Por Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Rolling Thunder).
1977. American International Pictures (95 minutos). Produção: Norman T. Herman
para a T.B.C. Film. Produção executiva: Lawrence Gordon, Samuel Z. Arkoff.
Roteiro: Paul Schrader e Heywood Gould, baseado em argumento de Paul Schrader.
Fotografia: Jordan Cronenweth (DeLuxe & P/B). Música: Barry De Vorzon.
Cenografia: Steve Berger. Montagem: Frank P. Keller. Elenco: William Devane
(major Charles Rane), Tommy Lee Jones (Johnny Vohden), Linda Haynes (Linda
Forchet), James Best (Texano), Dabney Coleman (Maxwell), Lisa Richards (Janet),
Luke Askew (Automatic Slim), Lawrason Driscoll (Cliff), James Victor (Lopez),
Cassie Yates (Candy), Jordan Gerler (Mark), Jane Abbott (irmã), Jerry Brown
(patrulheiro #1), Jacque Burandt (Bebe), Anthony Castillo (menino de rua),
Charles Escamilla (T Bird), Rudy T. Gonzales (garçom), Robert K. Guthrie
(repórter #3), Ray Gutierrez (Tex-Mex), James N. Harrell (vovô), Randy Herman
(Sanchez), Michael Nakamura (o torturador), Pete Ortega (Melio), Paul A.
Partain (cunhado), James Conner Pribble (patrulheiro #2), Cheyenne Rivera
(Gato), Carol Sowa (Betty Ann), Robert Raymond Reyes (repórter #2), Arturo R.
Tamez Jr. (garçom), Bob Tisdale (sr. Williams), Autry Ward (Texano #2), West
Ward (jogador de cartas), William Vance White (Bob), Michael R. Witte (repórter
#1), Alan Wong (Billa).
O metteur en scène
O metteur en scène
Existiram e existem basicamente dois tipos de cineastas: os desbravadores do
dispositivo e os dramaturgos da tela. (Há também os meros consumidores de
signos, mas esses não deveriam ser considerados cineastas.)
Os cineastas desbravadores seriam, por exemplo, Rossellini, Hitchcock,
Eisenstein, Stan Brakhage, Orson Welles, o Jean Rouch de Gare du Nord ou Os
Mestres Loucos, o Kiarostami de Close-Up ou Através
das Oliveiras. O que esses cineastas têm em comum, apesar das disparidades,
é que todos eles se empenharam em levar ao limite as possibilidades da
máquina-cinema, cada qual a seu modo. Rossellini pelo registro bruto do real
como forma de perceber a “respiração do divino”. Hitchcock pela capacidade
cortante de fixar e manipular a atenção do espectador através do olhar da
câmera. Eisenstein pelo poder de ubiqüidade de seus mil olhos, pela maneira
obsessiva de calcular cada milímetro do quadro, cada golpe da montagem.
Brakhage pela intervenção direta no material sensível da película e pelo
convite a estados-limite da percepção. E por aí vai.
Preminger, Mizoguchi, Ophüls, Zurlini, Tourneur, John Ford, King Vidor, Raoul
Walsh. Esses já não tiveram a mesma ambição, não quiseram pôr em prática
nenhuma utilização extrema da câmera ou da montagem, assim como não levaram
adiante nenhuma utopia estimulada pelas propriedades intrínsecas do cinema.
Estavam, antes, absorvidos na tarefa de figurar corpos num meio físico, para
daí extrair um drama e exprimir um assunto segundo uma exigência de ordem
cênica. Em outras palavras, o que eles estavam empenhados em levar ao limite
não era o cinema enquanto dispositivo - fosse ele um dispositivo sensível à
aleatoriedade e à memória lábil das coisas, fosse um instrumento rigoroso de
seleção e captação de aparências significantes -, mas antes o conjunto de
técnicas e elãs que lhes permitia encarnar um sentimento do mundo através das figuras
de corpos de atores fotografados em seus movimentos e em seu meio, algo a que
costumamos chamar mise en scène.
