Um homem e uma mulher param em um café. Eles são perfeitos estranhos, e estão se divertindo. Aí o homem conta uma piada que a mulher não gosta. Ela começa a chorar, e o homem convenientemente se levanta para atender uma ligação do lado de fora. Uma garçonete pergunta à mulher qual é o problema, e a mulher descreve os percalços que surgem quando se é casada por 15 anos. Quando o homem retorna, nós não mais sabemos a natureza do relacionamento deles. Eles riem do absurdo da ideia de serem casados, somente para, em outro momento, discutirem se ele negligencia ela e o seu filho.
É nesse ponto de Cópia Fiel que vários dos espectadores caem fora, é o momento em que muda de uma engraçada e ensolarada caminhada pela Itália para uma versão comédia romântica de Persona. Mas o novo filme de Abbas Kiarostami tem nos preparado para esse momento durante todo o tempo. As duas pessoas estão simultaneamente interpretando o novo casal e o velho, mais os atores interpretando-os. A dissolução da identidade pessoal é apenas o último objetivo do projeto de Kiarostami neste filme, que é dissolver a linha entre cópia e original.
É melhor começar por definir alguns termos. O homem, James(William Shimell), é um crítico de arte, modelado descaradamente a partir de Arthur Danto, que faz uma viagem pela Toscana para dar uma palestra sobre seu novo livro. Ele se apressa ao entrar na sala, atrasado, e para em pé ante um microfone e duas estátuas. “Arte não é um assunto fácil para se escrever sobre.”, ele diz, “ Não há pontos fixos de referencia, nenhuma verdade fácil para se apoiar”. Então, depois de todo esse blablabla, ele vai ao ponto: “A cópia tem um valor próprio, ela remete ao original e assim atesta o seu valor”. A cópia para ele é feita para dar ao original significado; é o seu sentido, sua função. A bela mulher que ele conhece depois (Juliette Binhoche) discorda. Ela fala de sua irmã, que compra qualquer objeto artístico que é bonito, não importa de onde vem, porque para ela “não há diferença entre uma cópia e um original”. Cada cópia separada de uma obra, então, é seu próprio objeto original.
É um conflito estético , contruido estritamente em torno da grande arte. Mas ele estende-se ao mundo de fora, também. O casal decide passear de carro, e eles são filmados frontalmente. Enquanto falam nós vemos pessoas atrás deles através da janela traseira e o reflexo da cidade passando na da frente. Essas imagens são reflexos, mas você também pode chamá-las de representações, interpretações, reinterpretações ou traduções. Enquanto você olha para elas é preciso se perguntar se são meramente partes subordinadas dos prédios que representam, imagens que certificam o valor das verdadeiras, ou se as imagens são seus próprios objetos, com um valor igual ou maior do que os itens que representam. Capturadas com uma dourada luz vespertina pela câmera Red One do Kiarostami, elas certamente são muito mais belas.
A questão se uma tradução é sua própria obra de arte surge mais frequentemente na literatura, talvez porque é mais fácil imaginar colocar um livro e seu manuscrito traduzido um ao lado do outro, do que ver Empire projetado no Empire State. Samuel Beckett traduzia seus livros escritos em francês para o inglês, uma ocasião que ele via como uma chance de reescrevê-los; a frase mais famosa que ele escreveu em inglês , “I can’t go on, i’ll go on”, não tem equivalente na versão original francesa de em The Unnameable. É possível que algumas locuções soem melhor em outras línguas. Certamente é o que James, o imperioso homem Inglês, acredita ser o caso quando o titulo original de seu livro, desajeitado e cheio de palavras, recebe a tradução para Copie Conforme, que transformado de novo em inglês nos dá o titulo do filme. Nesse caso, ironicamente, James prefere a cópia ao original.
Sua preferencia é duplamente irônica dado o fato que, por boa parte do filme, ele se recusa a falar outra língua que não a dele. Qando ele e a mulher (sem nome, a não ser Ela) falam com italianos, ela acaba sempre fazendo a tradução. Em um surpreendente momento de dialética, um homem italiano começa a falar, legendas aparecem embaixo da tela, e a mulher–que é francesa–entrega inglês em voz alta. O momento lembra/empresta/rouba/traduz a maneira como a garota italiana faz a tradução simultânea de qualquer coisa que os falantes, em inglês ou francês, estão dizendo no filme de Godard, O Desprezo, que também é sobre tradução, adaptação (a obra literária Odisséia em cinema). No começo, Ela escolhe falar com James em inglês, não em sua língua original; então, enquanto o filme se desenvolve e eles mudam de um feliz novo casal para um amargurado velho casal, começam a conversar em Francês. Se uma pessoa escolhe falar a língua de outra, isso não faz dela uma cópia?
