sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: Os Amores de Jacques Becker



Não há nenhuma teoria sobre Jacques Becker, nenhuma análise, nenhuma tese. Tanto sua obra como sua pessoa desencorajam o exegeta e é melhor assim.
Becker, com efeito, não pretende mistificar nem desmitificar ninguém; seus filmes não são de "impressão de realidade" nem de "denúncia crítica", logo, nosso autor trabalha à margem dos modismos e nós o situaríamos mesmo nos antípodas de todas as tendências do cinema francês.

(François Truffaut em Os Filmes da Minha Vida)

Obs: Todos os filmes têm a classificação indicativa 14 anos.

 07/01: Antonio e Antonieta
(Antoine et Antoinette, 1947/FRA – 88 min. Com: Roger Pigaut, Claire Maffei, Noël Roquevert, Gaston Modot, Made Siamé)
Antoine e Antoinette se amam. Ele é operário de uma gráfica e ela vendedora numa loja de departamentos no Champs-Elysées. Levam uma vida regrada e feliz, feita de coisinhas insignificantes, de uma pitada de ciúme e de um punhado de sonhos, até que é ameaçada por um bilhete de loteria que some e finalmente reaparece.

14/01: Vivamos Hoje

(Édouard et Caroline, 1951/FRA – 88 min. Com: Daniel Gélin Anne Vernon, Elina LabourdetteJacques François, Betty Stockfeld )

Jacques Becker fez uma trilogia sobre "dois corações é melhor do que um" e Edouard et Caroline, que no Brasil recebeu o título de Vivamos Hoje, é o segundo dela. Edouard é um talentoso pianista pobre, que se casa com Caroline, da alta sociedade.

21/01: Amores de Apache

(Casque d'or, 1952/FRA – 96 min. Com: Simone Signoret, Serge Reggiani, Claude Dauphin, Odette Barencey, Loleh Bellon)
Namorada de um criminoso se apaixona por um carpinteiro, criando um arriscado triângulo amoroso. Primeiro grande papel da ultra-sensual Simone Signoret, num retrato do sub-mundo parisiense de 1900.

28/01: Os Amantes de Montparnasse

(Les Amants de Montparnasse, 1958/FRA – 104 min. Com: Gérard PhilipeLilli PalmerLea PadovaniGérard SétyLino VenturaAnouk AiméeLila Kedrova)

Biografia que retrata o último ano de vida do pintor italiano Modigliani. Na Paris de 1919, ele se apaixona por uma rica jovem mas seu romance não é aceito pelos pais da garota.
Serviço:
Todo sábado
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 18 de dezembro de 2016

A outra face da violência


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

(Rolling Thunder). 1977. American International Pictures (95 minutos). Produção: Norman T. Herman para a T.B.C. Film. Produção executiva: Lawrence Gordon, Samuel Z. Arkoff. Roteiro: Paul Schrader e Heywood Gould, baseado em argumento de Paul Schrader. Fotografia: Jordan Cronenweth (DeLuxe & P/B). Música: Barry De Vorzon. Cenografia: Steve Berger. Montagem: Frank P. Keller. Elenco: William Devane (major Charles Rane), Tommy Lee Jones (Johnny Vohden), Linda Haynes (Linda Forchet), James Best (Texano), Dabney Coleman (Maxwell), Lisa Richards (Janet), Luke Askew (Automatic Slim), Lawrason Driscoll (Cliff), James Victor (Lopez), Cassie Yates (Candy), Jordan Gerler (Mark), Jane Abbott (irmã), Jerry Brown (patrulheiro #1), Jacque Burandt (Bebe), Anthony Castillo (menino de rua), Charles Escamilla (T Bird), Rudy T. Gonzales (garçom), Robert K. Guthrie (repórter #3), Ray Gutierrez (Tex-Mex), James N. Harrell (vovô), Randy Herman (Sanchez), Michael Nakamura (o torturador), Pete Ortega (Melio), Paul A. Partain (cunhado), James Conner Pribble (patrulheiro #2), Cheyenne Rivera (Gato), Carol Sowa (Betty Ann), Robert Raymond Reyes (repórter #2), Arturo R. Tamez Jr. (garçom), Bob Tisdale (sr. Williams), Autry Ward (Texano #2), West Ward (jogador de cartas), William Vance White (Bob), Michael R. Witte (repórter #1), Alan Wong (Billa).


metteur en scène          

Existiram e existem basicamente dois tipos de cineastas: os desbravadores do dispositivo e os dramaturgos da tela. (Há também os meros consumidores de signos, mas esses não deveriam ser considerados cineastas.) 

Os cineastas desbravadores seriam, por exemplo, Rossellini, Hitchcock, Eisenstein, Stan Brakhage, Orson Welles, o Jean Rouch de Gare du Nord ou Os Mestres Loucos, o Kiarostami de Close-Up ou Através das Oliveiras. O que esses cineastas têm em comum, apesar das disparidades, é que todos eles se empenharam em levar ao limite as possibilidades da máquina-cinema, cada qual a seu modo. Rossellini pelo registro bruto do real como forma de perceber a “respiração do divino”. Hitchcock pela capacidade cortante de fixar e manipular a atenção do espectador através do olhar da câmera. Eisenstein pelo poder de ubiqüidade de seus mil olhos, pela maneira obsessiva de calcular cada milímetro do quadro, cada golpe da montagem. Brakhage pela intervenção direta no material sensível da película e pelo convite a estados-limite da percepção. E por aí vai.            

