quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Wolfram, a saliva do lobo – um poema telúrico

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva


Tudo é exagero, abundância e excesso nesse filme de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta. Ainda assim, nada é demais e nada sobra: o Real é mostrado em estado bruto na sua justa medida.

Tudo começa num laboratório, onde sucessivas operações químicas permitem exibir o metal prateado, até então prisioneiro na trama do minério. Do laboratório vamos à mina, cuja entrada é assinalada por advertências: perigo!

O primeiro sentimento é de susto: o perigo cerca o casal de cineastas, nunca mostrados, mas o tempo todo adivinhados por detrás da câmera temerária, que leva o olho a pontos de vista inéditos. Um risco que leva ao espanto e corta a respiração: a carne frágil, sujeita a dilacerar-se, exposta a forças ciclópicas, numa reedição de Ulisses e seus companheiros de Odisséia na toca de Polifemo.

A seguir somos capturados na plena potência de um Deus ex machina que, esbanjando forças avassaladoras, submete a montanha de pedra, perfurando, rompendo, quebrando, estilhaçando, cisalhando, moendo e convertendo, enfim, rocha em pó, destinado ao fogo incandescente. Os homens entrevistos como serviçais humildes do monstro que faz tremer e devora a Terra.

Somos embalados por um ruído ensurdecedor transformado em poema sinfônico – o som furioso da montanha gritando sob os dentes que a devoram convertidos em música: um hino de guerra entoado por um exército em ordem de batalha, numa verdadeira cavalgada das valquírias. Sonoridade das oficinas de Vulcano convertida em canto de louvor a Dionísio, próprio para o festival das bacantes e, como ensina Nietzsche, precursor da tragédia, que parece suspensa e iminente na vizinhança de máquinas que mostram os punhos de poderosos Titãs.

Vemos imagens sem palavras, que não há palavra que encontre lugar naquela manifestação cruenta de forças da Natureza, mesmo orquestradas por Apolo. Então, não é apolínea a condução do processo que ordenha a Terra, para dela extrair o leite desejado? Afinal, se o homem aparece servindo à máquina, no limite é, ela própria, escrava obediente, que tão somente cumpre os desígnios desenhados e projetados pela Engenharia humana para obter o metal que, até há pouco tempo, dava luz ao mundo.

Imagens que nos mostram que as máquinas cumprem as ordens de seu criador, ordens estas resultantes do ordenamento simbólico exercido pela inteligência do homem no esforço de governar o Real. Mostram também a dignidade suprema do trabalho humano e, simultaneamente, o seu aviltamento – até o desconforto extremo e a ameaça permanente – conversando o tempo todo, num confronto ainda insolúvel. O produto: riqueza! Para quem? Para a humanidade.

O mais é beleza – beleza em estado bruto e puro. Grafismos, cores, tons e meios-tons, cintilações, reflexos, granulações, texturas, corredeiras, cascatas e ondas, matéria sólida convertida em fluido, arte plástica em movimento, transformação e mutação.

No fim do filme, a conclusão siderante de um circuito, onde a causa final, mostrada no princípio, reaparece, fechando-se o ciclo: as mãos calejadas de um operário dobram o envelope que levará a amostra ao laboratório, onde será examinada, pesada, medida e analisada, com a sabedoria herdada dos alquimistas, para a verificação final da qualidade da saliva do lobo.

Finalmente entram em cena as palavras, sem que se renuncie ao seu silêncio. São palavras escritas, na caligrafia desenhada pela mão do operário: imagens identificadoras das amostras – celebrando os hieróglifos, ideogramas, alfabetos, marcas, enfim, que afirmam, no registro simbólico, a vitória da Cultura sobre a Natureza. Ali e então.

O comovente hino dos mineiros chilenos, cantado ao final, em vozes alentejanas, embalando o arvoredo que se agita ao vento (finalmente é possível respirar), sugere uma ponte solidária estendida do Atlântico ao Pacífico, irmanando os mineiros de todo o mundo? Talvez.

Entretanto, a canção não consegue calar o silêncio respeitoso que me invade a alma ferida, exposta, como chaga aberta, à ardência de uma verdadeira obra de arte.

Curitiba, 19 de agosto de 2021.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Clube do Filme: That day, on the beach

O cinema Edward Yang na nova fase do Clube do Filme do Atalante a partir de setembro!

Nome central da Nova Onda do cinema de Taiwan da década de 1980, Yang teve uma carreira breve, apenas 7 longas em 23 anos, e faleceu jovem aos 59 anos em 2007 em decorrência de um câncer. Porém, seus filmes o inscrevem como um dos maiores diretores de todos os tempos.

Vamos explorar alguns de seus títulos menos conhecidos nos próximos meses, sempre na quarta quarta-feira do mês.

No nosso encontro de setembro, vamos discutir o seu primeiro longa-metragem:
"That day, on the beach" [Hai tan de yi tian] (1983).


A visão de Edward Yang era local, cimentava-se na sua naturalidade, agigantava-se com o crescimento desenfreado e desordenado dessa cidade, a gentrificação revoltante, uma falta de visão grosseira e os favorecimentos corruptos, incríveis erros crassos de planeamento e a plástica indistinção, ou seja, tudo o que hoje se debate em qualquer grande urbe europeia, todos os super-problemas; quanto à construção cinematográfica ela surge insólita, vacilante, carregada de espaços ocos de narrativa e de não-lugares, de enquadramentos ao lado, perdidos, com elos que se desviam ou partem antes da união significante e silêncios que acabam os ditos, esquadrias e balanços resvalantes, em foras-de-campo que se completam por si mesmos e frontalidades ilusórias, utilizando argamassas tremelicantes que bazam por atmosferas dúbias. O ar e a maquinação de um tempo a influir na construção geral e na arte.
- José Oliveira (texto disponível abaixo)

O filme está disponível neste link.

Textos para leitura:
A) "Edward Yang, Artista do Reflexo", por Ruy Gardnier: http://www.contracampo.com.br/89/artyangruy.htm
B) Crítica de "Taipei Story" (filme seguinte do diretor), por José Oliveira: https://raging-b.blogspot.com/2018/03/mais-de-trinta-anos-depois-pode-se.html
 

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é mensalmente discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi.

Serviço:

Clube do Filme: "That day, on the beach" (1983), de Edward Yang
Dia 22/09 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante