Observamos
em nossos dias em todas as formas de expressão, em particular
naquelas que visam um contato coletivo (teatro, cinema,
concertos...), dois comportamentos possíveis do artista face ao
público. Percebo, grosso modo, dois tipos de comportamentos
principais, definíveis em teoria: o desejo de agradar, ou o de
chocar, nos diversos sentidos da palavra. Certamente, no detalhe
concreto de cada indivíduo, o princípio se nuança, se ramifica, se
cobre de recortes às vezes contrários à lei geral. Mas o que nos
interessa hoje é essa lei, e como ela se aplica à obra e à pessoa
de Joseph Losey.
Uma Harmonia coletiva
Nas épocas em que uma civilização progride ou culmina, a dualidade de que falamos não existe. O artista se acha espontaneamente de acordo com os grandes movimentos e com as correntes profundas que animam a coletividade da qual ele é o fruto. Em harmonia com seu público, ele apenas deseja agradá-lo. Os egípcios de Ramsés II, os gregos de Péricles, os romanos de César e de Augusto, os ingleses de Elizabeth, os espanhóis de Carlos V, os franceses de são Luís ou de Luís XIV se atiraram a um só objetivo: criar obras para o prazer e o ensinamento dos homens. A isso se chama também classicismo, essa vontade de fazer a obra atingir o ponto de reconciliação de seus termos fragmentados: o homem, o mundo; fragmentação, vazio e ignorância que haviam suscitado justamente a necessidade de criar.
O Ciclo vital
Mas, infelizmente, uma curva que subiu deve descer novamente: lei terrível da vida. Uma civilização é um organismo vivo, como uma flor, como um pato na lagoa, como um homem. Ela nasce, ela cresce, ela amadurece, ela envelhece, ela morre. Ou então a matam. E quando ela envelhece, acontece nela o que acontece em todo e qualquer organismo: seus tecidos empobrecem, seus elementos se dissociam, tentam anarquicamente sobreviver em detrimento dos outros e perecem. Então o artista não está mais necessariamente de acordo com seu tempo, nem com seu grupo. Ocorre, até com bastante freqüência, de o artista se opor a eles com todas as suas forças, o são se tornando solitário no meio de toda a agonia. As duas opções possíveis do artista, agora que numerosos signos anunciam que há algo de podre no reino do Ocidente, serão portanto aceitar ou recusar a decadência.
Como essa aceitação ou essa recusa se traduzem em termos de relação com o público? E qual maneira de abordar a alternativa Joseph Losey, cineasta exemplar, escolheu?
Os dois comportamentos
Aceitar, ou recusar. Aceitar é, veremos a seguir, aceitar a anarquia dos interesses contraditórios no seio de um grupo em via de perecimento. É necessário tentar provocá-la, para melhor mostrar que se é cúmplice e mais que cúmplice: ator. Um intelectual ou um artista que aceita a derrota de sua própria civilização, seja porque sonha com uma outra, seja por inconsciência ou futilidade, o que quase sempre dá no mesmo, se quer responsável pelos fermentos que a decompõem. Ele corta alegremente o galho que o sustenta. Na sua relação com o público, os valores negativos prevalecerão, os temas de desacordo sem a contrapartida de uma crítica construtiva. Em vez de se pôr ao serviço dos espectadores, o cineasta (já que falamos de cinema) se refugiará no desprezo ou se lançará à agressão. Conivência com as capelas, piscadas de olho aos amigos, provocações formais gratuitas, histeria temática, ou então recusa da estética, recusa da narrativa (mediadora de comunicação) formarão as constâncias de seu comportamento criador. Imerso por inteiro, entranhado no caos de sua época, ele será seu eco fiel e complacente.
Recusar-se a conformar e a integrar sua criação à decomposição que os rodeia é próprio dos cineastas que, menos atingidos pelo envelhecimento de sua coletividade, desejarão salvá-la mais do que traí-la. Distanciados de todo romantismo e em particular do culto exacerbado ao individual na arte, eles conservam junto ao público uma atitude clássica de respeito. Podemos citar aqui, dentre outros, dois grandes americanos: Raoul Walsh, Allan Dwan; dois grandes germânicos: Fritz Lang, Otto Preminger; alguns franceses já citados alhures (1); um italiano: Cottafavi (2). Esses aspiram menos a cuspir no rosto do espectador do que a lhe trazer a beleza, o ensinamento, o apaziguamento, quiçá o divertimento que eles têm missão e vocação de fazer jorrar do deserto.
Assim, o paradoxo da criação artística em período de declínio é que o artista em acordo com seu tempo é por isso mesmo levado a se dissociar do público, e que o artista em ruptura é por isso mesmo levado a se lhe conciliar. Dois exemplos ilustrarão essa proposição: Godard e Fritz Lang. O primeiro, atento à confusão do crepúsculo, porta-bandeira da modernidade; o segundo, nem antigo nem moderno: eterno, vertiginosamente longe (como diz às vezes), em sua vida como em sua obra, das erosões do presente; e portanto muito mais próximo de nós do que tantos outros, colados à sua época como moscas sobre um pedaço de carne.
E Losey?
Losey clássico.
O comportamento de Joseph Losey face ao público, tal como se depreende de seus filmes, e também de suas falas, não entra de maneira tão simples nesse esquema dualista; o qual apenas representa, repitamos, o esboço geral do problema.
Convém antes notar que a ferida do exílio (Losey deixou os Estados Unidos em 1952) teve conseqüências importantes sobre a evolução de seu trabalho. O estilo mudou, o olhar mudou. Cortada de suas raízes, a generosa simplicidade americana cedeu lugar a uma trajetória mais complexa, por vezes sinuosa, enriquecida de preciosidade onde os problemas próprios a Losey – o homem, a mulher e a sociedade, reencontrar uma certa pureza perdida – são abordados de viés, por meio de roteiros singularizados ao extremo (O Criado, Boom,Cerimônia Secreta), propondo situações e personagens cuja generalidade dramática é por vezes assegurada tão-somente graças à mestria da direção de atores.
Isso não significa que o caráter excepcional de uma situação ou de um personagem lhes tire obrigatoriamente seu poder de exemplo e de generalidade. Ao contrário, muito melhor que a banalidade cotidiana, o excepcional pode atingir a amplitude, a profundidade, a grandeza que esperamos de uma obra para que ela nos toque o coração e o espírito. Os reis loucos das tragédias nos são mais fraternais que o medíocre bípede dos “documentos sociais” dos quais Losey constantemente se manteve à distância tanto por vontade quanto por instinto. Mas se ele mira sempre tão alto, é através de um universo mais estreito, mais confinado, talvez justamente porque o cineasta olha hoje de muito perto um meio-ambiente demasiadamente determinado por suas coordenadas geográficas e sociais.
Em resumo, nos deparamos agora com roteiros europeus, com um estado de espírito europeu, menos vigoroso e mais sutil.
A primeira parte de sua obra, que batizaremos de americana mais por comodidade, ainda que ela extravase à Europa, e que vai até os arredores de 1959 (Blind Date), não oferece dificuldade maior quanto à interpretação das relações de Losey com o público. Estamos na América, perto de seus pioneiros. Apesar de certos degenerados precoces, o sangue aqui ainda é jovem. Isso quer dizer: quando Losey filma em Hollywood, ele se preocupa somente em filmar o melhor possível; na confiança, na certeza não mesmo racional mas vital de que o público será tocado e sairá mais rico da sala se ele, Joseph Losey, tiver feito bem o seu trabalho. E o público quer dizer todos os públicos: não especialmente os porteiros, ou os burgueses, ou os intelectuais de Greenwich Village, ou os casais de Los Angeles, mas essa parte mais ou menos enterrada em todo homem, de desejos, de angústias, de sonhos, que a obra tem por função exumar e talvez curar.
Que uma obra não seja recebida da mesma forma por todos os homens, é a evidência. Mas há numa obra realmente grande bastante clareza, emoção e universalidade para concernir a todos os homens. É a lição do classicismo americano de um Losey (O Menino dos Cabelos Verdes, The Lawless...). Uma lição que exclui a esperteza, o esnobismo, a pretensão, o populismo, em proveito da ambição mais elevada.
Losey moderno.
O período europeu de nosso cineasta complica um pouco esses dados. Não que ele desvie do público para buscar somente os aplausos dos colegas. Seus filmes não param de trazer a marca de uma firme vontade de comunicação. A “história”, elemento de base, esqueleto indispensável para segurar as carnes, é neles contada da forma mais explícita e mais direta. Losey não busca nem a falsa ambigüidade nem embaralhar as pistas para desconcertar o espectador por artifícios da forma. Com raras exceções, se o espectador é desconcertado, será por aquilo que o filme mostra, não pela maneira como ele mostra. Em termos mais abruptos, tendo alguma coisa a fazer e a mostrar, Losey não é impelido a adulterar a matéria para se fazer valer.
Entretanto, uma circunstância nova aparece: o contato com a Europa, e sobretudo com certos meios de estetas e de intelectuais londrinos. Esse contato podou um pouco a confiança e a inocência do americano transplantado. Sabemos que a capital britânica é o foco mais virulento da doença que infecta a Europa. Como dizem os jornais bem-pensantes, tudo que é novo nos chega de Londres. Sem dúvida, não foi sem experimentar uma secreta fascinação que Losey se achou bruscamente no centro daquilo mesmo que ele pressentia e denunciava sem descanso. À questão: “Seus filmes não são ao mesmo tempo uma crítica e uma defesa da civilização ocidental?”, ele responde: “É bem evidente que meus filmes criticam certos aspectos do mundo no qual eu vivo (...) De todo modo, é certo que eu não criticaria o mundo no qual eu vivo, que não teria nenhum motivo de criticá-lo, se eu não o apreciasse, não o amasse, não aceitasse certos de seus valores. Mesmo se percebemos nele uma espécie de horror ou de mal, o simples fato dessa percepção que não pode ser senão ativa remete a uma afirmação da existência desse universo.” (3)
Trabalhando em ligação com seus meios, circulando em seus salões, Losey estabelece desde então uma nova relação com um novo público, restrito e particularizado. Seria oportuno reler as páginas clarividentes que Pierre Rissient consagrou a esse assunto em seu trabalho sobre Losey (4), e mais especialmente a propósito de King and Country. Modesty Blaise irá então mais longe no sentido da frivolidade e do comprometimento. Mas, com Accident eSecret Ceremony, parece que Losey se recupera e consegue agora integrar completamente sua fascinação à sua crítica; controlar uma atração que, nos seus momentos de plena lucidez, distanciados de toda complacência, confere a esses filmes uma superfície ao mesmo tempo rude e adesiva, que cola na pele irritando-a (Eva é o primeiro exemplo disso).
Agradar e desagradar ao mesmo tempo.
Se examinamos no presente essas diversas constatações à luz dos princípios expostos mais acima, percebemos que Losey, consciência aguda e vasta de seu tempo, abraça em um mesmo movimento os dois pólos da dualidade. Ele assume o risco de agradar e de desagradar ao mesmo tempo, levando ao coração da corrupção (corrupção sobretudo da verdade) um fino escalpelo de ouro cujo brilho, elegância e precisão se misturam estreitamente ao horror que ele disseca. Um horror que tem também, aliás, suas belezas, e mesmo suas alegrias, pois nada é branco ou preto, salvo nos filmes ruins. Secret Ceremony ilustra à maravilha essa ambivalência.
Cerimônia Secreta não é um título escolhido ao acaso. Trata-se, com efeito, de um jogo, com suas regras e sua instigadora: a jovem Cenci. Conhecemos o jogo da verdade; aqui, é o jogo da mentira. Mas um jogo, dir-se-á, não é uma cerimônia. Vejamos. Se ele se passa em um lugar privilegiado, particularmente adaptado, e se ele é grave, assemelha-se então a toda empreitada humana que quer fundar alguma coisa de estável sobre as fraquezas humanas e na passagem destrutiva do tempo. Na perspectiva agnóstica que é a de Losey, ainda que atormentada por reminiscências, o jogo supremo é a liturgia. E é a uma espécie de equivalência da liturgia que assistimos em Cerimônia Secreta, equivalência reforçada pelos objetos religiosos que semeiam o filme. Qual lugar é mais adaptado ao jogo de Cenci do que sua própria mansão, misteriosa e transpassada de luz como uma igreja? Em um outro sistema de referências, poderíamos falar também de teatro: de seus atores, de suas convenções, de sua cortina e de seu lustre.
O defeito do cerimonial de Cenci é que ele repousa não sobre elementos de verdade que se deseja aprofundar e cristalizar através de regras, mas sobre uma mentira fundamental: Léonora não é sua mãe e nenhum ritual poderá abolir essa evidência. Desde então, a representação teatral se afundará nas cores da tragédia e culminará na morte.
É, portanto, o inferno do jogo, é a dificuldade de ser, mas de ser no verdadeiro. Aqui, a liturgia assume posição de fé... Isso deveria ser então a noite, a noite total. Entretanto, no vermelho e no azul da noite, a luz palpita ainda. Como para dar razão a Pascal sobre o que ele diz da prece maquinal, no interior e por meio do cerimonial: relações de afecção, tateantes, errantes, se estabelecem. O jogo será interrompido, pisoteado em um acesso de raiva lúcido. Com um golpe de faca no ventre, a puta suprime a última mentira: batismo de sangue. Antes de morrer, a jovem mestre de cerimônia, com sua boca muda em forma de grito, clama por socorro do alto do púlpito de sua igreja, ou do balcão de seu teatro; ela clama: tudo é ainda possível.
Michel Mourlet
1. Éric Rohmer, Pierre Schoendoerffer, Claude Chabrol nos seus bons dias, Claude Sautet, Jacques Deray, Michel Deville, Jacques Rouffio. Incluiria ainda Truffaut por causa, sobretudo, de O Quarto Verde, Tavernier por A Morte ao Vivo, Bertrand Blier por Preparem seus Lenços, Alain Corneau, Gérard Blain.
2. Escrito em 1969. Alguns anos mais tarde, teria incluído Dino Risi e Comencini, cujas obras foram realmente conhecidas na França a partir dos anos 70. E, curiosamente desconhecido, o filme de Marco Vicario,Esposamante, distribuído na França em 1978.
3. Cahiers du Cinéma, n° 111.
4. Éd. universitaires, coll. “Classiques du cinéma”.
(Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr.)
Texto retirado de http://www.contracampo.com.br/92/artloseymourlet2.htm
Uma Harmonia coletiva
Nas épocas em que uma civilização progride ou culmina, a dualidade de que falamos não existe. O artista se acha espontaneamente de acordo com os grandes movimentos e com as correntes profundas que animam a coletividade da qual ele é o fruto. Em harmonia com seu público, ele apenas deseja agradá-lo. Os egípcios de Ramsés II, os gregos de Péricles, os romanos de César e de Augusto, os ingleses de Elizabeth, os espanhóis de Carlos V, os franceses de são Luís ou de Luís XIV se atiraram a um só objetivo: criar obras para o prazer e o ensinamento dos homens. A isso se chama também classicismo, essa vontade de fazer a obra atingir o ponto de reconciliação de seus termos fragmentados: o homem, o mundo; fragmentação, vazio e ignorância que haviam suscitado justamente a necessidade de criar.
O Ciclo vital
Mas, infelizmente, uma curva que subiu deve descer novamente: lei terrível da vida. Uma civilização é um organismo vivo, como uma flor, como um pato na lagoa, como um homem. Ela nasce, ela cresce, ela amadurece, ela envelhece, ela morre. Ou então a matam. E quando ela envelhece, acontece nela o que acontece em todo e qualquer organismo: seus tecidos empobrecem, seus elementos se dissociam, tentam anarquicamente sobreviver em detrimento dos outros e perecem. Então o artista não está mais necessariamente de acordo com seu tempo, nem com seu grupo. Ocorre, até com bastante freqüência, de o artista se opor a eles com todas as suas forças, o são se tornando solitário no meio de toda a agonia. As duas opções possíveis do artista, agora que numerosos signos anunciam que há algo de podre no reino do Ocidente, serão portanto aceitar ou recusar a decadência.
Como essa aceitação ou essa recusa se traduzem em termos de relação com o público? E qual maneira de abordar a alternativa Joseph Losey, cineasta exemplar, escolheu?
Os dois comportamentos
Aceitar, ou recusar. Aceitar é, veremos a seguir, aceitar a anarquia dos interesses contraditórios no seio de um grupo em via de perecimento. É necessário tentar provocá-la, para melhor mostrar que se é cúmplice e mais que cúmplice: ator. Um intelectual ou um artista que aceita a derrota de sua própria civilização, seja porque sonha com uma outra, seja por inconsciência ou futilidade, o que quase sempre dá no mesmo, se quer responsável pelos fermentos que a decompõem. Ele corta alegremente o galho que o sustenta. Na sua relação com o público, os valores negativos prevalecerão, os temas de desacordo sem a contrapartida de uma crítica construtiva. Em vez de se pôr ao serviço dos espectadores, o cineasta (já que falamos de cinema) se refugiará no desprezo ou se lançará à agressão. Conivência com as capelas, piscadas de olho aos amigos, provocações formais gratuitas, histeria temática, ou então recusa da estética, recusa da narrativa (mediadora de comunicação) formarão as constâncias de seu comportamento criador. Imerso por inteiro, entranhado no caos de sua época, ele será seu eco fiel e complacente.
Recusar-se a conformar e a integrar sua criação à decomposição que os rodeia é próprio dos cineastas que, menos atingidos pelo envelhecimento de sua coletividade, desejarão salvá-la mais do que traí-la. Distanciados de todo romantismo e em particular do culto exacerbado ao individual na arte, eles conservam junto ao público uma atitude clássica de respeito. Podemos citar aqui, dentre outros, dois grandes americanos: Raoul Walsh, Allan Dwan; dois grandes germânicos: Fritz Lang, Otto Preminger; alguns franceses já citados alhures (1); um italiano: Cottafavi (2). Esses aspiram menos a cuspir no rosto do espectador do que a lhe trazer a beleza, o ensinamento, o apaziguamento, quiçá o divertimento que eles têm missão e vocação de fazer jorrar do deserto.
Assim, o paradoxo da criação artística em período de declínio é que o artista em acordo com seu tempo é por isso mesmo levado a se dissociar do público, e que o artista em ruptura é por isso mesmo levado a se lhe conciliar. Dois exemplos ilustrarão essa proposição: Godard e Fritz Lang. O primeiro, atento à confusão do crepúsculo, porta-bandeira da modernidade; o segundo, nem antigo nem moderno: eterno, vertiginosamente longe (como diz às vezes), em sua vida como em sua obra, das erosões do presente; e portanto muito mais próximo de nós do que tantos outros, colados à sua época como moscas sobre um pedaço de carne.
E Losey?
Losey clássico.
O comportamento de Joseph Losey face ao público, tal como se depreende de seus filmes, e também de suas falas, não entra de maneira tão simples nesse esquema dualista; o qual apenas representa, repitamos, o esboço geral do problema.
Convém antes notar que a ferida do exílio (Losey deixou os Estados Unidos em 1952) teve conseqüências importantes sobre a evolução de seu trabalho. O estilo mudou, o olhar mudou. Cortada de suas raízes, a generosa simplicidade americana cedeu lugar a uma trajetória mais complexa, por vezes sinuosa, enriquecida de preciosidade onde os problemas próprios a Losey – o homem, a mulher e a sociedade, reencontrar uma certa pureza perdida – são abordados de viés, por meio de roteiros singularizados ao extremo (O Criado, Boom,Cerimônia Secreta), propondo situações e personagens cuja generalidade dramática é por vezes assegurada tão-somente graças à mestria da direção de atores.
Isso não significa que o caráter excepcional de uma situação ou de um personagem lhes tire obrigatoriamente seu poder de exemplo e de generalidade. Ao contrário, muito melhor que a banalidade cotidiana, o excepcional pode atingir a amplitude, a profundidade, a grandeza que esperamos de uma obra para que ela nos toque o coração e o espírito. Os reis loucos das tragédias nos são mais fraternais que o medíocre bípede dos “documentos sociais” dos quais Losey constantemente se manteve à distância tanto por vontade quanto por instinto. Mas se ele mira sempre tão alto, é através de um universo mais estreito, mais confinado, talvez justamente porque o cineasta olha hoje de muito perto um meio-ambiente demasiadamente determinado por suas coordenadas geográficas e sociais.