Podemos dizer, sem desmerecer nenhuma das partes, que os primeiros são os
grandes inventores de formas do cinema, ao passo que os segundos são
“simplesmente” os grandes cineastas. Rossellini, Hitchcock e Eisenstein foram
mais inventores que Preminger, Mizoguchi e Ophüls. Mas Preminger, Mizoguchi e
Ophüls foram mais metteurs en scène que Rossellini, Hitchcock
e Eisenstein.
É neste grupo, dos grandes metteurs en scène, que devemos incluir John Flynn.
É neste grupo, dos grandes metteurs en scène, que devemos incluir John Flynn.
O filme
Uma grande obra de arte nos obriga a falar da arte e não só da obra. Daí talvez
a necessidade de dar toda uma volta e propor todo um sistema tão-somente para
começar a falar de Rolling Thunder, um filme que, aliás, não dá
volta nenhuma, vai direto ao ponto, um dos filmes mais retilíneos já
feitos.
Rolling Thunder começa com a chegada de Charles Rane (Willian
Davane) e Johnny Vohden (Tommy Lee Jones) a um aeroporto militar em San
Antonio, Texas, 1973. Eles retornam do Vietnã, onde foram prisioneiros de
guerra e sofreram as piores torturas. “San Anton, it’s really good to see
you...”, diz a canção com aquela “tristeza ensolarada” que marcou os anos 70.
Uma multidão aguarda os dois heróis de guerra. Johnny confessa que não sabe
como vai encarar aquelas pessoas. “Bote seus óculos escuros”, sugere Charles. A
cena no aeroporto é puro mal-estar. Charles reencontra sua mulher acompanhada
de outro homem, Cliff, um policial mais novo que ele. A maneira como Cliff o
cumprimenta basta para sacarmos o que está rolando. Já o filho pré-adolescente
de Charles mal o reconhece após tanto tempo. A família já era. Johnny, por sua
vez, dá um beijinho meio protocolar na mulher, depois cumprimenta o irmão, dá
um meio-abraço no pai. O céu está nublado, poças d’água se espalham pelo chão
como a não deixar esquecer uma tempestade recém estiada.
O que Charles experimenta nessa volta para casa não é muito diferente do que o
personagem de Robert De Niro vive ao também retornar do Vietnã em O
Franco Atirador, de Michael Cimino: um sentimento de total e irreparável
inadequação ao mundo que antes reconhecia como seu, mas que agora lhe é
impraticável e estranho. Ninguém consegue se aproximar do herói para saber o
que se passa, tentar reintegrá-lo à vida social. Há um abismo. A experiência do
inferno é impartilhável, qualquer tentativa de entendê-la, por parte de quem
não a viveu, soa ridícula. Por exemplo: Cliff quer abrir um diálogo com
Charles, demonstrar que entende o estado em que ele se encontra, que imagina as
coisas pelas quais ele passou. Charles o desafia: “amarre meus braços às minhas
costas com essa corda e puxe meu tronco com toda força”. “Mais alto! Mais
alto!”, ele pede com um certo ar de sadomasoquismo. Cliff não suporta a
“brincadeira” e interrompe. Charles diz que a melhor maneira de derrotar o
torturador é aprender a gostar da tortura. Essa cena basta para sabermos que
Cliff não vai mais importuná-lo com papinhos de falsa aproximação.
O interior da casa de Charles é acentuadamente escuro, não só na cena noturna
em que ele e sua mulher conversam, ainda no início, mas sobretudo na cena
diurna em que ele chega em casa e é abordado por um bando de delinqüentes que
querem levar seu dinheiro (ele recebeu, numa constrangedora cerimônia de
homenagem bem afeita ao mau gosto texano, uma mala cheia de moedas,
contabilizando pouco mais de 2.500 dólares). Na cena da invasão, o bando
barbariza: mata mulher e filho de Charles e ainda mói seu braço no triturador de
lixo da pia da cozinha. Ele também recebe um tiro, mas sobrevive - não se pode
matar quem já está morto. Um dos aspectos mais interessantes do filme é que
Charles era dado como provável morto antes de retornar da guerra, já que não se
tinha notícias dele durante o período em que foi feito prisioneiro. Ele mesmo
se refere à época pré-prisão como “o tempo em que estava vivo”, admitindo que o
que sobrou dele foi só uma energia obscura. Quando retorna, portanto, tudo que
lhe ocorre é refratado por esse campo de força negativo.
