Ele deixou-a
ir para zonas que não estavam previstas no argumento. Dizia cut, ela
continuava. “Vi-a acontecer e filmei”. Verhoeven dirigiu Huppert, Huppert
dirigiu Verhoeven. Elle, elegante, irónico, melancólico, a aproximar-se
do Mal.
Por Vasco Câmara, 18 de Novembro de 2016.
Depois da
sua metamorfose como cineasta americano – Robocop (1987), Instinto
Fatal (1992) ou Showgirls (1995) – o holandês, 78 anos,
regressou à sua Europa em 2006 (O Livro Negro). Agora, dez anos depois,
mostra-se como se fosse um cineasta francês, mergulhando num território e numa
cultura que até já foram seus, pois viveu em Paris “há mais 60 anos”. Teve
agora de voltar a reforçar os conhecimentos da língua. Para esse movimento imersivo,
Paul Verhoeven decidiu que na rodagem de Elle/Ela entre a equipa técnica
e actores não se falaria inglês, só se falaria francês.
Parecendo
uma programada sintonia com o momento de reavaliação da sua obra – as
retrospectivas, as entrevistas e as capas de revista no último
ano – Elle emerge elegante, irónico, reflexivo, até melancólico, sendo a
história de uma mulher violada (Isabelle Huppert) e do que parece ser o seu
périplo de vingança. Elle é uma acrobacia de reinvenção. É um filme de
acção contemplativo, afinal, em que Verhoeven coloca nas alturas do êxtase, se
calhar mesmo da santidade, mais um exemplar das suas heroínas. Será a variação
definitiva, um fecho para esse segmento da sua obra, o das guerrilheiras que já
tiveram, em filmes anteriores, os rostos e acções de Renée Soutendijk, Sharon
Stone, Elizabeth Berkley ou Carice van Houten? É que há aqui Isabelle Huppert.
"Tudo o que ela fazia era óptimo, não havia necessidade de a
corrigir", conta Verhoeven. "Para além das conversas sobre mise-en-scène,
sobre a colocação da câmara ou dos actores, não houve conversas com ela sobre
motivações psicológicas [da personagem]. Vi-a acontecer e filmei. É absolutamente
único sentir perante um actor que qualquer coisa que se lhe diga diminui a sua performance."
Foi parcialmente uma coincidência. Quando começámos a filmar a cena, levei seis
canções para a rodagem, havia ainda Bowie, Bryan Ferry, Arcade Fire e mais umas
quantas. Toquei para os figurantes e perguntei de que canção é que eles mais
gostavam para dançar. A escolha unânime foi Lust for life. Foi o que
fiz. As outras eram favoritas minhas também, mas eles acharam que essa era a
mais agradável, mais ritmada, que lhes dava maior prazer dançar. Foi uma
coincidência o facto de a terem escolhido, já não o foi o facto de a ter levado
para o set.
É que o
título, Lust for life, diz algo sobre a energia das suas personagens
femininas, como o programa delas.
Completamente. Por isso a pus na lista. Mas se os meus figurantes tivessem
preferido outra, eu teria escolhido outra. Queria que a cena funcionasse, era
importante que eles gostassem. Felizmente escolheram uma das minhas canções
favoritas, que tinha usado muito pouco em Spetters e é verdade que
sempre pensei dar-lhe outra hipótese e utilizá-la de novo. É também o título de
um filme sobre Vincent van Gogh de que gosto muito [Lust for Life/A Vida
Apaixonada de Van Gogh, Vincent Minnelli, 1956].
Mesmo com
essa intervenção da coincidência, não deixa de fazer sentido que a personagem
de Isabelle Huppert, Michèle LeBlanc, fique ligada à galeria das suas personagens
femininas e pudéssemos desenhar um arco da evolução dessa genealogia, onde ela
começou – Renée Soutendijk em Spetters – e onde ela chegou. Huppert e Elle
acrescentam algo que não poderia ser possível no passado. É um filme
melancólico, este. Há um clima contemplativo, introduzido por Huppert, numa
“família” de mulheres que seguiram sempre em frente atrás do seu objectivo sem
se questionarem. Concorda?
Certamente. Não sei se todas estas coisas são claras para nós quando tomamos as
nossas decisões; provavelmente não vamos tão longe no momento em que nos
decidimos por um projecto. Spetters foi um projecto meu e do meu
argumentista, Elle é baseado num livro, a personagem tinha sido criada
por Philippe Djian [no livro Oh...]. Diria que a personagem de Renné em Spetters
é muito clara, e o argumento é muito claro, no que toca às razões por que
faz certas coisas. Ela está farta de vender batatas fritas e quer sair dessa
existência. Quando encontra três tipos e escolhe o que ela pensa que vai ser
campeão, e aposta nele, o seu objectivo é muito definido. E o filme parece-me
claro na forma como foi estruturado e filmado. Ela persegue alguma coisa, não
é? Seduz deliberadamente. Quer subir de posição social.
No caso da
personagem de Isabelle Huppert, as razões para ela fazer o que faz, por
exemplo, quando descobre quem é o seu violador, são mais ambíguas e turvas.
Para mim, teria de ser deliberado não fazer psicologia com o que está ali. Há
informação sobre o passado dela, mas não é argumentado, ninguém diz que ela
passou por uma experiência violenta com o pai, que isso deixou nela uma marca
de masoquismo e ficou viciada na violência, isso ou outra análise freudiana que
se quisesse tentar. Não há nada de claro nas suas motivações. Parece às vezes
que há a intromissão da coincidência, nos seus actos e encontros. Não há uma
clara relação de causalidade. Era isso que eu queria quando trabalhava com o
argumentista [David Birke] e quando filmava.
Os artistas
ficam por vezes surpreendidos com as interpretações do seu trabalho. Não porque
alguém acrescenta algo que não está lá, mas porque o artista muitas vezes não
está consciente do que está lá. Na verdade, o artista não deve estar consciente
das razões por que faz as coisas. Isso limita as possibilidade. O meu programa
com Elle era deixar tudo em aberto. E deixar que o espectador
preenchesse com as suas respostas os buracos. Ora, não há buraco algum no
percurso de Renée em Spetters. Sabemos quem é, o que procura, o que
ganha e o que perde, como salta de homem em homem, e como no final conseguiu
alguma progressão: da caravana para o bar. Em Elle é o outro lado: não
sabemos exactamente porque é que as pessoas fazem o que fazem.
Fala numa
certa melancolia, numa certa atitude reflexiva: sim, como resultado do meu
gesto de não preencher os buracos todos, e de o espectador poder completar e
preencher o que não é explícito, fazendo-o reflectir sobre a personagem. O
filme sugere algo que faz o espectador reflectir sobre a personagem, as suas
acções e motivações: “posso seguir com ela, e, mesmo que não possa, será que
ela está a ser autêntica”?
Temos a
sensação de que Michèle está a descobrir coisas sobre si própria ao mesmo tempo
que nós. Ou que está às escuras tanto quanto o espectador.
Olhe, eu sei, porque Isabelle me disse, que às vezes ela própria não sabia
porque é que a personagem tinha certas atitudes, mas que conseguia sempre
representá-las. Mesmo a ela, quando chegava ao set pela manhã, cabia-lhe
descobrir porque é que a personagem fazia o que tinha de fazer. Mesmo sabendo
de cor o argumento, e sabia-o, cada manhã era uma aventura de descoberta da
personagem: segui-la, ver onde é que ela a ia levar. Dentro dos parâmetros da
cena tal como estava escrita, muitas vezes ela aplicava uma dose enorme da sua
liberdade na interpretação da cena. Aquilo que em termos antiquados poderíamos
dizer que era o demónio a dominar a mente da personagem... Isabelle queria
saber onde é que isso levaria a personagem naquele dia. O que diz sobre Michèle
aplica-se a Isabelle.
