No seu livro “Sobre a verdade e a mentira num sentido não-moral”[1], Nietzsche vai explorar os limites da verdade num mundo dominado pelas palavras.
Ele situa que, primeiro está o Real – a Coisa, das Ding an sich (dirá Kant). Este Real afeta o humano, que dele fará uma representação, a partir das informações de seu sistema perceptivo – primeira metáfora. Com essa representação da Coisa, o humano fará uma segunda metáfora: um som – nasce a palavra. A partir daí, esquecendo-se de que as palavras não passam de representação de uma representação, o homem passa a viver num mundo necessariamente ilusório, distante do Real.
Nesse clima é que quero comentar o filme de Manoel de Oliveira, lembrando que o Cinema toma palavras ditas sobre o Real, converte-as em imagens, as quais, no tempo da Crítica, são novamente revertidas a palavras. Ou seja, o risco da contaminação da verdade pela mentira é ilimitado.
Se tomar uma distância cautelosa diante das palavras parece prudente diante da advertência de Nietzche, se queremos alguma proximidade com a Verdade, essa cautela se redobra quando chegamos à Crítica na sua relação com a verdade do Cinema.
Então, convido a examinar, com cautela, as palavras que se aplicam à leitura do filme de Manoel de Oliveira:
Tomo comentários de Mariana Veiga Copertino [2] que nos aponta que, neste filme, uma “referência literária consiste justamente na palavra “NON”, retirada do Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, de padre António Vieira. Terrível palavra é um non: não tem direito nem avesso, por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é um non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela por que o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés - e logo perdeu a figura, a ferocidade, a peçonha. O non não é assim: por qualquer parte que o tomeis é sempre serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo.”
Fica
muito claro que este caráter terrível aplica-se à palavra NON – mas não a todas
as palavras. Que, nem por isso, deixam de carregar um veneno traiçoeiro, porque
inaparente. Refiro-me aos sinônimos que, rigorosamente falando, não existem.
Casa não é o mesmo que Lar; Trabalho não é o mesmo que Emprego; Valioso não é o
mesmo que Valoroso. A lista seria interminável.
Retomando Copertino2, tomemos a expressão “vã glória de mandar” que, no seu comentário, faz referência explícita à famigerada fala da personagem Velho do Restelo d’Os Lusíadas de Camões, a figura pessimista que esbraveja nas praias do Restelo, criticando a ambição e a cobiça dos navegadores portugueses. O Velho do Restelo representa, na épica camoniana, o contraponto ao entusiasmo do povo português com a expansão ultramarina, criticando aqueles que se lançavam ao mar em busca de eternizar seu nome na história, deixando a sua pátria à mercê dos inimigos. Non ou a vã glória de mandar assume o papel de Velho do Restelo, na medida em que lança olhar pessimista sobre as batalhas do povo lusitano.
Pergunto: por que pessimista?
Não me parece que “Non, a vã glória de mandar” lance um olhar pessimista sobre as batalhas do povo lusitano. Parece-me que Manoel de Oliveira vai, exatamente, propor um giro que arranca o Fracasso para o patamar da Derrota; e o Triunfo, para o estatuto da Vitória.
Tento explicar, buscando as palavras justas para falar de algo que está no filme:
Fracasso é uma experiência subjetiva de submissão à força do outro; derrota, um reconhecimento da primazia do Outro. A gente fracassar não é o mesmo que ser derrotado por outro que nos suplanta com um poder maior. Triunfo é uma glória narcísica por ter reduzido o outro à submissão; Vitória, o reconhecimento bilateral de uma supremacia.
Então:
É possível ler a história de Portugal – Lusitanos (com Viriato) X Romanos; Portucalentes X Hispânicos; Braganças X Brasil; Salazar X colônias africanas – como uma sucessão de fracassos, de que só pode decorrer humilhação e vergonha. Mas também é possível lê-la como uma seqüência de derrotas, com as quais um país foi se deixando ensinar algo da soberania do Outro.
