Michel Mourlet
O que é um filme, senão um implacável e necessário escoamento de imagens no qual a consciência fascinada se afoga e se esquece, para se reencontrar no mais íntimo do ser? “O que é um filme?”, esta interrogação suscitada pela obra de grandes cineastas, Fritz Lang é um dos raros a tê-la sondado a fundo e resolvido. Sua obra inteira se apresenta como uma aproximação lenta e tenaz, uma vez estabelecidos os fins, da perfeição dos meios suscetíveis de conduzir até estes. E quais são estes fins? Trata-se, como em toda obra de arte, de impor uma certa forma do mundo com o máximo de intensidade, de forma a paralisar o reflexo crítico pela evidência da revelação. Sendo o cinema um olhar sobre as coisas e sobretudo sobre os seres, convirá imprimir às aparências um movimento tal que, presa na engrenagem, a consciência espectatorial torne-se o local passivo de uma liturgia na qual cada gesto remeta à totalidade do símbolo. A obra será então perfeitamente fechada sobre si, um círculo que aprisiona um universo que basta a si mesmo, pois é de uma margem de interferências entre a obra e a realidade cotidiana que nasceria um eventual recuo. (Seja pela recusa do banal, como inútil, ou do incerto, como prejudicial, ou do falso, como ineficaz.) Se o banal e o falso acordam o espectador do sono hipnótico e o devolvem a seu presente real, que campo resta a cultivar? A única resposta é: o possível. Em outras palavras, o que é percebido ao mesmo tempo como verdadeiro e como extremo, como a realização das virtualidades, saciando a sede original do homem. E, se o contingente rompe a unidade da obra e dispersa seu poder, a organização do possível necessário — de forma que a obra preencha inelutavelmente a postura de espera do espectador — nos conduz ao coração do problema de Fritz Lang. A eliminação do acaso e a dominação constante das formas, por uma arquitetura na qual todas as partes se comuniquem e se provoquem, resultarão numa fascinação, ou na impossibilidade do espectador se desconectar da ordem do espetáculo.
Não surpreende que a obra de Fritz Lang tenha seguido um itinerário que nada mais é do que o do próprio cinema contemplado em seu conjunto. Os meios que ele pôs a serviço de seus fins realçam ao mesmo tempo a permanência destes e um sentido de transformação. De As Aranhas (Die Spinnen, 1919) a A mulher na lua (Frau im Mond, 1929) esboça-se uma estética cujos elementos de base derivam naturalmente da situação do cinema nesta época, isto é, sobretudo de seu mutismo, sentido como falta e compensado por uma deformação das aparências em metáforas plásticas. O que se tornará uma geometria nas almas deve começar se limitando a uma geometria no espaço. O expressionismo verteu-se num molde euclidiano que transpõe o seu valor. Sem poder apreender os seres nem desvelar suas profundezas, abstraímos seus gestos em direção a um traçado decorativo cujas leis são a simetria e a lentidão. Assim, é criada uma liturgia, fundada num hieratismo unicamente formal. Já se encontra prefigurado, nesta liturgia da qual os atores são os servidores, o caráter central da atitude ulterior de Lang em relação a estes. A saber: a de fazer deles o veículo mais neutralizado de uma mise en scène considerada como puro movimento, enquanto normalmente é o inverso que se produz em outros cineastas, para quem a mise en scène é o meio de exaltar os atores, como uma corrente imponderável que ilumina, ao passar, lâmpadas elétricas. Donde a predileção de Lang por atores mais negativos do que positivos, cuja retenção, o segredo ou a passividade toleram mais facilmente a aniquilação que lhes é imposta (Dana Andrews, Glenn Ford, Walter Reyer…).
