Por Laurence Giavarini
Este, nós não faremos passar por um gênio, seria uma estatura muito absoluta e muito pesada para quem tinha tão frequentemente na ponta da língua a palavra “desconfiança”(1) e desconfiava, a princípio, do excepcional. Ele parecia mais à vontade, e nos mostra todo o seu potencial (é o caso de o dizer), quando ele descreve a nobreza, a dignidade dos pequenos, das pessoas modestas, dos malfeitores de Casque d’or (Amores de apache) e dos velhos vigaristas de Touchez pas au grisbi (Grisbi, ouro maldito), suas obras-primas como Le trou (A um passo da liberdade) e talvez Antoine et Antoinette (Antonio e Antonieta), do que quando ele trata um personagem já grande, muito maldito, o Modigliani de Montparnasse 19 (Os amantes de Montparnasse): mais que o medo do filme ou da câmera, dos atores, dos diálogos, da própria montagem como o escrevia J. L. Godard (2), é essa grandeza a priori do personagem, essa celebridade, esse caráter de exceção que podem explicar os defeitos do filme, seu peso, sua dificuldade de nos tocar mesmo que se trate da solidão, da miséria e da morte. Aliás, se Jacques Becker leva a sério o drama, ele o dobra, deixa-o aparecer apenas e primeiramente através de uma grandiloquência onde o personagem parece na fronteira do ridículo. Esse é o caso de Philippe Clarence a dar reviravoltas em Falbalas (Nas rendas da sedução) antes da queda final, o de Goupi-Tonkin em Goupi mains rouges (Mãos vermelhas), por exemplo, na cena onde ele nomeia as regiões da Indochina frente ao professor que acha que isso parece tão “certificado de estudos” e prefere as “notícias” poéticas e ocas de Paris por Goupi-Monsieur (mesmo que elas sejam uma verdadeira lembrança escolar...). Robert Le Vigan estava tão impressionante no papel de colono, que anos mais tarde, ele fez-se tratar por “Goupi-Grand Reich” durante seu processo de colaboração (3). Devido talvez essa mesma recusa do excepcional que quando o próprio Becker aparece em Boudu sauvé des eaux (Boudu salvo das águas) de Renoir (1932), ele tem a declamação poética veemente e derrisória: “Poeta, pegue teu alaúde...”. Ou ao contrário, quando é um simples rosto no sketch de La vie est à nous realizado também por Renoir, pegando a fila de espera dos desempregados e contando que a última vez que ele “foi” no cinema, ele ali viu Douglas Fairbanks.
Esse, célebre por sua elegância, amava talvez as gravatas. Elas têm uma grande importância na obra de Jacques Becker, sempre notáveis, sempre uma peculiaridade dos personagens, ao mesmo tempo seu charme e sua fraqueza. Há aquelas do primeiro Clarence (já Raymond Rouleau) em Dernier Atout de 1942, aquela magnífica quando Mireille Balin põe um braço em torno de sua cintura e o abraça, mas da qual nós também zombamos, tão apaixonado que está, assim como pelas palavras cruzadas. Há aquela de Monsieur, le Parisien de Goupi mains rouges (1943) que entra na sua própria família com o novo nome de Goupi-Cravate (Goupi-Gravata). Há as gravatas de Gabin em Touchez pas au Grisbi, entre elas uma memorável, de bolinhas sobre um terno listrado, diante de Marylin Bufferd de vestido listrado e com uma xicara de chá, essa também de bolinhas. E quando, na manhã de sua fuga, os prisioneiros de la Santé se preparam para a partida, são ainda gravatas que eles amarram em torno de seus pescoços; aquela do chamado Monseigneur é grosseira, cortada de umas das cobertas da cela (Le trou, 1960). Com toda a sua distância, seu senso do derrisório, o uso da gravata é, em Becker, uma forma de precisão, ou seja, de respeito e de leveza do detalhe. Ele não é o herói de nenhuma onda, mas essa elegância diz respeito certamente a sua meticulosidade de cineasta, uma certa lógica do preparativo e da decupagem. Ela pode ser até a única história do filme, quando seu herói se chama Arsène Lupin, cavaleiro e conhecedor de cavalos. Quando Jean Renoir evoca Jacques Becker que foi seu jovem assistente de 1933 a 1939 e que representava para ele o mundo detestado da grande burguesia parisiense, com seu senso da moda, a sua maneira de falar e agir, é para falar de seu primeiro ponto de encontro que foi a cavalaria. E ele acrescenta que “ajuda muito fazer cinema quando se é cavaleiro. É uma ótima educação”. A cavalaria é uma escola de cinema porque ela é uma aula de lógica; quem quer se transportar (sic) deve saber cuidar de seu cavalo, e obedecer às regas do cuidado requeridas pela sua montaria, “isso evita o sentimentalismo” (4). Becker, que amava os faroestes, deveria gostar neles da presença dos cavalos, o ritual das partidas, dos galopes até os estribos. Talvez até da amizade entre os cavaleiros, sua intimidade. Em Minha vida e meus filmes, Renoir conta ainda da sua descoberta do jazz graças à Becker, os Mound-City-Bluebirds de Chicago. Ele fala, sobretudo, de uma amizade tão forte que nós poderíamos acreditar amorosa, principalmente na época de La Grande Illusion (A grande ilusão) quando eles viviam praticamente juntos. Sob este aspecto – de encontro, de amizade e de amor – o mais belo retrato de Jacques Becker é aquele que faz Jean-Pierre Melville.