Preminger, Mizoguchi, Ophüls, Zurlini, Tourneur, John Ford, King Vidor, Raoul Walsh. Esses já não tiveram a mesma ambição, não quiseram pôr em prática nenhuma utilização extrema da câmera ou da montagem, assim como não levaram adiante nenhuma utopia estimulada pelas propriedades intrínsecas do cinema. Estavam, antes, absorvidos na tarefa de figurar corpos num meio físico, para daí extrair um drama e exprimir um assunto segundo uma exigência de ordem cênica. Em outras palavras, o que eles estavam empenhados em levar ao limite não era o cinema enquanto dispositivo - fosse ele um dispositivo sensível à aleatoriedade e à memória lábil das coisas, fosse um instrumento rigoroso de seleção e captação de aparências significantes -, mas antes o conjunto de técnicas e elãs que lhes permitia encarnar um sentimento do mundo através das figuras de corpos de atores fotografados em seus movimentos e em seu meio, algo a que costumamos chamar mise en scène.       
Podemos dizer, sem desmerecer nenhuma das partes, que os primeiros são os grandes inventores de formas do cinema, ao passo que os segundos são “simplesmente” os grandes cineastas. Rossellini, Hitchcock e Eisenstein foram mais inventores que Preminger, Mizoguchi e Ophüls. Mas Preminger, Mizoguchi e Ophüls foram mais metteurs en scène que Rossellini, Hitchcock e Eisenstein.   
É neste grupo, dos grandes 
metteurs en scène, que devemos incluir John Flynn.        

O filme           

Uma grande obra de arte nos obriga a falar da arte e não só da obra. Daí talvez a necessidade de dar toda uma volta e propor todo um sistema tão-somente para começar a falar de Rolling Thunder, um filme que, aliás, não dá volta nenhuma, vai direto ao ponto, um dos filmes mais retilíneos já feitos.           

Rolling Thunder começa com a chegada de Charles Rane (Willian Davane) e Johnny Vohden (Tommy Lee Jones) a um aeroporto militar em San Antonio, Texas, 1973. Eles retornam do Vietnã, onde foram prisioneiros de guerra e sofreram as piores torturas. “San Anton, it’s really good to see you...”, diz a canção com aquela “tristeza ensolarada” que marcou os anos 70. Uma multidão aguarda os dois heróis de guerra. Johnny confessa que não sabe como vai encarar aquelas pessoas. “Bote seus óculos escuros”, sugere Charles. A cena no aeroporto é puro mal-estar. Charles reencontra sua mulher acompanhada de outro homem, Cliff, um policial mais novo que ele. A maneira como Cliff o cumprimenta basta para sacarmos o que está rolando. Já o filho pré-adolescente de Charles mal o reconhece após tanto tempo. A família já era. Johnny, por sua vez, dá um beijinho meio protocolar na mulher, depois cumprimenta o irmão, dá um meio-abraço no pai. O céu está nublado, poças d’água se espalham pelo chão como a não deixar esquecer uma tempestade recém estiada.       

O que Charles experimenta nessa volta para casa não é muito diferente do que o personagem de Robert De Niro vive ao também retornar do Vietnã em O Franco Atirador, de Michael Cimino: um sentimento de total e irreparável inadequação ao mundo que antes reconhecia como seu, mas que agora lhe é impraticável e estranho. Ninguém consegue se aproximar do herói para saber o que se passa, tentar reintegrá-lo à vida social. Há um abismo. A experiência do inferno é impartilhável, qualquer tentativa de entendê-la, por parte de quem não a viveu, soa ridícula. Por exemplo: Cliff quer abrir um diálogo com Charles, demonstrar que entende o estado em que ele se encontra, que imagina as coisas pelas quais ele passou. Charles o desafia: “amarre meus braços às minhas costas com essa corda e puxe meu tronco com toda força”. “Mais alto! Mais alto!”, ele pede com um certo ar de sadomasoquismo. Cliff não suporta a “brincadeira” e interrompe. Charles diz que a melhor maneira de derrotar o torturador é aprender a gostar da tortura. Essa cena basta para sabermos que Cliff não vai mais importuná-lo com papinhos de falsa aproximação.       
O interior da casa de Charles é acentuadamente escuro, não só na cena noturna em que ele e sua mulher conversam, ainda no início, mas sobretudo na cena diurna em que ele chega em casa e é abordado por um bando de delinqüentes que querem levar seu dinheiro (ele recebeu, numa constrangedora cerimônia de homenagem bem afeita ao mau gosto texano, uma mala cheia de moedas, contabilizando pouco mais de 2.500 dólares). Na cena da invasão, o bando barbariza: mata mulher e filho de Charles e ainda mói seu braço no triturador de lixo da pia da cozinha. Ele também recebe um tiro, mas sobrevive - não se pode matar quem já está morto. Um dos aspectos mais interessantes do filme é que Charles era dado como provável morto antes de retornar da guerra, já que não se tinha notícias dele durante o período em que foi feito prisioneiro. Ele mesmo se refere à época pré-prisão como “o tempo em que estava vivo”, admitindo que o que sobrou dele foi só uma energia obscura. Quando retorna, portanto, tudo que lhe ocorre é refratado por esse campo de força negativo.            
Importante notar que o elemento utilizado pelos bandidos para deixá-lo aleijado, o triturador da pia, simboliza de certo modo o conforto e a praticidade da famosa “cozinha americana”, até hoje considerada o modelo ideal para as casas burguesas. A destruição vem de dentro da casa. Nenhum enquadramento faz questão de sublinhar isso, nenhum plano escreve na tela essa constatação. Estamos longe de um filme-tese ou de um discurso sobre qualquer coisa. Tudo está no poder de imantação da câmera - imantação ao mal. Poucos filmes souberam expressar tão bem, sem outro recurso que não a 
mise en scène, o que foi essa idade das trevas norte-americana representada pelo aftermath do Vietnã.       

No hospital, depois do trágico assalto, Charles recebe um braço mecânico com um gancho na ponta. Essa prótese se torna a marca registrada do filme, um apêndice mecânico que combina perfeitamente com a perda de expressão do personagem, a neutralização de suas faculdades emotivas. A performance de William Devane é extraordinária: seu personagem encarna a frieza da morte. Ele só tem agora uma coisa a fazer: caçar os homens que o assaltaram. Para tal, reencontra Johnny, que imediatamente o acompanha na missão. De repente fica muito claro para eles o que deve ser feito. A certeza clareia o caminho, e o filme se torna límpido e conciso, contrariando a lógica das veleidades e das motivações imprecisas que permeia a literatura sobre o cinema americano dos anos 70.            

