sexta-feira, 31 de julho de 2020

Imagens de imagens

    ''Pero este libro tiene vocación viajera y los viajeros no ignoran que en el itinerario de todo viaje hay que contar con esos senderos que no conducen a ninguna parte.''

    "Mas este livro tem uma vocação de viajar e os viajantes não ignoram o fato de que, no itinerário de toda viagem, você precisa contar com as trilhas que não levam a lugar algum". 

    Trecho do Prefácio de ''Poética del Cine'' de Raúl Ruiz. 


    Capítulo III- Imagens de imagens


    Em um episódio central de Requiem, a novela de Antonio Tabucchi, existe uma passagem que eu gostaria de evocar aqui. O protagonista, que estava em busca de Fernando Pessoa, estava em um museu de Lisboa muito próximo da hora de fechar. Enquanto ele avançava pelas salas desertas, encontrava de cara um pintor aficionado que de propósito tinha ficado dentro do museu durante a noite anterior. O homem, funcionário aposentado, passava as noites obcecado em copiar um quadro de Hieronymus Bosch. Suas cópias eram várias vezes maiores que o quadro original e só representavam um detalhe da imagem; sem embargo, dado que outros detalhes haviam sido adicionados a esse detalhe, a sua versão dava a impressão de ganhar em exatidão. Sem ter consciência disso, o pintor imitava o trabalho dos copistas holandeses descritos por Henry James, que, como bons artesãos que eram, adicionavam certos detalhes a fim de tornar sua cópia mais realista. Do que se deduz que se poderia conceber uma pintura que, à medida que se copia, se torna cada vez mais realista, até a saturação do seu potencial de realismo, e muito mais além inclusive do efeito conhecido como ''realismo fotográfico''. Outros artistas têm preferido, por sua vez, reproduzir sobre a tela o conjunto de quadros pendurados no salão de um aficionado pela pintura ou no ateliê do artista: pintura de pinturas. Esses exemplos pertencem a um mesmo fenômeno. Uma imagem gera outras imagens, as quais chegam a ser de imediato fragmentos seus, seu reflexo e seu aperfeiçoamento. Tendência esta que alguns críticos sancionam como um sinal de decadência artística, uma espécie de câncer com sua inflamação e proliferação.


(O Juízo Final, de Hieronymus Bosch, óleo sobre tela- 1482)

    Copiar o trabalho de alguém que nunca fez outra coisa a não ser copiar a natureza poderia flertar com a modéstia. Mas, os artistas são realmente capazes de copiar? Monteverdi inventou a ópera convencido de que o que fazia era imitar o teatro grego. No ato de copiar existem duas coisas distintas e divergentes. Uma se desprende da especialização, a outra da invenção voluntária. No capítulo anterior, mencionei de uma novela de Kasimiers Brandys em que vemos um homem em busca de sua antiga casa em uma Varsóvia reconstruída. Os homens que refizeram esta cidade se basearam em grande medida nas pinturas de Canaletto, que se situava entre aquele pintores que utilizavam o campo-contracampo pictórico. Este dado voltava o trabalho do pintor veneziano extraordinariamente interessante aos olhos dos urbanistas encarregados de reconstruir uma cidade bombardeada. As imagens de Canaletto foram pintadas, obviamente, muito antes do período da pré-guerra. Utilizando como referência aqueles quadros, os construtores da nova Varsóvia produziam uma fascinante anacronia, na medida em que a cidade do pós-guerra se convertia no ancestral de Varsóvia anterior à guerra.

    Mas voltemos aos nossos exemplos que concernem ao ato de copiar. Primeiramente, se escolhe uma imagem de formato médio a qual será selecionado um detalhe para logo ampliá-lo. Nesta ampliação deveriam aparecer os traços do pincel, mas o que se deseja obter não é esse efeito, se não o contrário, o de conversar para a nova pintura toda a fineza de textura da tela original. De onde o agregado de novos detalhes a melhoram. Este tipo de ampliações produzem assim o resultado inverso ao da ampliação fotográfica. Em certo sentido, somos aspirados na imagem. Suponhamos agora que o copista seja alguém carente de imaginação e que, incapaz de adicionar novos detalhes, se contente com acentuar o realismo dos detalhes já presentes na estampa original. Assim, por exemplo, quando deve ampliar o detalhe de uma rosa não lhe ocorra talvez adicionar umas gotas de orvalho. Pouco a pouco este processo de amplificação nos conduz inexoravelmente a uma pura superfície, de certo. Porém, suponhamos agora que o copista seja alguém provido de sentido de integralidade, esta forma centrípeta da imaginação. Não poderá se impedir de pintar essas gotas de orvalho cujos reflexos deformados, ademais, serão captados pelo espectador e tudo que rodeia. O copista pintará os poros das pétalas, umas cenas da vida cotidiana das bactérias e finalmente, a mesmíssima estrutura molecular da flor. Estas duas maneiras de distorcer um trabalho original à força da fidelidade excessiva não são, sem dúvida, as únicas.  

