por Taís
Cardoso
My
mind/Is upside down/I was standing on/Too solid ground
Everyday/I
grew blinder/Oh I thought I was so strong/
I
didn't need nobody's help
Oh but the strongest river/Can't flow up hill/Satisfied/
That's
what I thought I'd be
I kept on living in my own dream/
In
my own dream
Karen
Dalton, In my own dream
O primeiro plano de Wanda
exibe montanhas de carvão cinzentas que dividem o quadro com um céu azul
desbotado. A câmera percorre devagar a paisagem árida até encontrar uma retroescavadeira
que movimenta um monte de rejeito que tem três vezes a sua altura. O ruído da
máquina segue contínuo como o barulho do mar quando a imagem corta para uma
pequena casa de madeira. Dentro da casa, há uma senhora sentada numa poltrona
com um terço nas mãos. Ela olha pela janela para o que acontece lá fora, como
quem olha pra coisa alguma. Uma cruz e a foto de um jovem capitão num porta
retratos são seu plano de fundo, seu altar. Num plano um pouco mais aberto,
vemos outra cômoda com objetos amontoados em cima, é possível distinguir entre
eles uma bailarina de porcelana, um relógio e uma latinha de cerveja. O relógio
marca 7 horas, um bebê de fraldas cambaleia em volta da poltrona até nela se
acomodar.
Quando entra o choro
estridente de um outro bebê que não vemos, surge de costas uma loira de
camisola e ombros pesados, esfregando seus olhos que hesitam em procurar o
responsável pelo barulho. É mais um dia que começa. Quando aparece de pé e de
frente, a mulher já tem o bebê que chorava nos braços e garrafinhas de vidro de
Coca Cola vazias compartilham com eles uma cozinha apertada. Ela abre a
geladeira e oferece café a um homem que chama de querido, que a ignora fazendo
careta e sai de casa batendo a porta.
Tudo sugere que Wanda
irá retratar a vida desta mulher cansada, oprimida por sua claustrofóbica
realidade de mãe de família. Afinal, ela é uma entre tantas que preparava as
refeições, lavava as roupas e a louça, limpava a casa e cuidava dos filhos para
que seu homem estivesse disponível para trabalhar na indústria. Seus feitos não
foram registrados pelos jornais ou pelos arquivos das empresas, já que suas
tarefas eram uma questão pessoal, e nelas havia nada relevante para ser
compartilhado publicamente, nem melhorias a serem reivindicadas.
Mas aquela não era
Wanda, essa é a vida que ela irá se negar a viver.
Logo depois que o homem
bate a porta, Wanda aparece debaixo de um lençol no sofá. Em comum, as duas
mulheres, além de serem irmãs, têm o fato de pertencerem à classe operária da
região da Pensilvânia, nos Estados Unidos, conhecida pela prática da mineração.
Um desses lugares onde o capitalismo se instala para extrair todos os
recursos naturais através do uso de maquinário e mão de obra pesada, para depois
de alguns anos se retirar.
Fora da casa, a câmera
se afasta e vemos de longe uma figura minúscula que circula lentamente entre as
montanhas de carvão. A roupa clara reforça a inadequação das suas intenções naquele
ambiente que a toma. Não há trilha sonora. Wanda caminha para outro lugar.
Como dito por Virginie
Despentes, “a revolução feminista da década de 1970 não provocou nenhuma
reorganização no que diz respeito aos cuidados com as crianças. Muito menos à
gestão do espaço doméstico”.
Trabalho feminino era sinônimo de trabalho voluntário e o que garantia a
subsistência das mulheres era o compromisso com a família. Apesar dos homens
terem algum tipo de vantagem política, ela vai dizer, que em alguma medida está
enraizada na opressão feminina, essa vantagem tem um preço: “se os corpos das
mulheres pertenciam aos homens, os corpos dos homens, em contrapartida,
pertenciam, em tempos de paz, à produção ou, em tempos de guerra, ao Estado.”
O marido de Wanda vai
ao tribunal pedir o divórcio, alegando ao juiz que ela não cuida dos filhos. Ele
precisa do divórcio porque quer se casar de novo e vai casar simplesmente
porque as crianças precisam de uma mãe. Se alguém não cuidar dos filhos, ele
não trabalha. A dependência é mútua.
A inadequação de Wanda
mexe nessa estrutura. Ela não só não desfaz a acusação do marido como a
reforça, dizendo ao juiz que as crianças ficarão melhor com o pai. Sua
indiferença aos filhos, a apatia como lida com isso, é insólita. A ousadia de
reconhecer e admitir que não serve para o papel, de colocar a possibilidade de
viver outra vida na frente da imposição de ter que cuidar da família, é
inesperada. Mas que vida seria essa?
Quem ela se torna
quando renuncia às únicas funções, de mãe e de esposa, que é supostamente digna
de cumprir? Quem ela se torna quando abdica dos contornos da casa e da família?
Ela está, afinal, abandonando um direito ou um dever?
A agonia se intensifica
na medida em que vai ficando mais evidente que Wanda não sabe, nem tem, para
onde ir, o que não é motivo para impedi-la. Ela sai de cabeça baixa, vaga pela
cidade com sua bolsinha branca e a roupa do corpo. Tenta trabalhar como
passadeira num galpão em que trabalham várias outras mulheres, por onde ela passa
para resgatar um dinheiro, e é recusada pelo patrão por ser lenta demais para a
função. E assim ela segue com seu olhar sisudo e angustiado, com seu sorriso pueril.