O roteiro é de Paul Schrader, o que ajudou a tornar as comparações com Taxi Driver inevitáveis. Diz-se que Schrader fez esse roteiro a partir de sobras e interditos do filme de Scorsese. Numa das cenas que Flynn não chegou a filmar, o roteiro de fato narra uma ida de Charles a um drive-in onde ele assiste a Garganta Profunda e no carro ao lado há “um baixinho” com uma lata de cerveja na mão: “Ele usa uma pálida camiseta verde e um casaco do exército. Aqueles que leram outro roteiro meu intitulado Taxi Driver irão reconhecer esse homem. Seu nome é Travis Bickle”, diz a página 22 do script de Schrader. Rolling Thunder seria então um Taxi Driver que troca os becos escuros de Nova York pelo sol do Texas somente para se revelar um filme ainda mais ensombrado e pessimista que o anterior. Mas o roteiro foi reduzido ao seu núcleo duro, sem os desperdícios que Schrader tanto preza e que Scorsese conseguira transformar em sua matéria dramática principal, mas que em John Flynn, cineasta da retidão, fariam pouco ou nenhum sentido. 

Charles e Johnny são heróis distantes, embora não indiferentes. Eles não têm aquela vitalidade nos gestos e nas réplicas dos personagens de Richard Widmark em Anjo do Mal (1953) ou Tormenta Sob os Mares (1954), de Samuel Fuller. Há uma estranha lentidão no tiroteio épico que encerra Rolling Thunder (desfecho que Flynn já havia ensaiado em The Outfit e irá retomar em Best Seller e Fúria Mortal). A Segunda Guerra acelerou o fluxo sangüíneo dos heróis de Fuller. O Vietnã congelou os de Flynn.                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Publicado originalmente em http://focorevistadecinema.com.br                                                          

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "A Outra Face da Violência" de John Flynn

Neste domingo dia 18, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "A Outra Face da Violência" que encerra o ciclo três filmes de John Flynn. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"A Outra Face da Violência" de John Flynn
Ao voltar do Vietnã, o Major Charles Rane é recebido como herói em sua cidade, sendo premiado por reconhecimento com um carro e uma maleta com moedas de prata. Mexicanos, próximos dali, ao saberem pela mídia, vão atrás do major para roubá-lo. Nesse processo, matam sua mulher, filho e danificam permanentemente sua mão direita. A sede por vingança é então enraizada.

Serviço:
18 de dezembro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 11 de dezembro de 2016

A QUADRILHA


por Jesús Cortés

(The Outfit). 1973. Metro-Goldwyn-Mayer (103 minutos). Produção: Carter DeHaven. Roteiro: John Flynn, baseado na novela The Outfit, de Richard Stark. Fotografia: Bruce Surtees (Metrocolor). Música: Jerry Fielding. Cenografia: Tambi Larsen (a.d.), James L. Berkey (s.d.). Montagem: Ralph E. Winters. Elenco: Robert Duvall (Macklin), Karen Black (Bett Harrow), Joe Don Baker (Cody), Robert Ryan (Mailer), Timothy Carey (Menner), Richard Jaeckel (Chemey), Sheree North (a esposa de Buck), Felice Orlandi (Frank Orlandi), Marie Windsor (Madge Coyle), Jane Greer (Alma), Henry Jones (médico), Joanna Cassidy (Rita), Tom Reese (braço direito), Elisha Cook Jr. (Carl), Bill McKinney (Buck), Anita O’Day (ela mesma), Archie Moore (Packard), Tony Young (contador), Roland La Starza (atirador), Edward Ness (Ed Macklin), Roy Roberts (Bob Caswell), Toby Andersen (atendente do estacionamento), Emile Meyer (Amos), Roy Jenson (Al), Philip Kenneally (barman), Bern Hoffman (Jim Sinclair), John Steadman (atendente do posto de gasolina), Paul Genge (homem do pagamento), Francis De Sales (Jim), James Bacon (apostador), Army Archerd (mordomo), Tony Trabert (ele mesmo).

A partir do momento em que Macklin (um Robert Duvall perfeito, recém-saído de O Poderoso Chefão) acerta o relógio que lhe é devolvido ao sair da prisão após cumprir pena por roubo e até mesmo antes, na cena de assassinato a sangue frio de quem depois saberemos que era seu irmão, A Quadrilha é um mecanismo de precisão que desafia o tempo, as modas e as tendências que dominaram o thriller dos anos 70.

A iconografia da América dos grandes noir que começam nos anos 30, os chapéus e os impermeáveis, os trajes e os vestidos de noite, os clubes, os carros e os métodos e meios da polícia para combater o crime organizado ou “de sobrevivência” ficaram para trás e nas bem-sucedidas Chinatown, Um Lance no Escuro, Perseguidor Implacável, À Queima-Roupa ou O Perigoso Adeus a perspectiva se torna claramente renovadora, especialmente no que se refere aos elementos puramente estéticos e éticos.

Adiantando-se em vários anos em relação a Michael Cimino (sobretudo pela estrutura de O Ano do Dragão, que teria ligações com Fuller, uma referência comum) ou Clint Eastwood, John Flynn injeta sabedoria cinematográfica, sentido do drama, de tempo narrativo, da direção de atores, como se a lição mais importante, a única que realmente valesse a pena ser aprendida, viesse dos grandes Fleischer dos anos 50 e quase nada das contaminações mais ou menos proveitosas que os anos 60 trouxeram tivesse afetado de alguma forma a construção do filme.

Parece que a preocupação de Flynn em A Quadrilha não é apenas com o todo, mas mais particularmente por set pieces, segmentos independentes. Blocos de granito puro, que se abrem e se fecham para se encadearem em elipses quase invisíveis que lhe dão um sentido fulgurante, como se estivesse suspenso no tempo. Na verdade, se não fosse a mistura de estóico revanchismo a essa expressão amargurada ante o pior que pudesse acontecer a Macklin, A Quadrilha estaria mais próximo de Alan Clarke que de Don Siegel e em todo caso se aproxima mais de Ulu Grosbard que de Martin Scorsese e muito pouco às correntes abertas mais tarde por Wim Wenders.

