terça-feira, 20 de outubro de 2020

Silvestre

por João César Monteiro

Silvestre, um filme, um coração de fogo; arde apaixonadamente - substância e matriz - da sua própria energia; sem defesa, transtorna-se, reaparece, renasce consciente da sua relatividade, humaniza-se em suma, como as matérias - teatro e vida - de que é tecido.

Dos desertos do amor à solidão das estrelas, a travessia árdua, dolorosa e desordenada de todos os sonhos rebeldes: porque é pelo frio que subimos, ou, muito simplesmente, we can't go home again, como diziam nossos amigos que agora descansam.

Pelo fascismo fomos arrancados do cordão umbilical da nossa própria história, pulverizados: qual será o nosso destino? Atirados em mil pedaços, fazemos filmes que invocam em vão o gai savoir dos elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Atroz, a praia aberta por essa exploração - geografia irrisória de uma região fabulosa e conjecturada. Poderemos ainda ler os fragmentos do nosso corpo disperso? Voltar a ligá-los a um desejo cívico? O nosso destino é um palimpsesto insondável, um equívoco. Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios e a coisa nenhuma? A que é que se aprece a nossa tão vaga e tão obscura natureza?

in Cahiers du Cinéma nº 460, outubro 1992. Traduzido para português de Portugal por João Pedro Bénard.
Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. 

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