Eldrige Cleaver uma vez disse (adaptando Lewis Carroll) que os dominantes da sociedade eram aqueles que definiam os termos, e que o grupo subordinado era o que falava a língua do grupo dominador. Um artigo de julho passado no Wall Street Journal, apresentou a tese de que a língua influencia a cultura, e que o conjunto de palavras que as pessoas são ensinadas a usar ajuda a moldar o modo delas pensarem. Cópia Fiel não parece concordar ou discordar dessa tese; na verdade, seu objetivo parece ser deixar a questão em aberto. Mas quando os membros do casal no filme mudam a língua que eles estão falando, eles também estão mudando a maneira de se relacionarem–e, por extensão, estão mudando quem são.
Quem são essas duas pessoas? Nós sabemos, ou começamos pensando, que ele é um crítico de arte solteiro da Inglaterra, e que ela é uma francesa, mãe solteira, dona de uma loja de antiguidades, mas tudo isso muda depressa. Quanto mais eles falam sobre si, e o passado deles juntos, menos podemos saber com certeza sobre eles, e talvez menos eles consigam saber sobre eles mesmos. Enquanto ele está lá fora falando no celular, Ela reclama para a velha da cafeteria que ele trabalha muito e Ela o ama demais; em outras palavras, o cliché que uma quantidade enorme de arte nos informa: no que o homem (trabalho) e a mulher (amor) se seguram para poderem formar uma identidade. A dramaturga Sarah Ruhl acredita que os seus personagens nunca falaram antes da primeira linha de diálogo que eles têm. Similarmente, é completamente possível que James e Ela nunca existiram antes do filme começar e estão agora, como o narrador em Ano Passado em Marienbad, inventando histórias diferentes para eles, pra ver se uma cola. Eles poderiam muito bem ser um organismo original copiando comportamentos, traços, e tendências que reconhecem serem humanamente padronizadas (o novo trabalho do Godard, Filme Socialismo, também comenta como as pessoas formam suas identidades através da imitação).
Ou eles podem ser cópias de pessoas que existiram antes do filme começar e continuam a existir depois que ele termina: os atores que os interpretam, William Shimell e Juliette Binoche.
Binoche é famosa mundialmente, ganhadora do Oscar e do César, que trabalhou com importantes diretores, de Michael Haneke a Hou Hsiao-Hsien. Neste filme ela ri, chora, grita, suspira, parece preocupada, e faz tudo a seu alcance para segurar o seu homem. É uma extraordinária e ativa performance, uma que rendeu a ela o prêmio de melhor atriz em Cannes este ano, e que está sendo mais ou menos aclamada unilateralmente desde então. Shimell, ao contrário, é um cantor de ópera aparecendo em seu primeiro filme, e muitos críticos atacaram sua performance como rígida e rasa. E estão certos em fazê-lo: Shimell tem uma rica, maravilhosa voz de barítono, mas ele underplay a comédia, overplay a raiva, joga os braços ao redor sem jeito, e parece autoconsciente o tempo inteiro. Mas o contraste acentuado entre os intérpretes e os estilos de interpretação prova mais uma forma de se misturar cópias e originais.
Para ilustrar o porque, eu gostaria de oferecer uma anedota. Há um ano, eu vi uma produção da Broadway do musical South Pacific. Os atores todos aderiram a um estilo de performance
amplo, brega típico de musicais, salvo um ator em um pequeno, não cantante, usualmente esquecível papel. Ele parecia esquisito no palco, mexendo os pés desconfortavelmente, esperando para outros atores sinalizarem suas deixas e de vez em quando entrando e dando suas falas prematuramente. Um crítico provavelmente diria que ele deu uma performance horrível, e estaria certo, mas depois de um tempo seus esforços se tornaram tão normais a mim que meu pensamento mudou: deixei de pensar no seu trabalho como intérprete e vi ele como um ser humano tentando interpretar. Daí, uma vez que isso aconteceu, ele se tornou a parte mais interessante do show.