    Pensemos em uma sociedade totalitária. Nela e por uma razão qualquer, só está autorizada uma pintura única e a única atividade artística tolerada consiste em copiar a dita pintura. Toda variação, reinterpretação ou comentário visual da pintura única, é sancionada por um severo castigo; não obstante o qual, por erro ou por alguma razão política obscura, está permitido copiar os detalhes, liberdade que leva a um pintor a delimitar um por cento da tela e ampliá-lo cem vezes. A uma escala tal, lhe parece possível modificar ligeiramente o ponto de vista. Cada uma de suas reproduções sucessivas comporta assim um ponto de vista do quadro ligeiramente incompatível a respeito do ponto de vista precedente. Os fragmentos que representam um detalhe do nariz do Presidente da República (presidente, ademais, que é ele próprio o tema único da pintura original) estão se deslizando lentamente de frente ao perfil. O pintor tem trabalhado durante anos em ampliar em centenas de detalhes ampliados cem vezes, até o esgotamento do seu tema. Logo após a morte do pintor, seus discípulos empreendem a reconstrução de sua obra. Recompondo a totalidade dos fragmentos, esperam ingenuamente, encontrar ao final de uma reprodução o quadro original visto do mesmo ângulo. Mas tal reconstituição se mostra impossível, não aparece nenhuma imagem realista, tomada de frente, se não centenas de ângulos, o que coloca ao conjunto um claro ar cubista- vamos salientar que nesse país o cubismo é algo totalmente fora da lei-. Contudo, se cada fragmento se dispõe em um certo ângulo e se projeta a uma velocidade de vinte e quatro por segundo, o resultado culmina em uma série de imagens que dão a impressão de uma volta ao redor do quadro autorizado.

    Vamos imaginar agora outro artista nessa mesma sociedade totalitária. Se trata de um sujeito conformado que se contenta em copiar a única pintura permitida, sem introduzir a ela alterações nem de tamanho e nem de ângulo. Mas se trata também de um grande perfeccionista que não pode ser privar de corrigir certos defeitos da imagem, em particular suas perspectivas. Como a maior parte dos pintores chamados realistas, o pintor original havia utilizando diferentes tipos de perspectivas, segundo as zonas da imagem; no fundo, por exemplo, estas se curvam como acontece em uma fotografia tirada com uma lente grande angular. Em alguns lugares do canto, os objetos do primeiro plano pareciam menores que alguns, outros, por sua vez, mais distantes, como sob o efeito de uma lente focal. Somente no centro da imagem, onde se situa o Presidente da República, as regras da perspectiva clássica haviam sido observadas escrupulosamente. A primeira tarefa do copista consistiu, pois, em unificar a perspectiva do quadro todo, no que terminou por saturar a pintura tornando-a opressora. O copista advertiu em seguida que algumas sombras não pareciam estar em seu devido lugar; não correspondiam a nenhuma fonte luminosa plausível, pelo que então decidiu devolver sua lógica a essas sombras. Adicionou detalhes e objetos a aqueles elementos que estavam inicialmente na sobra e que agora apareciam iluminados. Foi o que aconteceu com uma certa cadeira, no fundo da imagem, sobre a qual dorme um gato. Tanto assim que a cadeira se encontrava sob a sombra agora em plena luz, o gato, não menos que a cadeira, não podia permanecer em um estado de semi existência. Acontece que tudo isso aterrorizou o pintor, que não compreendeu que havia tomado demasiadas liberdades; havia tomado a si a decisão que o rabo do animal deveria se dependurar à direita e não à esquerda. Mais grave ainda, uma sombra que nenhuma fonte luminosa justificava, ocultava parte do rosto presidencial. Modificar as sombras resultava agora demasiadamente pesado na medida em que o presidente tinha uma pinta peluda no no lugar exato da sombra.  Mas talvez a decisão do pintor original de ocultar a pinta mediante uma sombra ilógica alentava os copistas a fazer algo com essa pinta, cuja existência- temos que reconhecer- não passava despercebida para ninguém. A inexplicável proliferação das sombras era talvez um meio para colocar à prova o realismo dos copistas. Depois de muito hesitar, o copista foi presa de uma precisão obsessiva; já não pôde menos que retirar a sombra e fazer a pinta. Depois de ter retirado todas as sombras ilógicas, apareceu sob elas uma multidão de novos elementos, mas por azar certos objetos simbólicos haviam desaparecido. Agora bem, toda pintura oficial, como se sabe, é alegórica ou não; verdade que em nenhuma parte será tão efetiva como em um país que somente autoriza uma única obra. Aqueles objetos simbólicos, agora destoantes, haviam sido incansavelmente estudados, até produzir um conjunto de normas que definiam a filosofia nacional única do país e aqui que o copista se encontra com eles. Sem contar que se apresenta um novo problema; a cópia resultou excessiva em sua mesmice, em sua identidade e a seus excessos de tal fervor a tornava provocativa, deixando-a praticamente aberta ao conflito, à ruptura. Seja como for, o pintor havia colocado pouco espírito no seu sistema de aplicação de princípios do realismo. Havia corrigido, por exemplo, o estrabismo do Presidente, deixando incerta a magia do seu olhar. Como a pintura de Van der Weyden utilizada por Nicolau de Cusa* naquele jogo didático, ou como certos ícones baratos, os olhos do Presidente pareciam ordinários estando sobre todos e cada um, quem quer que fosse e por onde se encontrasse e agora já não olhavam senão em somente uma direção, dando a sensação de não ver ninguém, de não demonstrar menor inquietação pelo destino de seus compatriotas. Na nova cópia o Presidente havia ficado tão severo como ausente de qualquer atrativo. Tudo em sua aparência e até em sua postura- em particular a posição das mãos-, produzia com força a impressão de que, com um desespero silencioso, o chefe não perdia por esperar o momento de poder coçar a pintura do seu rosto. Condenado à pena de morte, o pintor morre em meio a profunda perplexidade.