Em especial, esse procedimento “miniaturista” e a aparição em papéis secundários de ícones da idade de ouro como Robert Ryan, Jane Greer, Richard Jaeckel, Marie Windsor e Elisha Cook Jr. poderia ter condenado A Quadrilha a se tornar pouco mais que um modelo em escala dessas obras que suponho assaltar a memória sobre o papel em seu argumento: Os Assassinos e Baixeza de Siodmak, O Grande Golpe de Kubrick, Seu Último Refúgio de Walsh, O Poder do Ódio de Dwan... e westerns de Boetticher, Mann, Stuart Heisler ou Jack Arnold.

Mas John Flynn, sem se tornar em momento algum revisionista e com uma contenção exemplar, se atreve a transitar nesse vasto território policial olhando em frente e sem ter na cabeça os recursos que estavam funcionando tão bem nos filmes contemporâneos mencionados acima. Isso cinematograficamente se traduz compondo-se à distância (sem usar apenas o primeiro plano e dando sempre uma importância decisiva ao equilíbrio do enquadramento), usando pouco diálogo e nunca frases feitas nem ironias, quase nada de música (que além do mais é muito pouco estridente, com apenas umas pequenas notas de “funk” em um par de ocasiões), não tocando no zoom e sobretudo injetando humor e humanidade ao longo do filme ao invés de optar pela tendência mais cômoda e rentável na qual derivaria por pura deformação o gênero: como os tempos se tornaram mais sofisticados, mais velozes, esqueceram-se dos códigos morais e já não há mais espaço para aqueles que pensam e sentem, tomemos o caminho fácil e conduzamos o objetivo na medida do possível à ação, evitemos ou reduzamos a trivialidades os conflitos sentimentais ou de consciência, tratemos de mostrar que todos nós podemos ser impotentes como uma desculpa para validar qualquer atrocidade cometida, que já não será mais castigada, e esbocemos um inferno sem ordem ou justiça que é o quê já não mais era, certo de que é no quê este mundo se converterá em breve... a base de tantos filmes desde então e até nova ordem, sem percurso, desagradáveis, gratuitamente violentos, afobados, insubstanciais.

Uma cena simples reflete o que distancia A Quadrilha de tantos filmes do seu gênero. Quando Bett (Karen Black) atropela com seu carro dois homens para evitar que disparem contra Macklin e seu amigo Cody (Joe Don Baker), que escapam por um triz e na euforia de ter salvado a sua pele, Macklin faz o gesto de abraçá-la, mas ela o afasta com o braço, ainda em estado de choque por ter feito algo assim, quem sabe pela primeira vez e talvez surpreendida por ter sido capaz de tomar tal iniciativa.

Assim, o melhor e mais tocante de A Quadrilha acontece na sua parte final, quando, em duas conversas, uma no carro e a outra no fim do assalto à casa do mafioso interpretado por Robert Ryan, em uma chave muito Peckinpah e com reminiscências do Jacques Becker de Grisbi, Ouro Maldito, vem à luz a intensa amizade que une Macklin a Cody - que até aquele momento parecia um simples mercenário cruel - que querem acabar o quanto antes com esta vida que levam, de motéis de rodovia e armas escondidas debaixo do travesseiro, talvez para começar de novo, como em tantos westerns, nessa aldeia de Oregon onde “quando neva te cobre até a cabeça”, da qual Cody fala com uma mistura de saudade e utopia.
       
(Traduzido por Bruno Andrade)  

Publicado originalmente em
http://focorevistadecinema.com.br                  

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "A Quadrilha" de John Flynn

Neste domingo dia 11, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "A Quadrilha", segundo dos três filmes de John Flynn que serão exibidos. O ciclo contará ainda com "A Outra Face da Violência" (18/09). Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"A Quadrilha" de John Flynn
O experiente assaltante Earl Macklin (Duvall) acaba de sair do cárcere. Mal tem tempo de desfrutar sua liberdade em uma pocilga à beira da rodovia juntamente com sua companheira Bett (Karen Black), logo recebe a desagradável notícia do assassinato de seu irmão. Para piorar, um sujeito contratado tenta matá-lo na mesma noite.Vasculhando o submundo do crime para chegar aos responsáveis por trás desses atos, Macklin contará com a ajuda de seu parceiro de assaltos, Cody (Joe Don Baker), que provisoriamente mantém um pequeno restaurante.

Serviço:
11 de dezembro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 4 de dezembro de 2016

NA SOLIDÃO DO DESEJO



por Bruno Andrade

(The Sergeant). 1968. Warner Bros.-Seven Arts (108 minutos). Produção: Richard Goldstone. Produção executiva: Robert Wise. Roteiro: Dennis Murphy, baseado na novela homônima de sua autoria. Fotografia: Henri Persin (Technicolor & P/B). Música: Michel Magne. Cenografia: Willy Holt (p.d.), Marc Frédérix (a.d.). Montagem: Françoise Diot. Elenco: Rod Steiger (primeiro sargento Albert Callan), John Phillip Law (soldado Tom Swanson), Ludmila Mikaël (Solange), Frank Latimore (capitão Loring), Elliott Sullivan (Pop Henneken), Ronald Rubin (cabo Cowley), Philip Roye (Aldous Brown), Jerry Brouer (sargento Komski), Memphis Slim (cantor do night club), Gabriel Gascon (cunhado de Solange), Nadine Alari.

