sábado, 5 de outubro de 2024

Fora do lar, fora da lei

por Taís Cardoso

My mind/Is upside down/I was standing on/Too solid ground
Everyday/I grew blinder/Oh I thought I was so strong/
I didn't need nobody's help
Oh but the strongest river/Can't flow up hill/Satisfied/
That's what I thought I'd be
I kept on living in my own dream/
In my own dream[1]

Karen Dalton, In my own dream


O primeiro plano de Wanda exibe montanhas de carvão cinzentas que dividem o quadro com um céu azul desbotado. A câmera percorre devagar a paisagem árida até encontrar uma retroescavadeira que movimenta um monte de rejeito que tem três vezes a sua altura. O ruído da máquina segue contínuo como o barulho do mar quando a imagem corta para uma pequena casa de madeira. Dentro da casa, há uma senhora sentada numa poltrona com um terço nas mãos. Ela olha pela janela para o que acontece lá fora, como quem olha pra coisa alguma. Uma cruz e a foto de um jovem capitão num porta retratos são seu plano de fundo, seu altar. Num plano um pouco mais aberto, vemos outra cômoda com objetos amontoados em cima, é possível distinguir entre eles uma bailarina de porcelana, um relógio e uma latinha de cerveja. O relógio marca 7 horas, um bebê de fraldas cambaleia em volta da poltrona até nela se acomodar.

Quando entra o choro estridente de um outro bebê que não vemos, surge de costas uma loira de camisola e ombros pesados, esfregando seus olhos que hesitam em procurar o responsável pelo barulho. É mais um dia que começa. Quando aparece de pé e de frente, a mulher já tem o bebê que chorava nos braços e garrafinhas de vidro de Coca Cola vazias compartilham com eles uma cozinha apertada. Ela abre a geladeira e oferece café a um homem que chama de querido, que a ignora fazendo careta e sai de casa batendo a porta.

Tudo sugere que Wanda irá retratar a vida desta mulher cansada, oprimida por sua claustrofóbica realidade de mãe de família. Afinal, ela é uma entre tantas que preparava as refeições, lavava as roupas e a louça, limpava a casa e cuidava dos filhos para que seu homem estivesse disponível para trabalhar na indústria. Seus feitos não foram registrados pelos jornais ou pelos arquivos das empresas, já que suas tarefas eram uma questão pessoal, e nelas havia nada relevante para ser compartilhado publicamente, nem melhorias a serem reivindicadas.

Mas aquela não era Wanda, essa é a vida que ela irá se negar a viver.   

Logo depois que o homem bate a porta, Wanda aparece debaixo de um lençol no sofá. Em comum, as duas mulheres, além de serem irmãs, têm o fato de pertencerem à classe operária da região da Pensilvânia, nos Estados Unidos, conhecida pela prática da mineração. Um desses lugares onde o capitalismo se instala para extrair todos os recursos naturais através do uso de maquinário e mão de obra pesada, para depois de alguns anos se retirar.

Fora da casa, a câmera se afasta e vemos de longe uma figura minúscula que circula lentamente entre as montanhas de carvão. A roupa clara reforça a inadequação das suas intenções naquele ambiente que a toma. Não há trilha sonora. Wanda caminha para outro lugar.

Como dito por Virginie Despentes, “a revolução feminista da década de 1970 não provocou nenhuma reorganização no que diz respeito aos cuidados com as crianças. Muito menos à gestão do espaço doméstico”[2]. Trabalho feminino era sinônimo de trabalho voluntário e o que garantia a subsistência das mulheres era o compromisso com a família. Apesar dos homens terem algum tipo de vantagem política, ela vai dizer, que em alguma medida está enraizada na opressão feminina, essa vantagem tem um preço: “se os corpos das mulheres pertenciam aos homens, os corpos dos homens, em contrapartida, pertenciam, em tempos de paz, à produção ou, em tempos de guerra, ao Estado.”[3]

O marido de Wanda vai ao tribunal pedir o divórcio, alegando ao juiz que ela não cuida dos filhos. Ele precisa do divórcio porque quer se casar de novo e vai casar simplesmente porque as crianças precisam de uma mãe. Se alguém não cuidar dos filhos, ele não trabalha. A dependência é mútua.