(A Deposição da Cruz, de Rogier Van der Weyden, óleo sobre tela- 1436)

    Um terceiro pintor aprendeu a copiar o quadro com pouquíssimas pinceladas. Cinco ou seis são suficientes. Claro, visto de perto, toda noção de realismo se torna alheia ao quadro, mas à certa distância, a pintura resulta perfeitamente crível. O pintor decide infringir as convenções e pinta uma paisagem da sua própria aldeia, realizado somente com a combinação de cinco traços que abreviam a representação pictórica oficial. O resultado mostra uma espécie de paisagem pontilhista. A pintura no começo provoca um grande escândalo colocando seu autor em pena de morte. Mas o Presidente o perdoa, aludindo que, pesando a ilegalidade da temática, a imagem respeita o espírito das leis que regem toda atividade artística. Não sem mistério, declara: Tudo nesta pintura me lembra a mim mesmo. A pintura, é, pois então, aceita e a seguir os pintores terão dois quadros para copiar. Uma nova geração de copistas prefere copiar a nova pintura oficial. Entre eles surgem duas escolas. Há aqueles que aumentam a imagem e aqueles que a aperfeiçoam sem aumentá-la. Os pintores da primeira escola, ao adicionar detalhes que a aproximam da paisagem, eliminam todo rastro do Presidente. Os membros da outra tendência acentuam os cinco traços base e concluem que o único quadro concebível é aquele que representa o mandatário. Os primeiros são condenados, os outros condecorados. Até o fim da sua vida, o pintor da paisagem do seu povo natal, havia produzido trezentos e sessenta e cinco cópias que, com mínimas variantes e dispostas lado a lado em certa ordem, reproduziam o retrato original do Chefe de Estado. O pintor morre rodeado de amor e respeito.

    Copiar é acoplar; esta associação genitora é inevitável. Do mesmo modo como a arte imita a natureza e que toda imitação é uma cópia, os homens e mulheres se juntam para fazer cópias de si mesmos. Imitatio natura, a ficção imita a natureza, diz Balde. Em outro lugar diz que a ficção imita a ideia e o estilo da natureza. Tomás de Aquino assegura que a arte é a figura do Verdadeiro; ao que William Blake replica que a mentira é uma forma de verdade. Disso, talvez, esta surpreendente apologia da alquimia: na medida em que a arte imita a natureza, os alquimistas seriam pecadores (Oldradus de Ponte). Muitos retóricos dizem que a lei, soberana de todas as artes, imita a natureza e acima de tudo, os processos naturais. O poeta Huidobro clama: Não canteis a rosa, oh poetas: fazê-la florescer no poema. A arte do criador está a medida em que ele imita o comportamento da natureza. A imitação na arte- pelo menos na poesia- se transforma assim e com toda naturalidade, na melhor maneira de produzir novas figuras jurídicas. 

    Se as obras de arte são uma imitação da natureza, se são seu estilo ou sua substância- inclusive sendo somente recreações- sim possuem o poder de criar ex nihilo, imitar as obras de arte não poderia senão ser algo bom. Somente fica por perguntar até que ponto uma imitação é aceitável. Afirma-se que Deus cria toda coisa individualmente, porque se Ele ama a cada uma de suas criaturas ele as ama em sua individualidade. Deus confere a suas criaturas os meios para se juntar, digamos, para se copiar e assim, pois, se reproduzir, mas a individualidade de cada criatura não pertence senão a Ele. Na fabricação de criaturas, a noção de progresso, não tem nenhuma pertinência. Um modelo humano dos anos setenta não difere de outro dos anos oitenta. Segundo Jacques Maritain, o trabalho de Deus não procede por progressos, se não por aprofundamentos. Um Walter Benjamin religioso poderia haver dito que Deus faz o homem à maneira de uma obra de arte, de um modo único, dotando este homem de uma aura também única. Os homens podem produzir outros homens- inclusive não faltam religiões que proíbem a reprodução humana por qualquer outro meio que não seja o do coito-. Se Deus nos deu definitivamente a capacidade de repetir o processo natural e por meio da arte, o poder de criar, por que não pensar que as máquinas- que são extensão do homem- são capazes de criar obras de arte únicas, dotadas de aura? Benjamin, S. Langer, Tomás de Aquino e segundo certos profetas, até mesmo Deus, recusam esta ideia. Para possuir uma aura, toda obra de arte requer o manipulatio, de um manejo inspirado. 

    Seria muito lamentável que hoje estas ideias fossem deixadas de lado pelo único pretexto de que tenham passado de moda. Me parece, pelo contrário, que suas consequências políticas atuais são consideráveis. Pierre de la Vigne e Pierre le Lombard, se inspirando nelas, concluem que, posto que o homem é absolvido do pecado pelo dom de Deus, deve possuir aqui e para sempre o poder de criar. Ao ponto que a origem de toda lei normativa não pode senão ser poética. A poesia é autêntica cópia da natureza. Somente ela pode definir, identificar e inventar leis que são naturais por quanto são precisamente poéticas (um erro contemporâneo de tradução nos faz acreditar- segundo Kantorowicz*- que o significado do termo grego de poiesis seria criação). Dante fala da poesia como uma ficção retórica que deve estar sujeita às regras da música. Mas, o que acontece antes com a pintura? E com o teatro? E com as artes gravadas, aquelas que Benjamin chama de ''artes mecânicas''? Na Idade Média chamavam a pintura e a escultura ''ars mechanicae'', termo este derivado de ''moechus'': adúltero (cf. Erwin Panofsky, Galileo crítico de arte).

