por Fernando Lopes
Quando o conheci, nos idos de 62, no "Montebranco" do Saldanha (já a mania dos gelados...), ele era só o César que, com o Seixas, o APV, o António Escudeiro e o Zé Vaz Pereira, discutia filmes a manhã inteira e pensava nos "engates" - à época muito difíceis.
O César, no seu corpo desengonçado - meio Buster Keaton, meio Tati "avant la lettre" - era o mais ousado nesse desporto radical nos púdicos e hipócritas anos 60.
Aí por volta de 63 - com os Verdes Anos em rodagem e eu a preparar o Belarmino -, o grupo mudou-se, com armas e bagagens, para o "Vává", próximo da Ulyssea Filmes (laboratório e salas de montagem), que veio a ser a "alma mater" do "Cinema Novo Português" - assim mesmo, com maiúsculas e tudo!
O César passou a ser o João César, candidato a cineasta. Tal como nós todos.
O desporto radical do "engate" apurou-se (vejam os exemplos em todos os meus filmes...), graças às "Valquírias do Vává", como ele chamava às meninas da Faculdade, que por lá passavam todos os dias e que ele cortejava com modos de "dandy", pobre mas honrado.
O João César foi o primeiro "sem abrigo" que conheci (lembrem-se das Recordações da Casa Amarela), dormindo ao Deus dará, ora em casa do APV, ora do Escudeiro (aqui sempre com um olho lúbrico na Lela...), ora, sobretudo, do Cristiano de Freitas (que era de nós todos o único que tinha meios financeiros, carro de sport descapotável e, claro, muitas conquistas femininas). O João César privilegiava principalmente a casa do Cristiano (em frente ao "Vává"), porque de vez em quando sobrava para ele uma "dama de muito bem fazer a quem lho pedisse". E o João César não pedia, atacava mesmo e de mil maneiras, "porque amor não há feito", como disse o poeta (também se vê, ora burlesco, ora trágico, em todos os filmes dele).
Às tantas apareceu no "Vává" o velho Ricardo Malheiros, um produtor da estirpe do Fernão Mendes Pinto, que eu conhecera no Brasil, em circunstâncias alegremente rocambolescas e que, de regresso a este jardim à beira-mar plantado, me veio anunciar a criação de sua nova Produtora, pomposamente designada "Cultura Filmes" (com o filme do Paulo, o meu e o do António Macedo era preciso um ar sério para sacar dinheiro à Gulbenkian...).
O Ricardo pediu-me então que lhe apresentava realizadores da nova geração.
Disse-lhe: "Oh Ricardo, veio ao sítio certo porque estão aqui quase todos à mão de semear!". O APV, o Seixas e eu, lá fizémos uma caterva de tarefas alimentares (sem grande consequência cinematográfica, diga-se em abono de Lumière e de Méliès...), até o dia histórico, a vários níveis - e não apenas cinematográficos... -, em que consegui convencer o Ricardo a dar ao João a oportunidade de realizar o seu primeiríssimo filme:
Sophia
(que eu considero uma obra-prima e que contém já muito do que ele viria a fazer depois, desde Quem Espera por Sapatos de Defuntos até a última e pungente despedida que é o Vai e Vem). E é neste percurso inicial que ele deixou de ser, primeiro - o quase pejorativo César; depois - o mais familiar e amigável (às vezes, às vezes...) João César; por fim - tal como acabou por ser reconhecido, aqui e lá fora, o João César Monteiro.
Considerado pela crítica internacional, e já agora também pela portuguesa, o mais singular realizador do nosso cinema, raiando o gênio, através do risco e da mais elaborada, culta e vernacular provocação. Sonora e visual. Olha, João de Deus: assim seja! Mas não pares de fustigar com o teu chicote a insidiosa "dark Lady" que, em hora funesta, te "engatou" num banco de jardim de Lisboa.
Janeiro de 2005.
Interior da Pastelaria "Vává", em foto sem data, sem os verdes anos.
Texto em português de Portugal. Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005.