O projecto
chegou-lhe através do produtor Saïd Ben Saïd, que lhe passou o livro. Onde é
que a actriz entra?
Ela entra antes. Antes de Saïd me mandar o livro, estava eu em Los Angeles,
Isabelle tinha-o lido, tinha falado com o autor e com o produtor. Queria fazer
o filme. Saïd trabalhou com De Palma, Cronenberg, Walter Hill, por isso, quando
falámos, estava assumido que íamos fazer um filme americano. Transpúnhamos a
situação da personagem em Paris para uma cidade americana, tipo Seattle, Boston
ou Chicago, com actores americanos. Foi assim que começámos. Estávamos à
procura de um cast americano, não estávamos a ir em direcção a Isabelle.
Mas, depois de o argumento ter sido transposto e adaptado à América,
descobrimos que não havia interesse financeiro na co-produção, os estúdios
ficaram com medo do argumento, por aquilo que acontece à personagem no terceiro
acto. Mais importante, não havia actriz americana do nível A que quisesse fazer
o filme. Foi depois do falhanço de Elle como filme americano que Saïd me
disse que não chegaríamos a lado algum e desafiou-me a fazer o filme em
francês. O passo seguinte foi telefonar a Isabelle Huppert – que ainda estava
interessada.
Houve um
momento na sua carreira em que como holandês se metamorfoseou em cineasta
americano. Não só porque o dinheiro e o cast eram americanos, mas porque
os filmes, numa espécie de excesso camaleónico, eram mais americanos do que os
filmes americanos – Showgirls (1995) é um exemplo. Elle é a sua
metamorfose como cineasta francês, torna-se parte...
... da cultura cinematográfica de um país, sim. Penso que consigo isso. A
transição da Holanda para os EUA não foi fácil, culturalmente os EUA não são a
Holanda, mas como estive sempre rodeado de americanos, produtores, equipa,
actores – estou a pensar em Robocop (1987) —, tornei-me americano. Se
reparar no filme que fiz antes de Robocop, Flesh+Blood (1985),
havia dinheiro americano, 80, 90 por cento era americano, havia actores
americanos, Jennifer Jason Leigh, mas a maior parte da equipa era holandesa e
espanhola. Estava rodeado de europeus. E esse filme não se parece com nada.
Estava a trabalhar supostamente para o mercado americano. Mike Medavoy, da
Orion, disse-me nessa altura, depois do falhanço comercial e artístico do
filme, que se fosse para os EUA e me rodeasse de americanos, estaria bem. E foi
o que fiz, e fiz Robocop, tornando-me suficientemente americano.
Foi o que
aconteceu com Elle. Vivi em França aos 17 anos, na altura o meu francês
era óptimo, mas foi há mais de 60 anos e tudo desapareceu. Fiz um curso de
Francês antes da rodagem, decidimos que ninguém no set falaria outra
língua que não o francês. Foi a forma de me adaptar à cultura francesa, e ser
mais francês do que os franceses.
Como é que,
para ser cineasta “francês” e fazer um filme “francês”, utilizou Huppert, os
filmes que ela fez, aquilo que, com eles, ela vem comunicando ao espectador? A
personagem parece estar sempre dentro e fora – algo que é uma “marca” da
actriz, espectadora de si própria.
Se o diz, é porque é isso o que acontece. Mas não foi consciente. As coisas por
vezes acontecem independentemente do facto de sabermos que estão a acontecer.
Não pensei nos outros papéis de Isabelle. Não pensei nesse lado de estar dentro
e fora. E com ela não fiz nada daquelas coisas que se fazem com os actores:
leitura de argumento, saber coisas sobre a personagem, nada, não fizemos nada
disso. Fomos para o set e filmámos. Ao fim de um ou dois dias percebi
logo que tinha de lhe dar toda a liberdade, e que ela chegaria perto da
personagem, não precisava de lhe dizer nada, para ser mais assim ou assado.