“Se me é permitido dizer algumas palavras sobre Jacques Becker, ele era antes de tudo, extremamente belo, de uma beleza estranha. Ele tinha há muito tempo os cabelos grisalhos, como todo o resto de seu personagem, pois era um senhor cinza. E seus cabelos se tornavam cada vez mais brancos, ele tinha um bigode que ainda conservava devido a sua escuridão, que tinha o hábito de acariciar assim (gesto), todo o tempo, com a sua bela mão de bronze. Ele tinha um olhar... penetrante, olhos marcados pelas olheiras, um grande, grande estilo, uma elegância imensa... Era um Don Juan incontestável, era um personagem que agradava as mulheres antes de agradar os homens. Mas os homens eram conquistados imediatamente pela sua inteligência e sua gentileza. Mesmo se, no começo apesar de tudo, esse belo senhor, inteligente, os fazia frear um pouco sua simpatia. Pois eu vi, eu conheci... homens que não puderam entrar em contato imediatamente com Becker por causa da beleza de Becker. Os homens ficavam frequentemente impressionados pela beleza de Becker. Ele possuía ao mesmo tempo uma aparência aristocrata, e logo no canto do olho uma malícia, uma esperteza, e o conjunto dessa inteligência, dessa esperteza e dessa malícia dava-o uma força considerável”(5).
Se ele realiza um dos sketches de La Vie est à nous em 1936, depois um curta-metragem em 1938 sobre o Congresso do PC em Arles (La Grande Espérance), e anteriormente com Pierre Prévert dois curtas, Le Commissaire est bon enfant e Le Gendarme est sans pitié (1935), se, além disso, nós excluímos o mistério desse Or du Cristobal, filme de pirata que ele não reconhece (que Jean Stelli terminou em 1939) mas cuja realização lhe é atribuída, essa outra esquisitice dos créditos de L’Heritier des Mondésir de Albert Valentin, roteiro de Aurenche e interpretado por Fernandel, a carreira de Becker cineasta começa a bem dizer durante a guerra, enquanto Renoir está nos EUA. Durante esse período, ele realiza três filmes. Dernier Atout em 1942, entretenimento policial incluindo uma bela espiã, a amizade e a rivalidade engraçada de dois heróis, lenços, pérolas, passagens, uma história de telefone e outra de TSF – é um pouco como Tintim e Tintim no Cariocal, país fictício da América do Sul. Em 1943, Goupi mains rouges é seu primeiro grande sucesso, beneficiado pela garantia literária de Pierre Véry que adaptou seu romance, e pelo cartaz que reproduzia a árvore genealógica da família Goupi com os retratos de cada um de seus atores (5). Ao contrário, Falbalas, filme mais dramático e primeiro roteiro original de Jacques Becker, situado no mundo da costura que ele conhecia muito bem devido a sua mãe, foi mal recebido no seu lançamento na plena euforia da Liberação. Contudo, é um dos Becker mais surpreendentes, um dos mais representativos da sua maneira de artesão que monta costurando os pedaços decupados de cada cena, e do registro particular sobre o qual ele aborda o drama.
É fácil achar em Falbalas como nos dois precedentes tudo o que, à primeira vista, caracteriza a arte de Becker: o interesse dado aos personagens de forma que ele sabe “matar a marionete” (1), os temas da fidelidade na amizade (Dernier Atout), do amor e da possessão (Falbalas), a descrição de grupos – entre calor e inquietude, as maisons de moda, da família em Goupi mains rouges, a escola de policiais de Dernier Atout – o risco da loucura na solidão; e então a fineza descritiva, a variedade de maneiras pelas quais Becker inscreve seus personagens nos seus meios. Assim, hoje essa obra conserva algo de um retrato de uma época que vai da guerra ao fim dos anos 50. É a burguesia de Rue de l’Estrapade (Brincando de ciúmes) em 1951, a aristocracia, o mundo de Édouard et Caroline (Vivamos hoje) em 1953, é o mundo camponês de Goupi mains rouges, entretanto, pouco situado (o romance de Pierre Véry se passava em 1920), são os operários de Antoine et Antoinette em 1947, os estudantes, a boemia artística de Rue de l’Estrapade, os aventureiros, atores e etnólogos de Rendez-vous de juillet (Eterna ilusão) em 1949, os bandidos de Touchez pas au grisbi em 1954 e de Le trou em 1960. Somente Casque d’or (1952), Montparnasse 19 (1958) e a fantasia que o precede, Les Aventures d’Arsène Lupin (As aventuras de Arsène Lupin) em 1957, estão situados no começo do século. Em 1954, Ali Baba ainda estava em outro lugar, mas com o sotaque marselhês.
