por Taís Cardoso
My
mind/Is upside down/I was standing on/Too solid ground
Everyday/I
grew blinder/Oh I thought I was so strong/
I
didn't need nobody's help
Oh but the strongest river/Can't flow up hill/Satisfied/
That's
what I thought I'd be
I kept on living in my own dream/
In
my own dream[1]
Karen Dalton, In my own dream
O primeiro plano de Wanda exibe montanhas de carvão cinzentas que dividem o quadro com um céu azul desbotado. A câmera percorre devagar a paisagem árida até encontrar uma retroescavadeira que movimenta um monte de rejeito que tem três vezes a sua altura. O ruído da máquina segue contínuo como o barulho do mar quando a imagem corta para uma pequena casa de madeira. Dentro da casa, há uma senhora sentada numa poltrona com um terço nas mãos. Ela olha pela janela para o que acontece lá fora, como quem olha pra coisa alguma. Uma cruz e a foto de um jovem capitão num porta retratos são seu plano de fundo, seu altar. Num plano um pouco mais aberto, vemos outra cômoda com objetos amontoados em cima, é possível distinguir entre eles uma bailarina de porcelana, um relógio e uma latinha de cerveja. O relógio marca 7 horas, um bebê de fraldas cambaleia em volta da poltrona até nela se acomodar.
Quando entra o choro estridente de um outro bebê que não vemos, surge de costas uma loira de camisola e ombros pesados, esfregando seus olhos que hesitam em procurar o responsável pelo barulho. É mais um dia que começa. Quando aparece de pé e de frente, a mulher já tem o bebê que chorava nos braços e garrafinhas de vidro de Coca Cola vazias compartilham com eles uma cozinha apertada. Ela abre a geladeira e oferece café a um homem que chama de querido, que a ignora fazendo careta e sai de casa batendo a porta.
Tudo sugere que Wanda irá retratar a vida desta mulher cansada, oprimida por sua claustrofóbica realidade de mãe de família. Afinal, ela é uma entre tantas que preparava as refeições, lavava as roupas e a louça, limpava a casa e cuidava dos filhos para que seu homem estivesse disponível para trabalhar na indústria. Seus feitos não foram registrados pelos jornais ou pelos arquivos das empresas, já que suas tarefas eram uma questão pessoal, e nelas havia nada relevante para ser compartilhado publicamente, nem melhorias a serem reivindicadas.
Mas aquela não era Wanda, essa é a vida que ela irá se negar a viver.
Logo depois que o homem bate a porta, Wanda aparece debaixo de um lençol no sofá. Em comum, as duas mulheres, além de serem irmãs, têm o fato de pertencerem à classe operária da região da Pensilvânia, nos Estados Unidos, conhecida pela prática da mineração. Um desses lugares onde o capitalismo se instala para extrair todos os recursos naturais através do uso de maquinário e mão de obra pesada, para depois de alguns anos se retirar.
Fora da casa, a câmera se afasta e vemos de longe uma figura minúscula que circula lentamente entre as montanhas de carvão. A roupa clara reforça a inadequação das suas intenções naquele ambiente que a toma. Não há trilha sonora. Wanda caminha para outro lugar.
Como dito por Virginie Despentes, “a revolução feminista da década de 1970 não provocou nenhuma reorganização no que diz respeito aos cuidados com as crianças. Muito menos à gestão do espaço doméstico”[2]. Trabalho feminino era sinônimo de trabalho voluntário e o que garantia a subsistência das mulheres era o compromisso com a família. Apesar dos homens terem algum tipo de vantagem política, ela vai dizer, que em alguma medida está enraizada na opressão feminina, essa vantagem tem um preço: “se os corpos das mulheres pertenciam aos homens, os corpos dos homens, em contrapartida, pertenciam, em tempos de paz, à produção ou, em tempos de guerra, ao Estado.”[3]
O marido de Wanda vai ao tribunal pedir o divórcio, alegando ao juiz que ela não cuida dos filhos. Ele precisa do divórcio porque quer se casar de novo e vai casar simplesmente porque as crianças precisam de uma mãe. Se alguém não cuidar dos filhos, ele não trabalha. A dependência é mútua.
A inadequação de Wanda mexe nessa estrutura. Ela não só não desfaz a acusação do marido como a reforça, dizendo ao juiz que as crianças ficarão melhor com o pai. Sua indiferença aos filhos, a apatia como lida com isso, é insólita. A ousadia de reconhecer e admitir que não serve para o papel, de colocar a possibilidade de viver outra vida na frente da imposição de ter que cuidar da família, é inesperada. Mas que vida seria essa?
Quem ela se torna quando renuncia às únicas funções, de mãe e de esposa, que é supostamente digna de cumprir? Quem ela se torna quando abdica dos contornos da casa e da família? Ela está, afinal, abandonando um direito ou um dever?
A agonia se intensifica na medida em que vai ficando mais evidente que Wanda não sabe, nem tem, para onde ir, o que não é motivo para impedi-la. Ela sai de cabeça baixa, vaga pela cidade com sua bolsinha branca e a roupa do corpo. Tenta trabalhar como passadeira num galpão em que trabalham várias outras mulheres, por onde ela passa para resgatar um dinheiro, e é recusada pelo patrão por ser lenta demais para a função. E assim ela segue com seu olhar sisudo e angustiado, com seu sorriso pueril. Para num bar até receber uma bebida de um homem a quem ela parece estar disposta a obedecer. Passa a noite com ele, que no dia seguinte foge dela.
