta encontrar o filho perdido.

Dirigido por Charles Chaplin.

Serviço:
Sábado, 17 de agosto
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.