O acesso do cinema ao universo sonoro parece desorientar Fritz Lang, que perde de vista o rigor ao qual tinha se dedicado para se conformar às ideias, à demonstração e à impureza dos postulados morais que intervêm na dinâmica dos seres e a falseiam. Entre outros, M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931) e Vive-se só uma vez (You Only Live Once, 1937) oferecem a imagem de um afrouxamento provocado pela embriaguez da palavra ainda não dominada e integrada a uma mise en scène que seja o resultado interior das premissas geométricas do período mudo. Seria preciso esperar o pós-guerra, com Quando desceram as trevas (Ministry of Fear, 1944) e O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952), para encontrar o rascunho de tal resultado, que se desenvolve plenamente em Os corruptos (The Big Heat, 1953),Desejo humano (Human Desire, 1954), No silêncio de uma cidade (While the City Sleeps, 1956), O tesouro do Barba Rubra (Moonfleet, 1955) e Suplício de uma alma (Beyond a Reasonable Doubt, 1956), e se conclui na maturidade completa e na soma de O tigre de Bengala (Der Tiger von Eschnapur, 1959) e O sepulcro indiano (Das indische Grabmal, 1959). É evidente que a trajetória assim descrita não possui, nos detalhes, esta retidão que o distanciamento lhe confere. Há quebras e saltos para a frente seguidos de recaídas. Deste modo, as duas épocas de Dr. Mabuse, o jogador(Dr. Mabuse, der Spieler, 1922) apresentam um som mais moderno do que Os Nibelungos (Die Nibelungen, 1924) ouMetrópolis (Metropolis, 1927). Deste modo, Fúria (Fury, 1936), por ser o primeiro do período americano de Lang, não é nada menos do que o melhor de seus filmes do pré-guerra, com um posicionamento e direção dos atores, em particular durante o processo, que não deixam de anunciar Suplício de uma alma. Deste modo, sobretudo, o admirável O segredo da porta fechada (Secret Beyond the Door…, 1948) precede de três anos Só a mulher peca (Clash by Night, 1952), que nos dá a oportunidade de assistir a um singular rebaixamento do ponto de vista e do tom, a um incompreensível encolhimento do olhar. Na verdade, Lang só reencontraria completamente a altitude em Suplício de uma alma e nas duas épocas do Tigre. A era culminante de Fritz Lang começa, portanto, em torno de 1948, com uma mise en scène que cessa de ser o suporte do roteiro ou uma decoração superficial do espaço para se tornar afiada e íntima, um questionamento dos corpos e dos cenários, centrado em problemas fundamentais de olhares, de impulsos de mão e de bruscas iluminações de abismos. Doravante é o roteiro que sustenta a mise en scène, e esta se torna o filme. O que explica por que este período é também aquele a partir do qual as pessoas que chamam de mise en scène certa forma de submergir uma história numa tela, ou o desdobramento espetacular e pueril de uma plástica incapaz de atingir o essencial, abandonam Lang.
A altitude da qual eu falava, o tom propriamente languiano que procede de um olhar de águia sob o qual tudo se iguala, atesta um sentido do cósmico que subjaz totalmente aos últimos filmes e que explode bruscamente nos últimos planos do Tigre, no qual ele se encarna até se tornar símbolo, no gesto alucinado do fugitivo descarregando sua arma contra o sol. As motivações psicológicas e morais são incorporadas e ultrapassadas, a narrativa desemboca de saída no terreno das relações entre o homem e o mundo, este mundo que não lhe pertence. Temos aí o trágico no estado puro; não uma crítica derrisória dos homens, mas uma descrição da fatalidade. E não há melhor forma de tornar sensível esta elevação de tom do que comparando Só a mulher peca, Desejo humano e O tigre de Bengala. A mesma situação, o “triângulo eterno” — segundo a expressão do próprio Lang: um homem ama uma mulher que ama outro e que rechaça o primeiro —, gera três mises en scène, das quais a primeira é rente ao chão e se agarra em pequenos sulcos psicológicos cavados pelo roteiro, a segunda é mais decantada, e a terceira, perfeitamente cristalina, resplandece ódio e amor em estado bruto, não sendo mais do que a narrativa linear dos atos pelos quais estas paixões nuas e exacerbadas se inscrevem no mundo; atos cuja incandescência consome, apagando tudo até os personagens, para liberar a paixão de todo entrave e lhe conferir, assim, em sua condição mais global, sua acuidade mais obsedante. Os filmes de Lang, liberados da preocupação de exprimir ideias pela articulação dos acontecimentos, não são mais do que narrativas insignificantes cuja significação está encerrada na mise en scène, uma significação unicamente passional, portanto unicamente estética; não mais conceitual, mas melódica, e graças à qual, entre as mãos de Fritz Lang como entre as de alguns raros cineastas, o cinema acede à dignidade de arte.
Não há mais temas, não há mais “ideias de mise en scène”, não há mais personagens, e podemos ainda falar de vida? Mais nada além de uma espécie de linha que vemos progredir e que se une no fim. Os atores são mergulhados numa zona neutra onde, daqui em diante, apenas reluz a intimidade de suas relações, estabelecidas de acordo com o movimento nu de uma invencível marcha. Cada estado é apenas um momento do movimento, abolindo-se no momento seguinte: o filme se destrói à medida que se constrói e apaga seu rastro atrás de si. Cada elemento é indispensável ao conjunto sem existir por si mesmo. Não há plano dominante em Lang. A mise en scène no sentido mais etimológico da palavra é erguida em fim último e tritura em suas engrenagens impecáveis aquilo que alimenta sua rotação; os gestos, os rostos, as vozes e os cenários nos preenchem menos com o que são do que com o que se tornam, e mais precisamente com a forma inelutável deste tornar-se. Mencionemos de passagem que semelhante abstração experimenta a cor como um incômodo, ou ao menos como um elemento supérfluo, e tende ao preto e branco, que revela diretamente o essencial sem empregar os desvios — mesmo reluzentes — do realismo concreto. Logo, as cores do Tigre e do Sepulcro são admiráveis, pois estão distantes do reluzir das quentes luzes americanas (que convêm a cineastas mais carnais, como Losey ou Don Weis), elas brilham de um fulgor atenuado, por um requinte de sobriedade que não contradiz — mas, ao contrário, sustenta — este universo puramente inteligível.
