por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
O filme Belarmino [1]
coloca na mesa a pergunta: Belarmino mente?
Respondo: Belarmino mente. Não
mais do que você – ou eu.
O filme de Fernando Lopes mostra
um contraponto entre o boxeur e seu manager, do qual emerge a pergunta: quem
está mentindo?
Respondo de novo: provavelmente
os dois.
Estou pensando nos conceitos de
verdade e mentira explorados por Nietzsche[2] em
seu sentido não-moral (ou extra moral): a mentira como inevitável e a verdade
como ilusão.
Nietzsche faz a arqueologia do
aparecimento da palavra, desde a coisa – das Ding – cujos atributos
perceptíveis chegam a sensibilizar a consciência humana. Ele se dá conta de
que, nesse primeiro momento, já há uma primeira quebra da verdade, pois só
aquilo que estamos aptos a perceber chegará a produzir uma dada representação no
sistema percepção-consciência. A coisa em si – das Ding an sich – como já
dissera Kant antes dele, permanecerá incognoscível.
A partir dessa primeira captura
fragmentária, o homem vai produzir uma sonoridade – um significante – que dirá,
em ondas audíveis, aquilo que ele percebeu daquilo que da coisa é apreensível.
É sobre essa base frágil, através
de convenções que os seres falantes estabelecem entre si, que se constrói um
discurso cuja validade se deseja sustentável.
Freud vai tornar superlativa essa
fragilidade quando nos aponta que, a própria percepção, mesmo daquilo que é
plenamente perceptível, estará sempre enviesada pelo narcisismo e pelo gozo.
Ele nos diz que, quando a verdade e a vaidade discordam, a verdade sai sempre
perdendo; e que somos muito aptos a inclinar nossa percepção de modo a fazer
com que a realidade seja lida de acordo com nosso modo próprio de satisfação.
Ele vai mais longe, ao dizer que toda recordação é encobridora: se você se lembra,
é porque não é bem assim – a lembrança já está corrigida segundo o gosto[3]
daquele que se lembra.
Então... – com tanto perigo
ameaçando a verdade; com tanta probabilidade de que a mentira seja tomada como
verdadeira, não por uma decisão moral, mas por um incontornável nascimento precário; com a máxima
possibilidade de engano, mesmo que não haja uma intenção consciente de enganar
– ... fica a pergunta: de onde tiramos nossas certezas?
E mais: de onde tiramos nós a
paixão pelas nossas certezas, a ponto de delas retirarmos critérios “seguros”
para decidir entre o amor e o ódio?
Esta é a pergunta que me resta de Belarmino. A cada um,
a resposta que lhe convém.
20 de Outubro de 2020.
[1] Fernando Lopes, cineasta, Belarmino, um dos filmes emblemáticos do Cinema Novo português, 1964.
[2] Nietzsche. F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. 1873. In Moraes Barros, F. Sobre verdade e mentira. Editora Hedra, São Paulo, 2012
[3] Zbigniew Herbert - O poder do gosto (poema) “... no fundo era uma questão de gosto. Sim, de gosto, no qual habitam as fibras da alma e as cartilagens da consciência...”
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