Já dissemos que a principal característica da mise en scène de John Flynn é a sua incorruptibilidade: nenhuma hesitação, nenhuma trapaça, absolutamente incapaz de desviar-se do seu foco e, portanto, o tempo todo atenta e ativa, espreitando-se para registrar a inspiração que surge nos corpos e nas presenças dos seus atores, naquele impulso que se desprende no gesto ou na expressão que, como nas nossas vidas, tentamos esconder. Os atores de predileção do diretor foram evidentemente Christopher Walken, James Woods, Brian Dennehy, Tommy Lee Jones, Stephen Baldwin, Robert Duvall e principalmente Rod Steiger: todos homens de ação, do desenlace imprevisível, do detalhe que ultrapassa os limites que esses homens se impuseram a si mesmos, em um levante contra o mundo em que foram metidos. Uma convicção apenas: a de ser exato na exposição dos fatos, o que obrigatoriamente conduz o cineasta a um desafio - que podemos bem enxergar como um jogo - caracterizado pela conquista e pelo ajuste da expressão indispensável. O que impressiona no caso de Flynn, porém, é que esse olhar a princípio tão impiedosamente preciso sobre o comportamento do ator é também capaz de admitir contradições: fluidez, paroxismos, enigmas insondáveis, pontos de vista alternantes e paradoxais. Seu método é simples, e extraordinário em sua simplicidade: Flynn faz com que a mecânica infalível da câmera se choque às palpitações do ator no momento em que ele é surpreendido pelas suas próprias ações. Antecipando em uns bons 15 anos o cinema de Michael Mann, Flynn obteve deste método filmes de uma vitalidade invejável, ainda hoje não superada. Desta vitalidade, dos seus frutos e de seus esforços, Na Solidão do Desejo propõe uma imagem inesquecível.

Como Matei Jesse JamesNot WantedO Último GolpeAnjos do PecadoAcossadoOssessioneToutes les nuitsO Solar de DragonwyckA Maldição do DemônioAssalto à 13ª DPDillingerO Pássaro das Plumas de CristalO Menino dos Cabelos VerdesO Mensageiro TrapalhãoSinais de Identificação: NenhumDe Punhos CerradosCidadão Kane e Infância Nua, o primeiro longa-metragem de John Flynn é já na sua origem uma estréia prodigiosa. Aos 35 anos, 9 dos quais de experiências atrás das câmeras, Flynn inicia sua trajetória com uma obra moderadamente reveladora, de uma maturidade tonal e formal extraordinária, e que antecipa a dramaturgia de seus filmes, pelo menos da maior parte dos 11 que tive a chance de assistir, e principalmente de dois dos quatro que considero suas obras-primas (A Marca da Corrupção e Scam).
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A correta direção do olhar do ator é sem dúvida alguma a culminação do trabalho de toda mise en scène. Trata-se de uma conquista furtiva que escapa ao controle da simples realização, exigindo do diretor uma fidelidade, uma generosidade, uma entrega consciente que ultrapassa em muito os traços demiúrgicos que costumamos, por força de hábito ou simples acomodamento, relacionar ao seu papel. Como disse recentemente Inácio Araujo sobre Kuhle Wampe, “o mais interessante não é a dramaturgia, nem a ficção (...) mas as cenas em que se percebe o registro de um modo de viver, de pensar e de agir”. O que nos é dado a ver nos primeiros vinte minutos de Na Solidão do Desejo não é outra coisa senão essa verdade revelada em cada gesto, cada movimento, em todas as nuances e principalmente na pompa do orgulho que Rod Steiger carrega consigo, ou ainda na forma como a câmera de Flynn confina, através de ângulos bastante cerrados, as trajetórias do corpo de Steiger em espaços que parecem ora encalacrá-lo, ora liberá-lo. Nada disto é arbitrário; é, aliás, do próprio assunto do filme que trata essa decupagem, e não surpreende vermos o corpo de Steiger um pouco mais livre desta câmera que o enclausura logo após o primeiro contato com o soldado John Phillip Law.

O mínimo que se pode dizer da direção de Flynn nestes momentos é que, mais do que fazer justiça ao ator genial de A Grande ChantagemRenegando o Meu SangueAl Capone e Quando Explode a Vingança, ela estabelece claramente o jogo de que falei acima, tanto no ritmo quanto na aptidão em retratar o drama de uma solidão. O classicismo da decupagem é apenas exterior: a maneira como a floresta que cerca o acampamento militar (no qual o sargento Steiger desempenhará seu novo ofício) é implicada pelos planos gerais que acompanham o jipe que traz o sargento, no exato momento em que atravessa a guarita, planos que mais tarde pontuam o discurso de apresentação de Steiger aos seus novos soldados; essa maneira, dizíamos, reflete a consciência de quem sabe como e para onde a dramaturgia do seu filme se encaminhará narrativamente. Antes de elevar-se aos gestos deflagradores com os quais seus personagens se vêem encurralados, Flynn fornece aos seus atores um palco. É unicamente isso o que faz a mise en scène: auxiliar a recepção de um sentimento intrínseco ao drama pela forma, desimpedi-la de quaisquer empecilhos, e nada mais.

Esse sentimento é acolhido por um olhar perspicaz, incapaz de se afastar, por exemplo, daquilo que completa e torna humano o personagem de Steiger - a saber, suas falhas. Seja enquanto claramente manipula o efetivo do batalhão que comanda, quando submete a si e aos outros à aflição, ou nos instantes reveladores em que é incapaz de controlar sua vontade de dominação sobre o personagem de Phillip Law, entendemos que se trata de um espírito forte, cujo enorme sofrimento não esconde a impressão dolorosa de uma paixão excessiva. Diante das nossas fraquezas, o equilíbrio daquele que mostra um homem que deixa para trás suas próprias sombras - eis algo suficientemente raro para merecer a nossa atenção, a ponto de fazer com que nós prontamente requisitemos a do leitor.
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Porque o cinema, convém dizer, não é moderno nem clássico, nem arcaico nem inovador, nem vanguarda nem retaguarda. Ele é tudo isso ao mesmo tempo e nada disso individualmente. Individualmente, o cinema é um adulto, a idade adulta da arte (Felipe Medeiros retornará à questão proximamente). Ao vermos Rod Steiger descendo do trem que o leva à estação da cidadezinha onde passará seus últimos dias, segurando com uma das mãos os documentos com as suas ordens e com a outra a mochila na qual deve carregar todos os seus pertences, olhando rápida e penetrantemente para um vazio que o resto do filme se ocupará em preencher, não há como não nos darmos conta de que o cinema é isto: “uma ciência, a mais exata das ciências humanas. Ela nos ensina que o homem não possui destino, que a cada instante ele é livre, que cada fato, cada ação pode determiná-lo completamente se sabe sentir, se sabe ver.”[1]

Nota:

[1] Alexis Klémentieff, Losey, por Pierre Rissient. Éd. universitaires, coll. “Classiques du cinéma”, 1966, p. 54.