Seja conscientemente ou inconscientemente, avaliações críticas de atuações geralmente focam dois aspectos. O primeiro é se a interpretação parece realista– em outras palavras, se o crítico acredita que o ator está, como um marionetista, fazendo o personagem se comportar de uma maneira que aquela pessoa (o personagem) se comportaria se ele o encontrasse na mesma situação fictícia na vida real. O segundo é se a performance do ator é coerente em tom e em estilo com o dos outros intérpretes. Trabalhos como a desajeitada imitação de John Huston por Clint Eastwood em Coração de Caçador, que não cria nem um personagem ficcional convincente nem se iguala ao trabalho mais naturalista feito pelos outros atores do filme, geralmente parece estranha para muitos espectadores. Realmente, ela não funciona no contexto da narrativa ficcional de Coração de Caçador, mas funciona extraordinariamente bem se você sair um pouco da história e ver Eastwood tentando deixar você ciente do quão desconfortável ele está interpretando um homem violento, o que muda a maneira como você vê toda a sua carreira.
Shimell não parece tão em controle dos seus movimentos e entregas como Eastwood, mas o efeito de deixar você ciente da performance e da pessoa que a está dando é o mesmo. Como Kiarostami escalou-o junto com, não só uma atriz profissional, mas uma extremamente indicativa e extrovertida (Binoche deu muitas de suas melhores performances interpretando personagens que são atrizes), fica óbvio que ela está interpretando também. Colocando-os juntos, Kiarostami faz seus atores principais absurdamente divergentes parecerem igualmente falsos–e, como resultado, também igualmente autênticos.
Um filme como Cópia Fiel explode em truísmos sobre atuação. Atores podem estar copiando pessoas reais, mas eles também são pessoas reais; e enquanto a maioria das pessoas não aparecem em filmes, seres humanos estão sempre atuando. Isso é especialmente verdade no amor, em quem um parceiro geralmente se comporta de uma maneira que ele ou ela ganhem uma reação do outro: como Roland Barthes argumenta em Le discours amoureux, o amante está constantemente interpretando o papel de amante, mesmo quando está dizendo a verdade. Uma das citações favoritas do Kiarostami é de Nietzsche: ”Aquilo que é verdadeiramente profundo precisa de uma máscara”. Em filmes anteriores como Através das Oliveiras e O Vento nos Carregará, o diretor escalou atores profissionais em oposição a não professionais para comentar sobre relações de poder–os atores treinado são adultos interpretando artistas da classe alta tirando vantagem de crianças de classe média ou baixa. Em Cópia Fiel, por contraste, ambos, profissional e não profissional, são adultos da classe alta, trazendo as dinâmicas de poder mais perto do que em suas obras anteriores e indo ainda mais fundo que a frase de Nietzsche: As máscaras das pessoas são as mesmas que as suas caras.
Você tem essa impressão do último plano de Cópia fiel, no qual Kiarostami coloca a câmera onde o espelho do banheiro estaria, deixando James/Shimell a olhar diretamente para nós. É também uma parte de um do grandes momentos no que talvez seja o melhor filme de Kiarostami, a obra-prima da autorreflexão, Close-Up. Um homem diz que ele deixou de lado seu sonho de ser um ator, outro homem pergunta se ele está interpretando para a câmera naquele momento, e o homem diz que não. O que ressoa do momento é a resolução que você tem que ele está simultaneamente mentindo e dizendo a verdade. A presença da câmera paradoxalmente ajuda a perceber como as pessoas estão sempre atuando, mesmo quando estão fora da tela. Jonathan Rosenbaum sumariza o argumento na faixa de comentário do DVD de Close-Up: “Ser, em oposição a atuar, seria uma forma de atuar?”
A questão se conseguimos distinguir entre ser e atuar, inevitavelmente leva a questão se conseguimos distinguir ficção da não-ficção. Godard uma vez disse que um filme é sempre um documentário da sua produção; Kiarostami uma vez disse, com um pouco mais de humor, que “há tanta distinção entre documentário e ficção quanto entre um filme bom e um ruim.” Ed Gonzalez acerta ao colocar Cópia Fiel na tradição de filmes que vão de Viagem à Itália a Antes do pôr-do-sol (eu iria ainda mais longe, pelo menos até Aurora)–não só porque é um maravilhoso romance como esses filmes, mas porque todos justapõe um drama roteirizado de um casal, com o drama sem roteiro da cidade rodeando-os. Colocar a narrativa ficcional dentro de um contexto documental transforma ambos em ambos.