Assim, conclui-se a fascinação buscada desde o início da obra: pela interiorização do traçado matemático, que não deforma mais as aparências, mas as escolhe e as ordena sobre um substrato passional. Trata-se de se livrar de assombrações dominando-as até torná-las desumanas, calculando-as, deduzindo-as e levando-as até seu fim; em suma, de reduzir a um teorema uma dificuldade de ser, para vencê-la e subjugá-la. Trata-se de objetivar suas obsessões, de arrancá-las de si, para se esquecer vendo-as viverem independentes, para colocar entre elas e si uma distância de silêncio e de lucidez. Trata-se, enfim, da busca, por meio da dominação enfurecida da matéria, de um equilíbrio tal que nele se possa inscrever e fazer aceitar, e até desejar, o intolerável. Os planos de horror (sobretudo em O segredo da porta fechada, No silêncio de uma cidade, O tesouro do Barba Rubra e O tigre) mergulham a criatura no impasse de um meio inteiramente hostil, o que nos leva a considerar o papel do cenário na obra de Lang. Este cenário, ao assimilar desta forma a experiência alemã, se não é apagado (como em Suplício de uma alma, em particular) pelo mesmo movimento de abstração que o relevo físico dos atores, instala-se numa perspectiva puramente dramática, impregnada de um poder maléfico e de angústia (sendo os famosos relógios do período primitivo o esboço e o símbolo); são arquiteturas massivas, opacas, e cuja nudez acentua o mistério, quero dizer, a iminência de desabamento — ou o poder de cerco, de sufocamento e de espanto, quando a fenda do drama se abre.
O ódio, o assassinato pensado e um erotismo triste e destinado ao fracasso compõem um universo de uma hostilidade inalterável, de contatos gelados, no qual a única alternativa é: perseguir ou ser perseguido. Aqui, toda consciência quer a morte das outras, segundo uma dialética cujo rigor Hegel não teria desaprovado. Os pretextos constantes desta mise en scène — vingança pessoal, punição legal, perseguição coletiva — são múltiplos disfarces da selva, ou o lugar ideal da supressão do outro impossível. O plano languiano por excelência é aquele no qual o olhar do carrasco pesa sobre a vítima e a constitui enquanto objeto, espécie de implacável possessão à distância, evocando as relações da aranha e da mosca. (No que, aliás, Fuller coincide com Lang, só que se conformando muito mais ao arabesco.) Os corpos são atingidos por uma paralisia que reduz seus deslocamentos no interior de um quadro quase fixo. Os rostos são chaveados, impassíveis não apenas por pudor, mas porque este mundo já está morto, petrificado, cada ser aprisionado sem recurso, para além da angústia, para além da solidão, acabado por puras relações de antagonismo, de indiferença ou de desprezo. Os contatos carnais são da mesma natureza do gelo, alterados por um interesse exterior e envenenados de repulsão, tentativas de estupro sobre carnes frias ou simples junção de epidermes que se ignoram. As atrizes são frígidas como Joan Fontaine e Sally Forrest, ou aparamentadas para excitar um velho (Ida Lupino, Rhonda Fleming, Barbara Nichols). No melhor caso, o do Tigre, a mulher adornada, ao menos uma vez, com as suas mais sensuais seduções — o corpo oferecendo, pelos movimentos mais lascivos, todo o seu peso opaco e firme, leve bronze vivo no qual o sangue aflora — apresenta, na realidade, aos olhos de seu príncipe, apenas uma versão do suplício de Tântalo, no qual se combinam, rodeados de perigos, o desejo, seu objeto e seu obstáculo, que explodirão num longo grito mudo de impotência e de raiva, somente após o qual será possível a serenidade.
Mas tal abordagem da pessoa física é excepcional nesta obra. Enquanto Joseph Losey, seu vizinho por certa comunidade de motivações, solicita e esgota as virtualidades do ator pela proximidade mais sensível, Lang, recusando uma infinidade de possíveis, elimina-o até a trama de sua narrativa. O universo de Fritz Lang é irremediável. Como em todas as grandes obras infelizes, o paradoxo desta é de nos seduzir com seus malefícios, com o deleite sagrado de uma ordem trágica, da contemplação do inumano. O sublime nasce aqui da destruição de toda esperança, quando o homem é tomado por uma fatalidade à qual opõe a máscara fechada de seu desprezo. Um reviramento efetua-se, assim, no próprio seio da negação, que se inverte como uma pele e mostra seu avesso da vitória; a contradição testemunha pelo vencido; o homem maior do que o que o esmaga, de Pascal.
Suplício de uma alma e, mais ainda, O tigre e O sepulcro marcam o limite para além do qual a mise en scène, por um procedimento comparável ao de Mallarmé, cairia na ausência de mise en scène. Uma maior dominação da matéria desembocaria em sua supressão e ultrapassaria o papel mediador da arte. Esta loucura da perfeição, de um absoluto da arte pelo qual o criador tenta extrair do acaso o mais precioso de si mesmo, empurra o sistema de Lang ao extremo do audível e do crível. Daí vem o fato de ele ser tão pouco acreditado e tão pouco ouvido.
Publicado originalmente sob o título “Trajectoire de Fritz Lang”, em La mise en scène comme langage. Paris: Henri Veyrier, 1987, pp. 129-138. Traduzido do francês por Tatiana Monassa.