Texto original em 
http://focorevistadecinema.com.br/FOCO2/andrade-solidao.htm

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "Na Solidão do Desejo" de John Flynn

Neste domingo dia 4, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Na Solidão do Desejo", primeiro dos três filmes de John Flynn que serão exibidos. O ciclo contará ainda com "A Quadrilha" (11/09) e "A Outra Face da Violência" (18/09). Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Na Solidão do Desejo" de John Flynn

França, 1952. Um recém-chegado Sargento se dirige ao Campo Bernod com ordens de assumir seu novo posto. Veterano da Segunda Guerra e condecorado por isso, o severo militar de meia-idade será responsável por incutir disciplina em indolentes soldados pertencentes a uma companhia um tanto desordenada. Entretanto, lidar com crescentes sentimentos obsessivos de afeição será o maior desafio da longa carreira militar do experiente Sargento.

Serviço:
04 de dezembro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: Três filmes de John Flynn


"A inteligência não é mais rara no cinema que em outros lugares, mas é suficientemente rara para ser digna de comentário sempre que se manifesta. De Na Solidão do Desejo a Testemunha Mortal, a obra de Flynn se constitui um documento vivo sobre a maneira pela qual foi percebendo, delimitando, eliminando, apurando e resolvendo a questão, precisamente, da inteligência.Filmes como A Marca da Corrupção e Scam, onde cada gesto é dirigido de modo a revelar a inteligência dos personagens compostos por intérpretes da fluência de James Woods e Christopher Walken, não apenas são raros como indispensáveis: estar atento à cena e dela exprimir um sentido, um afeto (coisa ainda mais rara que a primeira, e que no final das contas separa o talento da vulgaridade), o abreviamento e a essencialidade na distribuição dos detalhes de sua criação, é exatamente o que Flynn persegue. 
(The sergeant, 1968/EUA – 108 min. Com: Rod SteigerJohn Philip LawLudmila MikaëlFrank Latimore)
França, 1952. Um recém-chegado Sargento se dirige ao Campo Bernod com ordens de assumir seu novo posto. Veterano da Segunda Guerra e condecorado por isso, o severo militar de meia-idade será responsável por incutir disciplina em indolentes soldados pertencentes a uma companhia um tanto desordenada. Entretanto, lidar com crescentes sentimentos obsessivos de afeição será o maior desafio da longa carreira militar do experiente Sargento.

11/12: A quadrilha


(The outfit, 1973/EUA – 103 min. Com: Robert DuvallKaren BlackJoe Don BakerJoanna CassidyTom Reese)
O experiente assaltante Earl Macklin (Duvall) acaba de sair do cárcere. Mal tem tempo de desfrutar sua liberdade em uma pocilga à beira da rodovia juntamente com sua companheira Bett (Karen Black), logo recebe a desagradável notícia do assassinato de seu irmão. Para piorar, um sujeito contratado tenta matá-lo na mesma noite. Vasculhando o submundo do crime para chegar aos responsáveis por trás desses atos, Macklin contará com a ajuda de seu parceiro de assaltos, Cody (Joe Don Baker), que provisoriamente mantém um pequeno restaurante.

18/12: A outra face da violência
(Rolling Thunder, 1977/EUA – 95 min. Com: William Devane, Tommy Lee Jones, Linda Haynes, James Best, Dabney Coleman)
Ao voltar do Vietnã, o Major Charles Rane é recebido como herói em sua cidade, sendo premiado por reconhecimento com um carro e uma maleta com moedas de prata. Mexicanos, próximos dali, ao saberem pela mídia, vão atrás do major para roubá-lo. Nesse processo, matam sua mulher, filho e danificam permanentemente sua mão direita. A sede por vingança é então enraizada.
Serviço:
Todo domingo
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Mais luz


A Brighter Summer Day
 é o quarto filme de um cineasta taiwanês chamado Edward Yang. Não é, no entanto, um desconhecido, visto que seu primeiro filme, That Day On The Beach foi descoberto aqui mesmo em 1984. É, todavia, uma revelação, já que A Brighter Summer Day se impõe, pela amplidão de seu material romanesco e o refinamento de sua mise en scène, como um afresco intimista tão belo quanto os filmes de Hou Hsiao-Hsien. O filme de Edward Yang mostra que a ideia de um cinema jovem está ainda bem viva. Ainda bem.        

A Brighter Summer Day. É a adolescência, a imaturidade , os ritos de passagem, de iniciação, grandes temas eternos das nouvelles vagues, que filma o cineasta taiwanês Edward Yang, menos conhecido que o seu compatriota Hou Hsiao-Hsien, no seu quarto filme, A Brighter Summer Day. Um rapaz de quinze anos, Xia’o Si’r, é confrontado de repente pela verdadeira vida. Em Formosa, no começo dos anos 60, gangues rivais pilham os bairros, o rock’n’roll está no seu auge e a juventude tem o futuro à sua frente. Há certamente a autoridade, esta dos professores, dos pais, mas não importa! Suavemente, Xia’o Si’r, o herói do filme, vai ser lentamente levado, ao fim de um percurso emocionalmente muito intenso, até a tragédia. Entrementes, Xia’o Si’r terá encontrado Ming pela qual apaixona-se loucamente e Ma que se torna seu melhor amigo. A traição, a política e também o crime se misturarão à história. É sobre amor, amizade, rivalidade, violência que se trata. Nós compreenderemos que A Brighter Summer Day é um grande filme romanesco, que dá a ver, sem explicação, sem gordura psicológica, sentimentos, atos, trajetos, o tempo.            