    E se a criação inteira não fosse senão um conjunto de obras mecânicas? Mantendo o meu temperamento dado às digressões, gostaria de entregar aqui algumas variações agnósticas sobre o tema da cópia. Uma delas é bastante conhecida graças a um ensaio de Borges, ''A defesa do falso Basílides'' (presente em ''Discussão''), e estaria baseada, segundo o escritor argentino, em uma ficção teológica inventada por um herege. Li faz pouco tempo o texto, mas devo admitir que não achei a mesma coisa que Borges, mas há de se reconhecer também que seu Basílides é mais plausível que o original. Segundo Borges, este declara que o mundo foi criado trezentas e sessenta e cinco vezes. Cada criação seria uma cópia da anterior: exatamente como são cópias as bandas de vídeo segundo um processo que leva a perda de qualidade uma geração à seguinte. Nosso mundo seria a cópia número trezentos e sessenta e cinco do original. Um mundo atrapalhado em que, como acontece nas pinturas chinesas, o pleno e o vazio se juntam no espaço e nos ensinam a imperfeição e o aspecto fugitivo da existência. Outra variação sobre a natureza arbitrária da cópia mecânica do mundo foi inventada no século passado por Auguste Blanqui, quem pensava que o mundo é inacreditável e inalterado (vamos lembrar que Blanqui era ateu e atéofilo). No entanto, como no caso de um best-seller, deste mundo se fizeram circular várias cópias. Deste modo, existiria um número infinito de mundos, mas como a natureza não está isenta de erros, alguns deles seriam cópias defeituosas. Em certos mundo haveriam deslizados umas tantas páginas em branco, outros não teriam senão uma só página repetida ao infinito, outros mais, finalmente acusariam somente defeitos menores: uma garrafa de Coca-Cola a mais, uma sinfonia de Beethoven a menos.



(Adão e Eva, de Tiziano Vecellio, óleo sobre tela- 1550)

    Pelo menos no nosso mundo ocidental, Deus deu ao homem a licença para copiar e para criar. A forma mais corrente e mais complexa deste direito é o ato sexual. Os primeiros genéticos viram na mulher uma tela sobre a qual o esperma do homem pintava o que seria o filho concebido. No ditado popular chileno ''pintarle un hijo a una mujer'' (''pintar um filho a uma mulher'') denota de modo direto o ato sexual. Durante a filmagem de um filme que realizei en Túnez, um dos técnicos da equipe, que em sua infância havia criado pássaros, me contou que os pássaros fêmeas- ''como las mujeres'', pontuava ele- são sensíveis às cores durante a gestação. Presas as fêmeas em uma jaula vermelha durante esse período, seus descendentes seriam vermelhos ao nascimento e elas também. O que evoca a um texto bizantino de Georges Le Moine, que tratava de uma emperatriz do período iconoclasta (baixo Teófilo 829-892), que adorava em segredo um ícone de cristo. A imagem foi descoberta, porque seu filho nasceu barbudo.

    Já que falamos de Cristo, não é verdade por acaso que sua imagem é a mais perfeita pintura de Deus? (cf. Vicente Carducho, Diálogo 7º sobre a pintura). O hino nacional chileno proclama que Chile é a cópia feliz do Éden e assim sucessivamente. Mas nosso propósito era a imagem de Deus Filho, cópia de Deus Pai, revelada (no sentido fotográfico do termo) pelo Espírito Santo. Neste assunto, quem copia quem, dado que os três são iguais e coeternos? Existe um simpático texto mourisco do século XVI, período da Rebelião de Alpujarras, em que se tratar de justificar a Trindade desde o ponto de vista muçulmano. Imaginemos um homem que se olha no espelho. É noite, uma única vela ilumina seu rosto. Este homem é Deus Pai. Seu reflexo no espelho é Deus Filho, o esplendor da vela é o Espírito Santo, enquanto o espelho é a Virgem Maria. André Breton descobriu um filme de propaganda norte-americana, divulgada durante a Segunda Guerra Mundial, uma variante de pesadelo desta maneira de copiar. Um espião japonês entra clandestinamente nos Estados Unidos, se aloja em um hotel e uma vez sozinho em seu quarto se olha no espelho, transformando-se assim em dois espiões japoneses. Por consequência, em um breve lapso os espiões japoneses chegavam a ser mais numerosos que os cidadãos norte-americanos. Eu dizia a mim mesmo que, convertidos em cidadãos, aquela multidão de espiões estava em condições de levar à presidência dos Estados Unidos um candidato japonês. Ainda mais aterrorizante, posto que esta vez se trata de conceitos filosóficos consistentes, a saber, os do jovem Wittgenstein: um mundo no qual a linguagem pode ser reduzida à proporções ou formas lógicas que se compõem de átomos nos quais o filósofo veria imagens.

    As proposições mais simples articuladas em nossas práticas verbais são extraordinariamente complexas comparadas com os átomos, o que faz impossível a descrição exaustiva de uma só proposição. Aqui, sem dúvidas, o vocábulo imagem não remete somente à pintura, podendo designar também uma partitura musical que seria copiada por músicos ou a mesma cópia, reproduzida sob forma de gravação. Cada cópia é produzida segundo códigos diferentes- com meios diferentes-. Em um sistema de correspondências tal, podemos postular que em seu conjunto as artes poderiam se copiar umas às outras. Imaginemos que aquelas correspondências sejam a tal ponto precisas, que, depois de ouvir o equivalente musical de ''O Vento Levou'', sejamos capazes de escrever a novela em que se baseia o filme, enquanto uma pintura que iria conter todo esse filme nos permitiria transcrever a integralidade daquela partitura musical. Algo assim como se eu pudesse citar um poema assobiando seu equivalente musical.