Ademais, os momentos ostensivamente ficcionais dos dois protagonistas de Cópia Fiel se olhando nos espelhos, ou se vendo espelhados em outros casais–um particularmente engraçado aparece quando eles discutem parados perto de recém-casados–espelha o ostensivo final documental de outro grande filme de Kiarostami, Gosto de Cereja. O protagonista ficcional se deita em uma vala a noite para se matar, a ação capturada em 35mm; o filme então corta para um epílogo filmado em vídeo, no qual Kiarostami e sua equipe se preparam para um filmagem diurna enquanto o ator principal fuma um cigarro e um grupo militar passa. A justaposição dos dois cenários, com todas as suas diferenças–diretor e equipe, militar e civil, película e vídeo, diurna e noturna, ficção e não-ficção, vida em frente às câmeras e vida atrás das câmeras–sugerem um mundo grande o suficiente para abarcá-los.
A maior linha cópia-original que Cópia Fiel dissolve é aquela entre o cinema e o resto do mundo. (Incidentalmente, o filme foi filmado em vídeo digital e subsequentemente passado para 35mm, para que sua própria matéria inclua múltiplas formas de capturar o mundo.) Os filmes de Kiarostami frequentemente mostram pessoas andando em carros, e Rosenbaum diz no comentário do DVD de Close-Up que “estar em um carro é como estar numa plateia de um filme: Você está sozinho e com outras pessoas.” Em Dez, Kiarostami deixou sua protagonista em um carro o filme inteiro para sugerir o encarceramento social da mulher iraniana; mesmo em público, elas ainda são contraídas. A cena no carro no início de Cópia Fiel é longa o suficiente para você pensar que o filme inteiro vai proceder desta maneira, com os protagonistas presos no carro e o mundo exterior passando na janela, porém o filme surpreende você por fazer eles pararem o carro, e saírem para interagir com o mundo a sua volta, incluindo nós.
Essa mudança é especialmente surpreendente–e, francamente, benvinda– considerando a direção mínima que os filmes recentes do Kiarostami têm tido. A carreira de Kiarostami talvez faça mais sentido quando consideramos sua carreira simultânea como um dos grandes poetas do Irã, cuja persona é aquela de um observador cru que pode instantaneamente tanto destilar grande beleza:
Quanto mais eu penso
menos eu entendo
a razão da brancura da neve.
Como grande mágoa:
Quanto mais eu penso
menos eu entendo
porque a verdade deve ser tão amarga.
Ele trouxe esse sentido de maravilha para uma série de filmes educacionais para crianças nos anos 70 e início dos 80, depois para uma série de comédias melancólicas de Onde fica a casa de meu amigo até O vento nos carregará, que tenta conciliar tantas diferentes partes da população iraniana quanto possível–rico e pobre, adultos e crianças, turcos e afegãos. Todos mostravam uma doçura gentil que filmes não tinham visto antes: A primeira cena de Close-Up, por exemplo, deixa uma investigação policial no extracampo para que possa focar em um repórter observando um spray descer um morro. Em 2000, Film Comment votou nele como o maior diretor da última década; muitos acreditavam ser o maior do mundo.
Após um documentário sobre sua viagem para visitar vítimas da AIDS em Uganda (ABC Africa de 2001), Kiarostami experimentou com o que ele chamou “cinema em uma palavra.” Dez consistiu de dez planos de uma mulher iraniana dirigindo; Five: Dedicated to Yasujiro Ozu de 2005 mostra cinco planos estáticos em diferentes pontos do Mar Cáspio; dois making-of ensaísticos explicavam seus métodos; e Shirin mostrava brevemente Binoche como uma das mais de cem mulheres em um teatro, cada uma delas Kiarostami filmou olhando para uma peça no extracampo.
Cópia Fiel na verdade logicamente se desenvolve de Shirin. Ambos os filmes expressam a ideia do diretor Jacques Tati de que a plateia e os intérpretes são intercambiáveis por focarem em pessoas vendo um drama de amor montado. Em Cópia fiel, muito mais que em Shirin, os personagens são simultaneamente plateia e atores–e assim, também, Kiarostami diz, somos nós. Se seus filmes anteriores são cinema em uma palavra, Cópia Fiel, então, é um dicionário, um que inclua um espelho em cada página.
Aaron Cutler
Tradução: Cauby Monteiro