O que é novo comporta em seu seio uma parte obscura. Obscura, não porque ela é incompreensível, mas porque, apesar do seu brilho, ela é impalpável, secreta, pois ela se dissimula ao ponto de que se nós a entrevemos, percebemos com dificuldade que son infracassable noyau de nuit[1] brilha de um esplendor muito particular. A beleza de A Brighter Summer Day é dessa ordem, tanto evidente como clandestina. Aliás, a primeira sequência do filme está inteiramente sob o signo da clandestinidade. Nós estamos em um estúdio de cinema com um metteur en scène e uma atriz. A câmera se eleva lentamente em direção à parte superior (eco, talvez, de um famoso plano de Cidadão Kane) onde estão escondidos dois rapazes que observam a cena. Pouco tempo depois, eles serão perseguidos, em uma cena engraçada, por ter tido acesso àquilo que não deveriam ver. A tensão do olhar é ainda mais forte, de maneira que o olho é submetido à lei da invisibilidade ou, pelo menos, da dissimulação, do que se esconde. Para Edward Yang, o cinema continua a ser uma experiência fundamentalmente clandestina, uma aventura do olhar que gira em torno de um batimento primitivo, de uma cintilação original. A Brighter Summer Day seria mais uma variação sobre o cinema no cinema? Não exatamente. Antes um filme que inscreve literalmente dentro de si o funcionamento da captação da luz, do seu processamento pela projeção, de sua absorção pelo espectador.           

Retornemos ao primeiro plano do filme: uma lâmpada acesa no centro do quadro brota da escuridão. Faça-se a luz! Essa claridade, intensamente luminosa e, no entanto, tão tênue, tão frágil, imprime o seu selo indelével nas três horas excepcionais do filme de Edward Yang. Uma lanterna servirá, aliás, de objeto de transição e parcial – objeto de fetichismo e de troca, exatamente parecido com o cinema, projetando de uma só vez um feixe de luz que ilumina uma parte da cena. Diversas vezes, nós procuraremos um interruptor, nós acenderemos velas, enquadraremos uma lâmpada logo acima de um bilhar, faróis iluminarão a noite, um fósforo romperá de repente a escuridão ou, ao contrário, a luz se apagará bruscamente. Esse extraordinário trabalho sobre a luz – falaríamos mais precisamente de brilho – testemunha de uma concepção geral do cinema baseada na lacuna, onde aquilo que falta é tão capital quanto o que está, tanto no plano da visão quanto no da narrativa. Pela sua atração pela opacidade, Yang propõe uma experiência de cegueira mais potente e, acima de tudo, menos metafórica que aquelas nas quais nós fomos imersos esses últimos meses (em particular em Os Amantes da Ponte Neuf ou em Até o Fim do Mundo). Nenhum personagem cego em A Brighter Summer Day: é o próprio cinema que tende à cegueira para nos conduzir com precisão a uma regeneração do olhar, ao ponto que esse filme me fez pensar na famosa frase de Mizoguchi: “é preciso lavar os olhos entre cada olhar.” O que Yang pratica admiravelmente, inventando para cada plano, um quadro, uma rede de sensações, uma aliança de cores, um espaço-tempo que trabalha nosso olho internamente. Logo, a lacuna: o que reside no campo da visão está, por vezes, no limite da invisibilidade, em um canto do quadro, ou envolto por fragmentos, pela claridade, como nessa sequência de acerto de contas onde a violência se reduz a faixas, turbulências, relâmpagos que torcem a tela, impedindo que o espectador seja pego na armadilha do seu próprio gozo. Yang vai filmar até mesmo o reflexo de dois corpos, não em um espelho, mas em uma porta pintada de branco. Plano-limite que beira o maneirismo, o caráter estrito do pictórico, mas que in extremis lhe escapa ao reenquadrar esses mesmos personagens, fantasmas que voltam a ser humanos, de repente, ao descer a escada. Do mesmo modo, a horizontalidade do quadro é frequentemente quebrada por uma vertical, por uma porta, uma parede, um rodapé, uma abertura (Yang filma frequentemente de um cômodo para o outro), inscrevendo um quadro dentro do quadro e, consequentemente, um esconderijo no plano. Nós estamos, naturalmente, no oposto absoluto do voyeurismo profissional, do exibicionismo declarado. Nós podemos pensar em Ozu, com o qual Yang (que o prefere, talvez, a Naruse) partilha um gosto pronunciado pela frontalidade, mas a diferença entre os dois, reside no fato de que o cineasta taiwanês trabalha essencialmente nos planos-sequências e seus corolários, a profundidade de campo, de tempo, o fora de campo (ele parece, algumas vezes, surpreendentemente próximo da pintura holandesa), enquanto que Ozu visava antes de tudo a superfície, quase a natureza morta (outra maneira de chegar à imagem-tempo descrita por Deleuze). Fora de campo, que em Yang é externo, mas também, nessa lógica do que está escondido, interno ao plano (uma estética do canto). Fora de campo sonoro sobretudo, que nos faz ouvir tiros, ruídos diversos, fragmentos de conversas, o trovão, palavras de ordem, toda uma comunidade de sons, tratada da maneira mais democrática do mundo, que contribui para o refinamento da percepção criada por Yang. Jamais, no entanto, A Brighter Summer Day cai na armadilha do formalismo, sendo nutrido pela palpitação da vida, a sensação do tempo que passa, o sentimento pungente da existência.          