(A Hipótese do Quadro Roubado, de Raúl Ruiz-1978)


    Em 1924, depois de uma longa estadia em uma clínica psiquiátrica, o historiador de arte Aby Warburg decide dedicar o resto da sua vida (cinco anos) a colocar de pé um museu de reproduções, um museu sem nenhuma obra original. As cópias expostas ali deveriam estar organizadas de modo a suscitar aumentar desvios teóricos seguindo uma ideia de montagem específica e premeditada, consistente em uma justaposição de imagens. O propósito de Warburg era colocar em evidência conexões entre figuras que, tendo uma origem geográfica e histórica diferente, adotassem um comportamento idêntico (muito frequententemente de êxtase ou de embriaguez). No mesmo muro, Warburg havia pendurado recortes publicitários junto à reproduções de imagens da Grécia Antiga, pinturas renascentistas e recortes de jornais. Havia ali algo da linguagem múltipla que eu evoquei anteriormente falando do jovem Wittgenstein. A avidez de Warburg consistia mais que nada em sublinhar a continuidade, ao longo da história, de mesmos gestos, mesmas atitudes humanas, de mesmas ''intensidades''. Certos observadores viram nesta justaposição um continuum de intensidade que tinha algo como o efeito de apagar todo o sentimento de identidade atual.

(Projeto Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg)

    Uma prática comum nos salões parisienses do século XIX evoca curiosamente o dispositivo de Warburg. Penso naquilo que se conhece como ''quadros plásticos'': um grupo de modelos vivos escolhem um quadro suficientemente sugestivo de um pintor antigo, cuja cena tentam recriar de forma teatral, adaptando cada um uma posição correspondente às que se vêm nesse decorado artificial. Agora bem, já sabemos que os pintores utilizavam também modelos vivos. De maneira inevitável os modelos do quadro vivo se mexem um pouco, imperceptivelmente, e devem fazer esforços repetitivos para recuperar a ''pose'' inicial. Giram incessantemente em torno dessa pose que lhes foge de alcance. Resulta-se disso uma certa tensão física, a mesma que devem ter experimentado os modelos originais do atelier do pintor. Tal intensidade comum é como uma ponte que liga ambos grupos de modelos. Os rápidos movimentos dos modelos originais, inscritos na pintura, são reproduzidos agora pelos modelos que executam o quadro plástico. Em certo sentido, os primeiros foram reencarnados nos modelos do quadro e, pelo menos, o que se reencarnou foi aquela tensão. Em tais gestos reencarnados, alguns filósofos como Nietzsche e Klossowski viram uma ilustração e inclusive talvez uma prova do eterno retorno.




(A Hipótese do Quadro Roubado, de Raúl Ruiz- 1978)


    Todas estas ideias haviam sido reviradas na minha cabeça antes que os trabalhos de Pierre Klossowski as fizeram evidentes, a ponto de chegar a se cristalizar mais tarde em um conto teórico, que contarei em seguida e que começa no final do século XV. Um contemporâneo de Piero della Francesca- que pode ser até mesmo Piero em pessoa- perde a visão e, cego, decide continuar pintando segundo um procedimento de sua invenção, não muito diferente da simetria do corpo humano de Durer. Seguindo este método, o artista utiliza uma série de números para ditar uma pintura, sem que seja necessário ver ou apalpar a tela. Deste modo, o pintor dita e os discípulos executam. Dois amigos passam para vê-lo em seu atelier, mas ocorre que ambos estão incluídos no quadro. O pintor os reduziu de memória a uma série de fórmulas matemáticas. Um dos amigos se reconhece imediatamente na tela, enquanto o outro não. O sistema do artista - que não deixa de ter algumas limitações- deformou seu rosto, certamente pelo motivo de que alguns rostos não são facilmente integráveis em uma fórmula matemática. Ao cabo de alguns quantos séculos, desde o fim do século XIX, em 1986 exatamente, um pintor alemão, especializado na reprodução em pequena escala de obras de grandes pintores, descobre a pintura ditada pelo artista cego, com a grande de surpresa de reconhecer nela seu próprio rosto. Conclui que, posto que seu rosto havia sido previsto séculos antes do seu nascimento, ele deve estar imbuído de uma missão. Mas qual viria a ser aquela missão?


(A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, óleo e têmpera sobre tela- entre 1455 e 1460)

    O pintor romântico- que depois de tudo isso talvez não seja alemão, se não austríaco e nada impede pensar que seu nome não seja Adolf Hitler-, decide reproduzir aquela obra do Renascimento, mas modifica a tal ponto a composição, que adiante a sua imagem está situada no centro do quadro, criando um desequilíbrio nos elementos que compõem a pintura. Em um acesso de modéstia, o pintor decide retirar totalmente sua presença da composição. Só que no lugar de corrigir o desequilíbrio, ele acentua. Decide então retornar ao centro do mesmo quadro, para o qual tem que reorganizar novamente todos os elementos, com o efeito final de deixar a pintura profundamente melancólica. Em consequência desta série de tentativas falhas,  ele deixa de lado a pintura, devolve os pincéis e entra para a política.