Impressões de uma época e de um país – “só Becker era e continuava francês à francesa, francês como a rosa de Fontenelle e o bando Bonnot” escrevia Jean-Luc Godard em 1960 (6). Esse sentimento daquilo que é legitimamente francês é particularmente sentido nas comédias parisienses, Antoine et Antoinette, ou de maneira mais clara em Édouard et Caroline que atribui um papel importante a um americano (como as comédias de Lubitsch, aos franceses) e zomba gentilmente da anglofilia dos aristocratas: “Caro-laï-ne”. Seria um erro, entretanto, procurar em Becker qualquer projeto à maneira de Zola. Como não há arquétipos em seu cinema, também não há significado, nada de uma visão social... Mais precisamente, uma forma de atenção muito exata às existências, à linguagem de seus personagens, ao mundo no qual eles vivem, uma precisão de entomologista como ele o disse uma vez, com os efeitos de crueza que isso supõe. Mas os humanos nunca são insetos no cinema de Becker, mesmo quando ele os filma das varandas de Rendez-vous de juillet ou de Rue de l’Estrapade. No entanto, é essa atenção que confere tanta justeza aos detalhes de suas histórias, aos objetos inesquecíveis, mas que não procedem de nenhum fetichismo como em Melville, e de nenhuma metafísica como em Bresson; os alhos-porós ou o ferro de passar de Antoine et Antoinette, um colete, um vestido na moda em Édouard et Caroline, a mesa de Isabelle em seu quartinho (Rue de l’Estrapade), os óculos de Gabin em Touchez pas au grisbi.
Eis o que talvez podemos aprender com Becker. Que ele não tem nenhuma mensagem a entregar, e nós buscávamos em vão nos seus filmes uma intenção de afirmar algo sobre os jovens, sobre os homens que envelhecem ou sobre as mulheres; muito menos a intenção do tema, a grande burguesia, o campesinato, a alta costura. Ele se ocupa apenas de Arsène, Isabelle, Max, Riton, Marie, Jo, Monseigneur, de Gaspard e dos outros. Um filme, uma obra, pode dar conta de uma geração, dar a ver na diferença o sentimento daquilo que é legitimamente francês, mas isso não pode ser, em nenhum caso, uma intenção como nós a sentimos esse ano em alguns filmes franceses, os Paris s’éveille, os Sushi, até, por mais brilhante que seja Jacques Doillon, sua última obra, Amoureuse. E, então, como perguntar a um filme as intenções do cineasta? Ela só pode ser aquela de sua maneira, de seus meios, da história que ele dá aos personagens no tempo – em uma palavra, no cinema nós só podemos situar a definição de valores ou qualquer afirmação em relação a uma prática técnica: os filmes de Becker privilegiam o diálogo, estreitam o quadro em torno dos personagens – pode ser um apartamento em Édouard et Caroline, uma cela em Le trou. E, do mesmo modo que o periscópio artesanal nesse último filme serve para ver o outro lado da parede, para ensinar enfim a verdade sobre o último elo dos cinco prisioneiros, da mesma maneira, é sempre para esses personagens que Becker escreve uma réplica, escolhe uma luz, ajusta um quadro. É porque Goupi-Tonkin não escapa mais da lembrança do assassinato que ele cometeu que Becker o mostra em um flashback, não para explicá-lo ao espectador. Nós poderíamos dizer o mesmo sobre a quantidade de alguns procedimentos antiquados, desfoques, fusões de Falbalas, vozes que ecoam em Antoine et Antoinette quando Antoine é nocauteado e recupera lentamente a consciência. Para citar Becker, como nós não o fizemos muito até aqui, explicando que é preferível começar a filmar cedo: “Eu penso, todavia, que é melhor não filmar antes de ter conhecido o amor, e que é preciso tirar um pouco de tempo para ver os outros viverem.” A lição pode vir de um cineasta morto há trinta e dois anos, ela veio mais recentemente de um Rohmer com quase 72 anos.
(1) François Truffaut, Os filmes de minha vida. (2) Jean-Luc Godard, Saut dans le vide (Cahiers du cinéma, nº 83, maio de 1958).
(3) Anedotas relatadas por Jacques Siclier em La France de Pétain et son cinéma.
(4) Jean Renoir e Jean-Pierre Melville na emissão de Monique Chapelle Notre ami Jacques Becker (INA, 1975).
(5) Jean Renoir, Minha vida e meus filmes. (6) Jean-Luc Godard, Frère Jacques (Cahiers du cinéma, nº 106, abril de 1960).
(O texto Un monsieur gris e précis foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 454, em abril de 1992. Traduzido por Letícia Weber Jarek.)