A Brighter Summer Day não é um filme em linha reta, muito menos um filme sinuoso, em vez disso um quebra-cabeça que se ordena pouco a pouco ou, melhor, um tecido sobre o qual estão trançados motivos que convergem paralelamente em um mesmo ponto, um jogo de xadrez no qual as peças seriam deslocadas simultaneamente por uma mão invisível e onde nós ignoraríamos a posição das peças entre si até o fim da partida. Nós poderíamos falar aqui de dramaturgia de agregados, de maneira que Yang dá o sentimento de realizar paralelamente blocos de tempos heterogêneos, juntando-os com um senso de elipse tão surpreendente quanto natural. Não se trata de processos de narração, de montagem, mas simplesmente de estados. Há certamente um personagem central, Xia’o Si’r, cuja importância não cessa de crescer à medida que o filme avança. Esse, adolescente próximo dos personagens de Hou Hsiao Hsien (por exemplo, Poeira no Vento), faz a ligação entre diversos níveis de realidade. Três grandes polos: a escola, a família, a delinquência que remete a uma outra triangulação geográfica, política, histórica, esta de Taiwan, polarizada, simultaneamente, pela China Popular, pelo Japão e pelos EUA. Yang trabalha conjuntamente o individual e o coletivo, resolvendo o conflito muitas vezes visível em outro lugar (na França, por exemplo), entre o intimismo e a História. A Brighter Summer Day é ao mesmo tempo íntimo e histórico, do mesmo modo que é simultaneamente clássico e moderno, violento e contemplativo (um filme yin e yang, por assim dizer!). A América é onipresente, pela simples razão de que ela é um elemento constitutivo da identidade de Taiwan, como também da cinefilia de Yang. O próprio título, A Brighter Summer Day, além da sua alusão à luz (brighter), é o fragmento de uma canção célebre de Elvis Presley, Are You Lonesome Tonight, encarnação do imaginário americano, que é como a sombra luminosa do filme. Na passagem, a palavra exata empregada por Presley, é bright e não brighter: o mal entendido, a decalagem da palavra define perfeitamente a relação com a América, um sonho (rêverie) à distância, uma fantasia pura, um deslocamento sutil, uma visão oblíqua. Outra sequência mostra uma cena de paquera (a palavra é adequada? Não tenho certeza, a cena é tão bela e emocionante que nos faz pensar no seu equivalente em Mes Petites Amoureuses de Eustache) em um cinema onde quatro adolescentes, duas garotas, dois rapazes, vieram ver Rio Bravo. Pelo menos, nós o adivinhamos já que Yang jamais filmará o ecrã, preferindo nos fazer ouvir a banda-sonora, pontuada por tiros da grande cena de tiroteio no fim do filme. Cena mítica, constitutiva de toda uma cinefilia, essa da geração de Edward Yang (que nasceu em 1948). A câmera enquadra os olhares e as mãos, capta a tensão e afirma, de passagem, sem insistência, sem ostentação, em oposição a toda neurose cinefílica, a emoção da descoberta do cinema ligada àquela do amor. A América ainda, com os gêneros: particularmente, film noir e melodrama que são frontalmente abordados, mesmo se eles são tratados de maneira nitidamente mais contemplativa que em qualquer filme americano, incluindo Nicholas Ray, no qual pensamos aqui. A Brighter Summer Day é Juventude Transviada ou Caminhos Perigosos, guerra de gangues adolescentes que exige, além da melancolia, o fluxo do tempo e a dúvida no momento da ação (a passagem ao ato é problemática e, em especial, a relação com as armas de fogo). Como na grande sequência central onde se cristalizam, o tempo de um concerto e por uma deslumbrante simultaneidade, as múltiplas dimensões do filme: romance de iniciação, história de amor, film noir, comédia musical...             

O outro polo é a China, imagem virtual que trabalhada pelos pais. É o exílio, o deslocamento, mas também a obsessão paranoica pelo comunismo. O pai de S’ir, que veio de Shanghai, acabará por ser acusado de simpatizar com o comunismo pelas autoridades taiwanesas, da mesma maneira que seu filho é interrogado pela burocracia do liceu, assim induzindo um vínculo sutil de filiação entre os dois. Pois A Brighter Summer Day está, sem dúvida, sob o signo da memória. Primeiramente, porque a China é essa memória escondida, autêntico fora de campo não somente espacial, mas acima de tudo, temporal. Em seguida, porque o filme se passa em 1960. Sem o mínimo passadismo: contudo, uma sensação fugaz lança um véu sobre a imagem. É a melancolia, o sentimento que algo de irremediável aconteceu, um passado filmado absolutamente no presente e, no entanto, inscrito definitivamente nos arcanos da memória. Nesse sentido, o personagem-chave do filme é talvez o marinheiro, figura fitzgeraldiana, chefe de gangue supremamente elegante e, entretanto, tão frágil, que volta sem avisar no meio do filme e desaparece sem mais nem menos um pouco mais tarde, em uma cena surpreendente de assassinato. Personagem tutelar e secreto que assombra literalmente, através de sua beleza opaca, os outros personagens e o filme em seu conjunto. Eu falei, mais acima, do sentimento pungente da existência; é exatamente disso que se trata aqui, da sua insignificância e sua fulgurância, da sua tragédia e de sua banalidade, à semelhança dessa sequência final onde, após o clímax (que eu não lhe revelarei), uma fita na qual está gravada uma versão de Are You Lonesome Tonight, destinada a Elvis Presley, terminará finalmente em uma lixeira.     

Thierry Jousse                                                                                                                 

[1] Ndt: Referência a André Breton que, na ocasião de uma entrevista radiofônica, lança essa sentença: “É partindo desse ponto de vista que o surrealismo fez de tudo para eliminar os tabus que impedem que nós tratemos livremente o mundo sexual e de todo esse mundo sexual, incluindo as perversões – mundo ao qual eu fui levado a dizer, mais tarde, que ‘em despeito às pesquisas memoráveis que operaram Sade e Freud’, não cessou, que eu saiba, de opor a nossa vontade de penetração do universo seu indestrutível núcleo de escuridão (son infracassable noyau de nuit).”   
(O texto Plus de Lumière foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 454, em abril de 1992. Traduzido por Letícia Weber Jarek.)