Há em Wanda uma vontade de usufruir da vida, inconsequente na sua conjuntura. Com o pouco dinheiro que tem, ela toma cerveja e come sorvete. Ela é vaidosa, ela é bonita, sua feminilidade segue intocada, mas quando é deslocada de um contexto esperado, de um lugar considerado seguro para uma mulher, torna a tentação de julgá-la iminente. E talvez o filme trate justamente disso, de provocar nossa capacidade, nossas condições e nossas limitações, para compreender essa mulher.
Num dado momento, em outro bar, ela encontra outro homem, que mais pra frente se revela um ladrão de banco. Ele é tenso, ríspido, desagradável. É provável que tenha matado um homem que está estirado no chão atrás do balcão. É difícil saber se Wanda não nota ou não se importa de estar se tornando cúmplice de um crime, e ela pega a estrada com ele. Algo que ela prefere a voltar a vida previsível e condenada que deixou para trás. Haveria escolha?
Há um jogo duplo em Wanda, que foi escrito, dirigido e estrelado por Barbara Loden. É ao criar uma mulher que nega a sua condição sem ainda ter encontrado uma alternativa para a própria existência que Loden alça a condição de autora que nos conta sua história. A diretora chegou a dizer em entrevistas que Wanda representa o seu próprio estado emocional. Talvez o de alguém que tentava tomar as rédeas da própria vida, da própria história, em um mundo que não era favorável a isso.
O filme foi seu único longa-metragem e recebeu o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cinema de Veneza, em 1970. Dez anos depois, aos quarenta e oito anos, Loden morreu de câncer. Antes de ter escrito e dirigido um filme, numa época em que pouquíssimas mulheres faziam isso – chama atenção nos créditos finais o seu nome sozinho em meio a toda a equipe técnica composta por homens –, ela também foi atriz. Ganhou um Tony Ward por seu papel em “After the fall”, de Artur Miller, de 1964. Atuou em “Wild River” e “Splendor in the Grass”, ambos dirigidos por Elia Kazan, com quem se casou em 1968. Há relatos que afirmam que a relação entre Wanda e os homens no filme espelha a relação entre Loden e Kazan, algo que, considerando o histórico da indústria cinematográfica, não é nem um pouco difícil de acreditar.
Boa parte dos textos sobre ela fazem menção à entrevista de Marguerite Duras com Elia Kazan para a Cahiers du cinema. Na época, ele havia se tornado viúvo há pouco tempo e estava em Paris para relançar dois dos seus filmes, mas era de Loden que Duras queria falar, ansiosa para que Wanda chegasse ao público francês. “Eu acho que há um milagre em Wanda”, ela diz. “Normalmente há uma distância entre a representação visual e o texto, assim como o assunto e a ação. Aqui essa distância é completamente anulada; há uma continuidade instantânea e permanente entre Barbara Loden e Wanda.”[4]
Conforme Amy Taubin, Loden queria que os filmes de ficção se parecessem mais com os documentários[5]. Ela era fã de Andy Warhol e achava que o som “ruim” dos filmes dele, ao invés do som cristalino dos filmes de Hollywood, se aproximava mais da maneira como ouvíamos o mundo. É possível identificar seu apresso pela vida fora dos estúdios em seu filme que é muito bem sucedido no transito por diversas locações.
A inspiração para a personagem surgiu de uma notícia que ela leu sobre uma mulher que foi cúmplice num assalto a banco que deu errado. O homem morreu e a mulher foi presa. A isso Loden somou a manipulação das próprias emoções que deram vazão a uma personagem inquietante, profunda e muito íntima. Ela era claramente uma autora e tinha muito a desenvolver.
O filme ganhou status cult e hoje é celebrado por figuras como Isabelle Huppert e as irmãs Rodarte. Foram necessários anos de feminismo e de história para que um olhar como o seu que não apresenta soluções, mas sim se aproxima da zona cinzenta das coisas, fosse valorizado. Wanda nos perturba porque não é vítima, nem heroína, mas uma agente dentro das próprias circunstâncias.
Enquanto clamamos por algum tipo de recompensa que traga sentido aos atos de Wanda, Barbara Loden nos oferece seu filme que sobrevive no tempo e apresenta uma excelente oportunidade de discutirmos quem elas são no mundo.
[1] Minha mente/Está de cabeça para baixo/Eu estava pisando em/Chão muito sólido
Todos os dias/Eu ficava mais cega/Oh pensei que eu era tão forte/Não precisava da ajuda de ninguém/Oh mas até o rio mais forte/Não pode fluir morro cima/Satisfeita/Isso é o que pensei que estaria/Eu continuei vivendo no meu próprio sonho/No meu próprio sonho.
[2] Despentes, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: N-1, 2017. P. 19
[3] Idem, p. 22
[4] Ver em Taubin, Amy. Wanda: a miracle. 2019 https://www.criterion.com/current/posts/6251-wanda-a-miracle
[5] Idem