    A pintura, não obstante, sobrevive- obra mestra inacabada, como no relato de Balzac-, sem figuras, sem composição, mas coberta de uma massa de pinceladas díspares, e desaparece por alguns anos antes de ser descoberta por soldados britânicos enquanto despejam os escombros de uma rua bombardeada. Entre esses soldados há um professor de história da arte, admirador fervoroso da arte moderna, que toma notas da data inscrita na tela e deduz que o autor é um dos primeiros artistas abstratos, mas exatamente um abstrato de uma linha de expressão das mais contemporâneas. Depois de haver pendurado essa pintura em meio a outras coisas de sua coleção privada, o homem perde a vista e se retira em um lar para cegos. O único bem que ele decide levar consigo é essa pintura, pois quer tê-la perto de si durante os longos dias de escuridão. Esta decisão sua não carece de boas razões, já que a pintura é tátil e, melhor ainda, ao tocá-la deixa a impressão de que ela quer que a toquem, como se pudesse, pelo tato, comunicar suas figuras invisíveis; só que essas figuras vomitam ódio e mostram uma paranoia agitada. Logo o colecionador cai doente e se suicida batendo a cabeça contra uma coluna neoclássica, a pintura ficará nessa instituição para cegos. No fim dos anos sessenta, uma cantora de rock, a quem os refletores do estádio em que deveria se apresentar a deixa cega, se aloja no mesmo quarto em que se encontra a pintura. Uma estreita relação se estabelece entre a pintura e a cantora que lê nela uma partitura musical. Do que resulta uma curiosa combinação de ars nova e música militar prussiana, com  algo de Mahler e um pouco de Franz Lehar. Um dos médicos da instituição organiza de vez em quando, espetáculos de luz e som para arrecadar fundos para caridade. Tendo a ideia de traduzir a música da cantora cega em sequências luminosas e coloridas, o efeitos destas vá desencadear em uma risada histérica que irá durar várias semanas, com a sua morte, em consequência de um ataque do coração. Afortunadamente, seus colegas tiveram a ideia de gravar suas gargalhadas e assim comprovaram que estas provocam a quem as ouvir uma irresistível vontade de dançar. Decidem então utilizar a gravação durante uma festa anual de entrega de diplomas a uns estudantes de medicina. Durante a festa, um cirurgião especialista em pulmão, enlouquecido pelo estrondo da risada dançante, apunhala um dos seus colegas. Um vídeo de um aficionado, filmado também por acaso durante a festa, servirá de prova no processo. Um dos membros do júri, professor de arte, tem a grande surpresa de comprovar que, em seus movimentos, o baile filmado descreve o equivalente dinâmico exato da coreografia retratada em uma pintura do Renascimento. Ao cabo de uma investigação, o professor descobre que a pintura em questão havia sido ditada por um pintor cego, a quem finalmente remontaria, em sua origem, a causa do crime. Infelizmente, durante o processo são difundidas diante o júri as gravações da risada, cujos membros ao ouví-las começam a dançar. Em meio a um baile frenético, o juíz mata o professor de arte cravando em um olho uma pena de rabo de faisão. A história segue ainda sem explicação, mas, tortuosa como é, terá permitido pelo menos no que me concerne, alcançar o objetivo que eu me havia proposto. Isto não era outra coisa além de fazer plausível a ideia de que toda imagem não é mas do que a imagem de uma imagem; imagem traduzível a todos os códigos possíveis e que esse processo não pode senão desembocar em novos códigos geradores de imagens, estas mesmas geratrizes e apetitosas.

    Em Variedades, Paul Valéry adverte que a noção de terra incognita, segundo a qual no mundo existem regiões ainda inexploradas, não é válida. Todos temos consciência de que a terra é indubitavelmente redonda e do mesmo modo possuímos todos uma vaga ideia daquilo que podem parecer aquelas regiões do nosso planeta que ainda não vimos. A exploração e invenção são cada vez mais objeto de especialização. O mundo se transformou em um lugar, portanto, o mundo tem lugar. É certo que, válido para o espaço, no se pode dizer o mesmo do tempo e nesse terreno ainda há muito que ser explorado. Estabelecendo novas conexões entre acontecimentos situados em épocas diferentes, a ideia de história tem sido e continuará sendo profundamente modificada e é assim como pouco a pouco o templo linear e a ordem cronológica têm sido desestimulados em proveito da justaposição de acontecimentos ocorridos em tempos diferentes e em lugares diversos do planeta.

    Algumas daquelas justaposições das quais a minha conferência viria a oferecer um bom exemplo, resultam apenas críveis. Esta exploração do tempo cada vez mais há de conceber proposições anacrônicas, à maneira daquelas que fazia valer o jesuíta Antônio Vieira em seu História do Futuro, ou bem Lope de Vega ao descrever aquela cena em que um anjo vem contar a Isabel, a Católica, a futura história da Espanha (O menino inocente).  

    Em uma loteria de sincronismos e anacronismos, por pouco que nosso espírito se deve levar à melancolia, terminaríamos por acreditar que o mundo não tem sido até agora mais que uma Anunciação, e que como em certas pinturas religiosas, para completar o quadro, não falta se não a Epifania. Se poderia proclamar inclusive que, a partir deste momento para que tudo deva tornar-se real, bastaria que deixássemos de estar sujeitos como estamos aos transtornos que a história e o progresso nos têm imposto sem cessar. Pessoalmente não creio ser mais melancólico que entusiasta. Há alguns anos que na América Latina tínhamos inclusive o costume de descrever nossa situação como a de uma disponibilidade sem qualidades (lembremos que Gide havia proposto traduzir O homem sem qualidades de Musil, por ''O homem disponível'').



