quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Belarmino, verdade e mentira

 por Vera Lúcia de Oliveira e Silva



O filme Belarmino [1] coloca na mesa a pergunta: Belarmino mente?
Respondo: Belarmino mente. Não mais do que você – ou eu.

O filme de Fernando Lopes mostra um contraponto entre o boxeur e seu manager, do qual emerge a pergunta: quem está mentindo?
Respondo de novo: provavelmente os dois.

Estou pensando nos conceitos de verdade e mentira explorados por Nietzsche[2] em seu sentido não-moral (ou extra moral): a mentira como inevitável e a verdade como ilusão.

Nietzsche faz a arqueologia do aparecimento da palavra, desde a coisa – das Ding – cujos atributos perceptíveis chegam a sensibilizar a consciência humana. Ele se dá conta de que, nesse primeiro momento, já há uma primeira quebra da verdade, pois só aquilo que estamos aptos a perceber chegará a produzir uma dada representação no sistema percepção-consciência. A coisa em si – das Ding an sich – como já dissera Kant antes dele, permanecerá incognoscível.

A partir dessa primeira captura fragmentária, o homem vai produzir uma sonoridade – um significante – que dirá, em ondas audíveis, aquilo que ele percebeu daquilo que da coisa é apreensível.

É sobre essa base frágil, através de convenções que os seres falantes estabelecem entre si, que se constrói um discurso cuja validade se deseja sustentável.

Freud vai tornar superlativa essa fragilidade quando nos aponta que, a própria percepção, mesmo daquilo que é plenamente perceptível, estará sempre enviesada pelo narcisismo e pelo gozo. Ele nos diz que, quando a verdade e a vaidade discordam, a verdade sai sempre perdendo; e que somos muito aptos a inclinar nossa percepção de modo a fazer com que a realidade seja lida de acordo com nosso modo próprio de satisfação. Ele vai mais longe, ao dizer que toda recordação é encobridora: se você se lembra, é porque não é bem assim – a lembrança já está corrigida segundo o gosto[3] daquele que se lembra.

Então... – com tanto perigo ameaçando a verdade; com tanta probabilidade de que a mentira seja tomada como verdadeira, não por uma decisão moral, mas por um incontornável nascimento precário; com a máxima possibilidade de engano, mesmo que não haja uma intenção consciente de enganar – ... fica a pergunta: de onde tiramos nossas certezas?

E mais: de onde tiramos nós a paixão pelas nossas certezas, a ponto de delas retirarmos critérios “seguros” para decidir entre o amor e o ódio?

Esta é a pergunta que me resta de Belarmino. A cada um, a resposta que lhe convém.

20 de Outubro de 2020.



[1] Fernando Lopes, cineasta, Belarmino, um dos filmes emblemáticos do Cinema Novo português, 1964.

[2] Nietzsche. F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. 1873. In Moraes Barros, F. Sobre verdade e mentira. Editora Hedra, São Paulo, 2012

[3] Zbigniew Herbert - O   poder do gosto (poema) “... no fundo era uma questão de gosto. Sim, de gosto, no qual habitam as fibras da alma e as cartilagens da consciência...”

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