Também é possível pensar que a História demonstra que Portugal jamais alcançou o triunfo que perseguiu – o que seria um desdouro narcísico. Mas também é legítimo verificar que o país aprendeu com as derrotas e emergiu vitorioso na renúncia à vã glória de mandar.
Para mim, esse convite a sair de um julgamento piedoso e complacente (e, no limite, zombeteiro), para um reconhecimento da dignidade de um povo que se deixou ensinar pela Historia – esse é o giro que Manoel de Oliveira propõe, e que eu subscrevo.
Retomando Copertino2, tomemos a expressão “vã glória de mandar” que, no seu comentário, faz referência explícita à famigerada fala da personagem Velho do Restelo d’Os Lusíadas de Camões, a figura pessimista que esbraveja nas praias do Restelo, criticando a ambição e a cobiça dos navegadores portugueses. O Velho do Restelo representa, na épica camoniana, o contraponto ao entusiasmo do povo português com a expansão ultramarina, criticando aqueles que se lançavam ao mar em busca de eternizar seu nome na história, deixando a sua pátria à mercê dos inimigos. Non ou a vã glória de mandar assume o papel de Velho do Restelo, na medida em que lança olhar pessimista sobre as batalhas do povo lusitano.
Pergunto: por que pessimista?
Não me parece que “Non, a vã glória de mandar” lance um olhar pessimista sobre as batalhas do povo lusitano. Parece-me que Manoel de Oliveira vai, exatamente, propor um giro que arranca o Fracasso para o patamar da Derrota; e o Triunfo, para o estatuto da Vitória.
Tento explicar, buscando as palavras justas para falar de algo que está no filme:
Fracasso é uma experiência subjetiva de submissão à força do outro; derrota, um reconhecimento da primazia do Outro. A gente fracassar não é o mesmo que ser derrotado por outro que nos suplanta com um poder maior. Triunfo é uma glória narcísica por ter reduzido o outro à submissão; Vitória, o reconhecimento bilateral de uma supremacia.
Então:
É possível ler a história de Portugal – Lusitanos (com Viriato) X Romanos; Portucalentes X Hispânicos; Braganças X Brasil; Salazar X colônias africanas – como uma sucessão de fracassos, de que só pode decorrer humilhação e vergonha. Mas também é possível lê-la como uma seqüência de derrotas, com as quais um país foi se deixando ensinar algo da soberania do Outro.
Também é possível pensar que a História demonstra que Portugal jamais alcançou o triunfo que perseguiu – o que seria um desdouro narcísico. Mas também é legítimo verificar que o país aprendeu com as derrotas e emergiu vitorioso na renúncia à vã glória de mandar.
Para mim, esse convite a sair de um julgamento piedoso e complacente (e, no limite, zombeteiro), para um reconhecimento da dignidade de um povo que se deixou ensinar pela Historia – esse é o giro que Manoel de Oliveira propõe, e que eu subscrevo.
Curitiba, 27 de Junho do ano da peste.
Texto produzido para o Clube do Filme de junho de 2020, no qual o filme "Non, ou a vã glória de mandar" (1990) de Manoel de Oliveira conduziu o encontro e os debates.
Texto produzido para o Clube do Filme de junho de 2020, no qual o filme "Non, ou a vã glória de mandar" (1990) de Manoel de Oliveira conduziu o encontro e os debates.
[1] Sobre a Verdade e
Mentiras em um Sentido Não-Moral (Über Wahrheit und Lüge im
außermoralischen Sinn), 1873 -
publicado postumamente; edição brasileira, 2008). — Ensaio no qual afirma que
aquilo que consideramos verdade é mera "armadura de metáforas, metonímias e antropomorfismos".
Apesar de póstumo, é considerado por estudiosos como elemento-chave de seu
pensamento.
[2] Non ou a
vã glória de mandar: um retrato identitário e geopolítico de Portugal: http://www.ct-review.org/wp-content/uploads/2017/11/3-09-11-2017-MARIANA-V.-C.-F.-DA-SILVA-Non-ou-a-v%C3%A3-al%C3%B3ria-de-mandar.pdf
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