(O filme que está por vir, de Raúl Ruiz- 1997)

    Copiar, inventar, descobrir, são processos extremamente complexos e nem sempre cômodos de diferenciar. O terreno sobre o qual se fundou a maior parte das nossas convicções vem se tornado incerto à força de paradoxos, contradições e redundâncias- o todo, corrompido por uma boa dose de má fé-. Esse território se revelava ao mesmo tempo, ser um amontoado de ideias esmagadoras que, abaixo o pretexto de datar de algum tempo, escaparam da nossa atenção. É possível que nos achássemos demasiadamente ocupados verificando a cada momento em que ponto da cronologia oficial do mundo estávamos situados, passando o tempo em classificar nossas obras como boas ou ruins; boas, por serem novas, ou ruins, por serem antigas- em uma singular perversão do argumento teológico da existência de Santo Anselmo, fabricante de mundos perfeitos. Perfeitos por não terem sido nunca antes vistos.

Tradução feita por Catalina Sofia.

Disponível em: https://mipersianamericana.tumblr.com/

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Clube do Filme: Trás-os-Montes

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de julho é "Trás-os-Montes" (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro.


Em Trás-os-Montes uma velha mulher preside à renovação da vida e defronta a morte; a «história» do filme é só esta. Mas da rarefacção de coisas a contar fazem António Reis e Margarida Cordeiro uma espécie de ritual onde o cordão umbilical das culturas milenárias, da casa, dos gestos, da terra, das pessoas, é um só. Há uma celebração belíssima e secreta, onde nos envolvemos – ou não.
- Jorge Leitão Ramos

O filme está disponível no YouTube, em baixa qualidade: https://www.youtube.com/watch?v=lrLcALuZNA8&. Qualquer coisa, estamos aqui para ajudar (ou no mail coletivoatalante@gmail.com).

Textos recomendados para leitura:
1) "A Narrativa das sombras", perfil por Joaquim Sapinho: https://coletivoatalante.blogspot.com/2020/07/a-narrativa-das-sombras.html
3) Crítica do filme por João Bénard da Costa: http://antonioreis.blogspot.com/2006/01/136-trs-os-montes-crtica-de-joo-bnard.html
4) Crítica do filme por Serge Daney: http://antonioreis.blogspot.com/2006/05/145-trs-os-montes-nos-cahiers-du-cinma.html [versão traduzida em português após o texto original]

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.



Serviço:

Clube do Filme: Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro
Dia 22/07 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A Narrativa das Sombras

por Joaquim Sapinho


Para a Ana Reis

                         António Reis (primeiro à direita), na Escola Superior de Cinema

1. António Reis foi meu professor na Escola de Cinema do Conservatório, no final dos anos 80. Mostrou-nos um filme  em  cada  ano.  Vimos  na  mesa  de  montagem  Alemanha  Ano  Zero,  de  Rossellini  (1948),  bobina  a  bobina.  Depois  estudámos  cada  bobina  separadamente,  depois  cada  cena,  depois  cada  plano,  depois  os  raccords  verticais de cena para cena e de bobina para bobina. No final do  ano  já  havia  poucos  alunos  na  sala  de  montagem.  A  questão  era  o  gigantismo  das  ruínas  de  Berlim  em  contraponto  com  Edmund,  uma  criança  da  juventude  hitleriana. De como a forma humana intacta de Edmund era  apenas  uma  sombra,  também  ele  era  uma  ruína  mas interior. Para António Reis as formas tinham vida. O que ele ensinava era a atenção às formas. Retirava-nos da distracção da história superficial. O exterior das formas revelava o interior da vida de Edmund. A cena mais importante não é a do seu suicídio, é o momento lírico em que caminha entre as pedras das ruínas, quase como num  sonho,  que  verdadeiramente  contém  a  decisão  do  suicídio. Partilhávamos um olhar em que, por um lado, as formas eram o centro de tudo, mas a verdadeira narrativa era a das sombras.


Também  estudámos  com  todo  o  detalhe  O  Grito,  de  Antonioni  (1957).  O  filme  conta  a  errância  de  Aldo,  um operário desempregado, e passa-se todo na estrada, para trás e para a frente. Tem um lado chaplinesco porque grande parte dessa caminhada é feita com uma filha. Mas a desesperança do filme já não tem nada de Charlot. Aldo, o protagonista, perde a mulher com quem vivia, arrasta-se pelos caminhos com uma filha que não é sua, e vai encontrando diferentes mulheres sem qualquer objectivo. Percebe que não pode continuar essa errância com a rapariga, e mete-a num autocarro para voltar à mãe. Lembra-se da fábrica em que trabalhava e da torre da refinaria de onde podia ver a sua casa, o rio e a escola da filha. É como se essa memória o guiasse. Regressa à fábrica, que vai ser demolida para dar lugar a um aeroporto, e sobe à torre de refinaria. Para António Reis, a decisão final do que vai acontecer no alto dessa torre está contida no momento em que se separou da filha e na miragem da memória da sua casa. O fim é apenas consequência. 

Johnny Guitar, de Nicholas Ray (1954), foi o último filme que vi com António Reis. Johnny é um grande pistoleiro, mas no filme não dispara um único tiro. Esta ideia, esta estética, era central para António Reis. Punha-se uma pergunta: se nunca dispara, como é que sabemos que é um grande pistoleiro? O segredo está no comportamento de Johnny. Ele antecipa todos os seus prórpios movimentos. Não quer disparar porque tem medo. Sabe que um tiro leva sempre a outro tiro e que a vingança não tem fim (aliás, a única vez em que dá um disparo no filme é para desarmar um jovem pistoleiro que não sabe o que faz com a sua arma...). Mas, voltando à pergunta, como é que sabemos em concreto que ele é um grande pistoleiro se não dispara? Johnny também é um grande vistuoso da guitarra, isso fascinava António Reis, mas o momento essencial para ele é um momento quase escondido na narrativa, quando no início chegam os antagonistas e Johnny consegue acalmá-los conversando, mas no momento crítico há um acidente e uma chávena vai cair do balcão do saloon e despoletar a violência. Sub-repticiamente apanha a chávena com um gesto do braço para trás. A surpresa deste anticlímaz pára o crescendo da violência e a tensão desfaz-se. Inconscientemente, os antagonistas, e os espectadores, temem-no.