Em resumo, nos deparamos agora com roteiros europeus, com um estado de espírito europeu, menos vigoroso e mais sutil.
A primeira parte de sua obra, que batizaremos de americana mais por comodidade, ainda que ela extravase à Europa, e que vai até os arredores de 1959 (Blind Date), não oferece dificuldade maior quanto à interpretação das relações de Losey com o público. Estamos na América, perto de seus pioneiros. Apesar de certos degenerados precoces, o sangue aqui ainda é jovem. Isso quer dizer: quando Losey filma em Hollywood, ele se preocupa somente em filmar o melhor possível; na confiança, na certeza não mesmo racional mas vital de que o público será tocado e sairá mais rico da sala se ele, Joseph Losey, tiver feito bem o seu trabalho. E o público quer dizer todos os públicos: não especialmente os porteiros, ou os burgueses, ou os intelectuais de Greenwich Village, ou os casais de Los Angeles, mas essa parte mais ou menos enterrada em todo homem, de desejos, de angústias, de sonhos, que a obra tem por função exumar e talvez curar.
Que uma obra não seja recebida da mesma forma por todos os homens, é a evidência. Mas há numa obra realmente grande bastante clareza, emoção e universalidade para concernir a todos os homens. É a lição do classicismo americano de um Losey (O Menino dos Cabelos Verdes, The Lawless...). Uma lição que exclui a esperteza, o esnobismo, a pretensão, o populismo, em proveito da ambição mais elevada.
Losey moderno.
O período europeu de nosso cineasta complica um pouco esses dados. Não que ele desvie do público para buscar somente os aplausos dos colegas. Seus filmes não param de trazer a marca de uma firme vontade de comunicação. A “história”, elemento de base, esqueleto indispensável para segurar as carnes, é neles contada da forma mais explícita e mais direta. Losey não busca nem a falsa ambigüidade nem embaralhar as pistas para desconcertar o espectador por artifícios da forma. Com raras exceções, se o espectador é desconcertado, será por aquilo que o filme mostra, não pela maneira como ele mostra. Em termos mais abruptos, tendo alguma coisa a fazer e a mostrar, Losey não é impelido a adulterar a matéria para se fazer valer.
Entretanto, uma circunstância nova aparece: o contato com a Europa, e sobretudo com certos meios de estetas e de intelectuais londrinos. Esse contato podou um pouco a confiança e a inocência do americano transplantado. Sabemos que a capital britânica é o foco mais virulento da doença que infecta a Europa. Como dizem os jornais bem-pensantes, tudo que é novo nos chega de Londres. Sem dúvida, não foi sem experimentar uma secreta fascinação que Losey se achou bruscamente no centro daquilo mesmo que ele pressentia e denunciava sem descanso. À questão: “Seus filmes não são ao mesmo tempo uma crítica e uma defesa da civilização ocidental?”, ele responde: “É bem evidente que meus filmes criticam certos aspectos do mundo no qual eu vivo (...) De todo modo, é certo que eu não criticaria o mundo no qual eu vivo, que não teria nenhum motivo de criticá-lo, se eu não o apreciasse, não o amasse, não aceitasse certos de seus valores. Mesmo se percebemos nele uma espécie de horror ou de mal, o simples fato dessa percepção que não pode ser senão ativa remete a uma afirmação da existência desse universo.” (3)
Trabalhando em ligação com seus meios, circulando em seus salões, Losey estabelece desde então uma nova relação com um novo público, restrito e particularizado. Seria oportuno reler as páginas clarividentes que Pierre Rissient consagrou a esse assunto em seu trabalho sobre Losey (4), e mais especialmente a propósito de King and Country. Modesty Blaise irá então mais longe no sentido da frivolidade e do comprometimento. Mas, com Accident eSecret Ceremony, parece que Losey se recupera e consegue agora integrar completamente sua fascinação à sua crítica; controlar uma atração que, nos seus momentos de plena lucidez, distanciados de toda complacência, confere a esses filmes uma superfície ao mesmo tempo rude e adesiva, que cola na pele irritando-a (Eva é o primeiro exemplo disso).