Importante notar que o elemento utilizado pelos bandidos para deixá-lo aleijado, o triturador da pia, simboliza de certo modo o conforto e a praticidade da famosa “cozinha americana”, até hoje considerada o modelo ideal para as casas burguesas. A destruição vem de dentro da casa. Nenhum enquadramento faz questão de sublinhar isso, nenhum plano escreve na tela essa constatação. Estamos longe de um filme-tese ou de um discurso sobre qualquer coisa. Tudo está no poder de imantação da câmera - imantação ao mal. Poucos filmes souberam expressar tão bem, sem outro recurso que não a mise en scène, o que foi essa idade das trevas norte-americana representada pelo aftermath do Vietnã.
Importante notar que o elemento utilizado pelos bandidos para deixá-lo aleijado, o triturador da pia, simboliza de certo modo o conforto e a praticidade da famosa “cozinha americana”, até hoje considerada o modelo ideal para as casas burguesas. A destruição vem de dentro da casa. Nenhum enquadramento faz questão de sublinhar isso, nenhum plano escreve na tela essa constatação. Estamos longe de um filme-tese ou de um discurso sobre qualquer coisa. Tudo está no poder de imantação da câmera - imantação ao mal. Poucos filmes souberam expressar tão bem, sem outro recurso que não a mise en scène, o que foi essa idade das trevas norte-americana representada pelo aftermath do Vietnã.
No hospital, depois do trágico assalto, Charles recebe um braço mecânico com um
gancho na ponta. Essa prótese se torna a marca registrada do filme, um apêndice
mecânico que combina perfeitamente com a perda de expressão do personagem, a
neutralização de suas faculdades emotivas. A performance de William Devane é
extraordinária: seu personagem encarna a frieza da morte. Ele só tem
agora uma coisa a fazer: caçar os homens que o assaltaram.
Para tal, reencontra Johnny, que imediatamente o acompanha na missão. De
repente fica muito claro para eles o que deve ser feito. A certeza clareia o
caminho, e o filme se torna límpido e conciso, contrariando a lógica das
veleidades e das motivações imprecisas que permeia a literatura sobre o cinema
americano dos anos 70.
O roteiro é de Paul Schrader, o que ajudou a tornar as comparações com Taxi
Driver inevitáveis. Diz-se que Schrader fez esse roteiro a partir de
sobras e interditos do filme de Scorsese. Numa das cenas que Flynn não chegou a
filmar, o roteiro de fato narra uma ida de Charles a um drive-in onde
ele assiste a Garganta Profunda e no carro ao lado há “um
baixinho” com uma lata de cerveja na mão: “Ele usa uma pálida camiseta verde e
um casaco do exército. Aqueles que leram outro roteiro meu intitulado Taxi
Driver irão reconhecer esse homem. Seu nome é Travis Bickle”, diz a
página 22 do script de Schrader. Rolling Thunder seria
então um Taxi Driver que troca os becos escuros de Nova York
pelo sol do Texas somente para se revelar um filme ainda mais ensombrado e
pessimista que o anterior. Mas o roteiro foi reduzido ao seu núcleo duro, sem
os desperdícios que Schrader tanto preza e que Scorsese conseguira transformar
em sua matéria dramática principal, mas que em John Flynn, cineasta da retidão,
fariam pouco ou nenhum sentido.
Charles e Johnny são heróis distantes, embora não indiferentes. Eles não têm
aquela vitalidade nos gestos e nas réplicas dos personagens de Richard Widmark
em Anjo do Mal (1953) ou Tormenta Sob os Mares (1954),
de Samuel Fuller. Há uma estranha lentidão no tiroteio épico que encerra Rolling
Thunder (desfecho que Flynn já havia ensaiado em The Outfit e
irá retomar em Best Seller e Fúria Mortal). A
Segunda Guerra acelerou o fluxo sangüíneo dos heróis de Fuller. O Vietnã
congelou os de Flynn. Publicado originalmente em http://focorevistadecinema.com.br
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