Para num bar até receber uma bebida de um homem a quem ela parece estar
disposta a obedecer. Passa a noite com ele, que no dia seguinte foge dela.
Há em Wanda uma vontade
de usufruir da vida, inconsequente na sua conjuntura. Com o pouco dinheiro que
tem, ela toma cerveja e come sorvete. Ela é vaidosa, ela é bonita, sua
feminilidade segue intocada, mas quando é deslocada de um contexto esperado, de
um lugar considerado seguro para uma mulher, torna a tentação de
julgá-la iminente. E talvez o filme trate justamente disso, de provocar nossa
capacidade, nossas condições e nossas limitações, para compreender essa mulher.
Num dado momento, em
outro bar, ela encontra outro homem, que mais pra frente se revela um ladrão de
banco. Ele é tenso, ríspido, desagradável. É provável que tenha matado um homem
que está estirado no chão atrás do balcão. É difícil saber se Wanda não nota ou
não se importa de estar se tornando cúmplice de um crime, e ela pega a estrada
com ele. Algo que ela prefere a voltar a
vida previsível e condenada que deixou para trás. Haveria escolha?
Há um jogo duplo em
Wanda, que foi escrito, dirigido e estrelado por Barbara Loden. É ao criar uma
mulher que nega a sua condição sem ainda ter encontrado uma alternativa para a própria
existência que Loden alça a condição de autora que nos conta sua história. A
diretora chegou a dizer em entrevistas que Wanda representa o seu próprio
estado emocional. Talvez o de alguém que tentava tomar as rédeas da própria
vida, da própria história, em um mundo que não era favorável a isso.
O filme foi seu único
longa-metragem e recebeu o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de
Cinema de Veneza, em 1970. Dez anos depois, aos quarenta e oito anos, Loden
morreu de câncer. Antes de ter escrito e dirigido um filme, numa época em que
pouquíssimas mulheres faziam isso – chama atenção nos créditos finais o seu
nome sozinho em meio a toda a equipe técnica composta por homens –, ela também foi
atriz. Ganhou um Tony Ward por seu papel em “After the fall”, de Artur Miller,
de 1964. Atuou em “Wild River” e “Splendor in the Grass”, ambos dirigidos por
Elia Kazan, com quem se casou em 1968. Há relatos que afirmam que a relação
entre Wanda e os homens no filme espelha a relação entre Loden e Kazan, algo
que, considerando o histórico da indústria cinematográfica, não é nem um pouco
difícil de acreditar.
Boa parte dos textos
sobre ela fazem menção à entrevista de Marguerite Duras com Elia Kazan para a Cahiers
du cinema. Na época, ele havia se tornado viúvo há pouco tempo e estava em
Paris para relançar dois dos seus filmes, mas era de Loden que Duras queria
falar, ansiosa para que Wanda chegasse ao público francês. “Eu acho que há um
milagre em Wanda”, ela diz. “Normalmente há uma distância entre a representação
visual e o texto, assim como o assunto e a ação. Aqui essa distância é
completamente anulada; há uma continuidade instantânea e permanente entre
Barbara Loden e Wanda.”
Conforme Amy Taubin, Loden
queria que os filmes de ficção se parecessem mais com os documentários.
Ela era fã de Andy Warhol e achava que o som “ruim” dos filmes dele, ao invés do
som cristalino dos filmes de Hollywood, se aproximava mais da maneira como
ouvíamos o mundo. É possível identificar seu apresso pela vida fora dos
estúdios em seu filme que é muito bem sucedido no transito por diversas
locações.
A inspiração para a personagem surgiu de uma notícia
que ela leu sobre uma mulher que foi cúmplice num assalto a banco que deu
errado. O homem morreu e a mulher foi presa. A isso Loden somou a manipulação
das próprias emoções que deram vazão a uma personagem inquietante, profunda e
muito íntima. Ela era claramente uma autora e tinha muito a desenvolver.
O filme ganhou status
cult e hoje é celebrado por figuras como Isabelle Huppert e as irmãs Rodarte. Foram
necessários anos de feminismo e de história para que um olhar como o seu que
não apresenta soluções, mas sim se aproxima da zona cinzenta das coisas, fosse
valorizado. Wanda nos perturba porque não é vítima, nem heroína, mas uma agente
dentro das próprias circunstâncias.
Enquanto clamamos por algum tipo de recompensa
que traga sentido aos atos de Wanda, Barbara Loden nos oferece seu filme que
sobrevive no tempo e apresenta uma excelente oportunidade de discutirmos quem
elas são no mundo.
Minha mente/Está
de cabeça para baixo/Eu estava pisando em/Chão muito sólido
Todos os dias/Eu ficava mais cega/Oh
pensei que eu era tão forte/Não precisava da ajuda de ninguém/Oh mas até o rio
mais forte/Não pode fluir morro cima/Satisfeita/Isso é o que pensei que
estaria/Eu continuei vivendo no meu próprio sonho/No meu próprio sonho.