2. O primeiro filme de António Reis é Jaime, de 1974, sobre um camponês da Beira internado no hospital Miguel Bombarda, um hospital psiquiátrico. António Reis, o poeta tornado cineasta (e poeta esquecido), vai revelar que este camponês é afinal um poeta e um pintor de génio. Vai filmar os restos de uma vida esquecida, percorrendo os arquivos e os espaços do hospital onde viveu, construindo o retrato de uma pessoa anónima, salvando-a do esquecimento. Salvando-a? A sensação que fica é a de que a destruição do tempo foi interrompida por um momento.

No segundo filme, Trás-os-Montes, de 1976, co-realizado com Margarida Cordeiro, é como se António Reis tivesse decidido ir directamente ao campo (tinha participado, quando vivia no Porto, nas recolhas da poesia popular portuguesa, e do teatro, e mais tarde, no Alentejo, fez parte da equipa que investigou a arquitectura popular portuguesa) para filmar o povo esquecido. Mas a sua paixão etnográfica parecia guiar-se menos pela ideia de transformação do povo (neo-realismo) do que pela ideai de verdade no povo (romantismo alemão). Neste novo filme já não se trata de uma pessoa, um artista escondido, mas de uma comunidade, rural, que faz a sua vida, como sempre fez, quase fora do tempo. António Reis e Margarida Cordeiro filmaram este mundo no momento exacto em que ia desaparecer.

Neste filme há uma cena em que uma mulher recebe uma carta do marido emigrado em França. O filho, uma criança de sete ou oito anos, lê-lhe a carta. Os realizadores não nos dizem, nem comentam, que a mulher é analfabeta. O filho lê a carta à mãe. Com a voz do pai? No lugar dele? Esse é que é o assunto. Encontrar soluções. A economia da vida. Enquanto houver tempo.

                                          Trás-os-Montes

O seu último filme seria Pedro Páramo, que estava a preparar com Margarida Cordeiro quando morre, em 1991. Aqui a comunidade já não é o povo perdido. Um homem regressa à sua aldeia e só no final da história descobre que todos estão mortos, incluindo ele próprio. É uma aldeia de fantasmas. A comunidade dos mortos. Este filme o que seria? Conseguimos vê-lo? António Reis entrou no reino dos mortos mas já não trouxe imagens para nós... Seria Pedro Páramo o Trás-os-Montes dos mortos?

3. António Reis nasceu em 1927, e em 1957 publicou Poemas Quotidianos. Em 1960 publicou Novos Poemas Quotidianos. Depois calou-se enquanto poeta. O seu cinema não continua a sua poesia. É outra forma de dor. Na poesia havia o amor, o casal e os filhos. Tudo isso desapareceu dos seus filmes. Mas o esquecimento, o abandono e a tristeza já lá estavam: “vendo/ crescer/ os nossos filhos sem sorrir”; “A ver os retratos dos mortos/ nas paredes”; “Peço-te desculpa/ muitas vezes”; “(ah onde/ando eu)// para tua dor/ não ser minha”. Uma voz desamparada, um murmúrio difícil de ouvir entre os ruído, mas que na sua pobreza quer ser ouvido: “Eu não voo/ ando// quero que me oiçam”.

Mas porque é que ele nunca me falou da sua poesia?

Tinham passado vinte e cinco anos, é certo. Mas falávamos muito de Rilke por exemplo, ele andava a reler os Cadernos de Malte Laurids Brigge, que trazia consigo numa capa de papel de prata vermelho... Ao reler agora os seus poemas pergunto-me se a exigência de verdade que eles cntêm poderia continuar... Terá sido isso? Então, se foi assim, o cinema foi a única saída porque permitia dizer a verdade de outras coisas. A da comunidade e já não a do eu. O que liga todos os homens e já não apenas o que liga a família...

4. Na minha última aula com o António Reis, no Conservatório, acabámos de ver o filme e ficámos na penumbra. Ele não foi abrir as portadas da janela e ninguém se mexeu. A luz que vinha das frinchas ia caindo com o fim da tarde. Os outros alunos foram saindo, ficámos só os dois na sala. Mas o António não dava sinais de querer ir embora e eu esperei. Na sala de cima calou-se o piano. Senti o silêncio. Ouvi um soluçar. Apercebi-me, pouco a pouco no lusco-fusco, que vinha de António. Não sabia bem o que fazer. Tinha 20 anos. Costumávamos sair da escola ao fim do dia e ir a pé do Bairro Alto ao jardim do Príncipe Real, depois descíamos para a Cinemateca, para a sessão das 18h30 (antes passávamos sempre uma hora, meia hora, na Buchholz, a ver os livros de pintura). Desta vez percebi que não ia ser como nos outros dias. O António sussurrou, com os olhos a brilhar no escuro: Eles não me vão deixar voltar a filmar



Texto em português de Portugal, escrito como posfácio da edição portuguesa de “Poemas Quotidianos” pela Tinta-da-China, junho de 2017, ainda indisponível no Brasil.