Agradar e desagradar ao mesmo tempo.
Se examinamos no presente essas diversas constatações à luz dos princípios expostos mais acima, percebemos que Losey, consciência aguda e vasta de seu tempo, abraça em um mesmo movimento os dois pólos da dualidade. Ele assume o risco de agradar e de desagradar ao mesmo tempo, levando ao coração da corrupção (corrupção sobretudo da verdade) um fino escalpelo de ouro cujo brilho, elegância e precisão se misturam estreitamente ao horror que ele disseca. Um horror que tem também, aliás, suas belezas, e mesmo suas alegrias, pois nada é branco ou preto, salvo nos filmes ruins. Secret Ceremony ilustra à maravilha essa ambivalência.
Cerimônia Secreta não é um título escolhido ao acaso. Trata-se, com efeito, de um jogo, com suas regras e sua instigadora: a jovem Cenci. Conhecemos o jogo da verdade; aqui, é o jogo da mentira. Mas um jogo, dir-se-á, não é uma cerimônia. Vejamos. Se ele se passa em um lugar privilegiado, particularmente adaptado, e se ele é grave, assemelha-se então a toda empreitada humana que quer fundar alguma coisa de estável sobre as fraquezas humanas e na passagem destrutiva do tempo. Na perspectiva agnóstica que é a de Losey, ainda que atormentada por reminiscências, o jogo supremo é a liturgia. E é a uma espécie de equivalência da liturgia que assistimos em Cerimônia Secreta, equivalência reforçada pelos objetos religiosos que semeiam o filme. Qual lugar é mais adaptado ao jogo de Cenci do que sua própria mansão, misteriosa e transpassada de luz como uma igreja? Em um outro sistema de referências, poderíamos falar também de teatro: de seus atores, de suas convenções, de sua cortina e de seu lustre.
O defeito do cerimonial de Cenci é que ele repousa não sobre elementos de verdade que se deseja aprofundar e cristalizar através de regras, mas sobre uma mentira fundamental: Léonora não é sua mãe e nenhum ritual poderá abolir essa evidência. Desde então, a representação teatral se afundará nas cores da tragédia e culminará na morte.
É, portanto, o inferno do jogo, é a dificuldade de ser, mas de ser no verdadeiro. Aqui, a liturgia assume posição de fé... Isso deveria ser então a noite, a noite total. Entretanto, no vermelho e no azul da noite, a luz palpita ainda. Como para dar razão a Pascal sobre o que ele diz da prece maquinal, no interior e por meio do cerimonial: relações de afecção, tateantes, errantes, se estabelecem. O jogo será interrompido, pisoteado em um acesso de raiva lúcido. Com um golpe de faca no ventre, a puta suprime a última mentira: batismo de sangue. Antes de morrer, a jovem mestre de cerimônia, com sua boca muda em forma de grito, clama por socorro do alto do púlpito de sua igreja, ou do balcão de seu teatro; ela clama: tudo é ainda possível.
Michel Mourlet
1. Éric Rohmer, Pierre Schoendoerffer, Claude Chabrol nos seus bons dias, Claude Sautet, Jacques Deray, Michel Deville, Jacques Rouffio. Incluiria ainda Truffaut por causa, sobretudo, de O Quarto Verde, Tavernier por A Morte ao Vivo, Bertrand Blier por Preparem seus Lenços, Alain Corneau, Gérard Blain.
2. Escrito em 1969. Alguns anos mais tarde, teria incluído Dino Risi e Comencini, cujas obras foram realmente conhecidas na França a partir dos anos 70. E, curiosamente desconhecido, o filme de Marco Vicario,Esposamante, distribuído na França em 1978.
3. Cahiers du Cinéma, n° 111.
4. Éd. universitaires, coll. “Classiques du cinéma”.
(Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr.)
Texto retirado de http://www.contracampo.com.br/92/artloseymourlet2.htm