Se comparar
o que fiz com Sharon Stone [Instinto Fatal, 1982] e com Isabelle
Huppert, teria de dizer que com Isabelle fiquei calado, ao passo que não parei
de falar com Sharon Stone para conseguir o que eu queria. Com Isabelle, desde o
primeiro take, foi claro para ela o que eu tinha na cabeça, ou o que
estava no livro e no argumento. Ou então que o que ela tinha na cabeça era
superior ao que eu tinha na cabeça ou ao que estava no livro ou no argumento.
Aprendi rapidamente a confiar na intuição dela, a deixá-la ir para zonas que
não estavam no argumento ou na minha cabeça e que apareciam quando ela actuava.
Várias vezes dizia cut, ela continuava e eu deixava-a – tudo o que tem
que ver com as reacções depois da descoberta do violador, a sequência do
orgasmo, tudo isso é Isabelle a ir para além da página do argumento. Senti que,
sendo ela mulher e eu homem, a intuição dela seria mais forte do que a minha.
Cada coisa que ela fazia, de forma diferente ou superior, eu deixava-a. Tudo o
que ela fazia era óptimo, não havia necessidade de a corrigir. Para além das
conversas sobre mise-en-scène, sobre a colocação da câmara ou dos
actores, não houve conversas com ela sobre motivações psicológicas. Vi-a
acontecer e filmei. É absolutamente único sentir perante um actor que qualquer
coisa que se lhe diga diminui a sua performance. Gastei imenso tempo a
falar sobre guarda-roupa, sobre cores dos vestidos, make-up, coisas técnicas à
volta dela, mas, quando a cena começava, e se gritava action, achei que
devia deixá-la ir.
Em Cannes,
na conferência de imprensa, falou de A Regra do Jogo, de Renoir. Há uma
citação explícita, num diálogo: “Todas as pessoas têm as suas razões.” O filme
vai periodicamente trazendo as personagens à volta de Isabelle para o primeiro
plano, para elas dizerem das suas razões.
De outra forma a personagem estaria sempre a caminhar no vácuo. Essas
personagens também servem para definir a personagem de Isabelle. A forma como
ela reage ao seu ambiente dá explicações sobre ela. Penso que era importante
construir estas personagens com toda a honestidade. Quando li o romance,
percebi que sendo fã de thrillers – ela é violada, descobre quem é o
violador e chegamos ao terceiro acto —, sendo fã de Hitchcock, tendo já feito
isso em Instinto Fatal, o que me interessava era o que não tinha feito:
fazer dos outros seres humanos, torná-los vivos, o que permitiria a Michèle
definir-se enquanto personagem. Em Instinto Fatal não se sabe nada da personagem
de Michael Douglas. Era film noir americano, sem informação sobre as
personagens à volta da protagonista. Isso também é eliminado do thriller
literário americano, algo que é reposto pelo thriller escandinavo. O meu
amor por estes romances escandinavos levou-me, em Elle, a ir em direcção
às outras personagens. É preciso sentir que elas estão tão vivas quanto a de
Isabelle.
Sendo
Michèle o agente da revelação da humanidade das outras personagens – como um
desígnio renoiriano nela, o que é espantoso –, isso diz algo de fundamental
sobre a humanidade da personagem.
Michèle define-se através da relação com os outros, os outros dessa forma têm
oportunidade de se definirem e de ajudarem a definir Michèle. Eleva as pessoas,
eleva Michèle. A Regra do Jogo (1939) é um dos melhores filmes jamais
feitos, foi considerado imoral no seu tempo. Michèle de certa maneira pode ser
vista, numa perspectiva americana, como imoral. Estudei esse filme durante a
minha vida, vi-o quando jovem em França, vi-o muitas vezes depois. E, quando é
assim, isso mexe com o nosso cérebro.
Retirado de
https://www.publico.pt/2016/11/18/culturaipsilon/entrevista/via-acontecer-e-filmei-1750234