A inadequação de Wanda mexe nessa estrutura. Ela não só não desfaz a acusação do marido como a reforça, dizendo ao juiz que as crianças ficarão melhor com o pai. Sua indiferença aos filhos, a apatia como lida com isso, é insólita. A ousadia de reconhecer e admitir que não serve para o papel, de colocar a possibilidade de viver outra vida na frente da imposição de ter que cuidar da família, é inesperada. Mas que vida seria essa?

Quem ela se torna quando renuncia às únicas funções, de mãe e de esposa, que é supostamente digna de cumprir? Quem ela se torna quando abdica dos contornos da casa e da família? Ela está, afinal, abandonando um direito ou um dever?

A agonia se intensifica na medida em que vai ficando mais evidente que Wanda não sabe, nem tem, para onde ir, o que não é motivo para impedi-la. Ela sai de cabeça baixa, vaga pela cidade com sua bolsinha branca e a roupa do corpo. Tenta trabalhar como passadeira num galpão em que trabalham várias outras mulheres, por onde ela passa para resgatar um dinheiro, e é recusada pelo patrão por ser lenta demais para a função. E assim ela segue com seu olhar sisudo e angustiado, com seu sorriso pueril. Para num bar até receber uma bebida de um homem a quem ela parece estar disposta a obedecer. Passa a noite com ele, que no dia seguinte foge dela.

Há em Wanda uma vontade de usufruir da vida, inconsequente na sua conjuntura. Com o pouco dinheiro que tem, ela toma cerveja e come sorvete. Ela é vaidosa, ela é bonita, sua feminilidade segue intocada, mas quando é deslocada de um contexto esperado, de um lugar considerado seguro para uma mulher, torna a tentação de julgá-la iminente. E talvez o filme trate justamente disso, de provocar nossa capacidade, nossas condições e nossas limitações, para compreender essa mulher.  

Num dado momento, em outro bar, ela encontra outro homem, que mais pra frente se revela um ladrão de banco. Ele é tenso, ríspido, desagradável. É provável que tenha matado um homem que está estirado no chão atrás do balcão. É difícil saber se Wanda não nota ou não se importa de estar se tornando cúmplice de um crime, e ela pega a estrada com ele.  Algo que ela prefere a voltar a vida previsível e condenada que deixou para trás. Haveria escolha?

Há um jogo duplo em Wanda, que foi escrito, dirigido e estrelado por Barbara Loden. É ao criar uma mulher que nega a sua condição sem ainda ter encontrado uma alternativa para a própria existência que Loden alça a condição de autora que nos conta sua história. A diretora chegou a dizer em entrevistas que Wanda representa o seu próprio estado emocional. Talvez o de alguém que tentava tomar as rédeas da própria vida, da própria história, em um mundo que não era favorável a isso.

O filme foi seu único longa-metragem e recebeu o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cinema de Veneza, em 1970. Dez anos depois, aos quarenta e oito anos, Loden morreu de câncer. Antes de ter escrito e dirigido um filme, numa época em que pouquíssimas mulheres faziam isso – chama atenção nos créditos finais o seu nome sozinho em meio a toda a equipe técnica composta por homens –, ela também foi atriz. Ganhou um Tony Ward por seu papel em “After the fall”, de Artur Miller, de 1964. Atuou em “Wild River” e “Splendor in the Grass”, ambos dirigidos por Elia Kazan, com quem se casou em 1968. Há relatos que afirmam que a relação entre Wanda e os homens no filme espelha a relação entre Loden e Kazan, algo que, considerando o histórico da indústria cinematográfica, não é nem um pouco difícil de acreditar.

Boa parte dos textos sobre ela fazem menção à entrevista de Marguerite Duras com Elia Kazan para a Cahiers du cinema. Na época, ele havia se tornado viúvo há pouco tempo e estava em Paris para relançar dois dos seus filmes, mas era de Loden que Duras queria falar, ansiosa para que Wanda chegasse ao público francês. “Eu acho que há um milagre em Wanda”, ela diz. “Normalmente há uma distância entre a representação visual e o texto, assim como o assunto e a ação. Aqui essa distância é completamente anulada; há uma continuidade instantânea e permanente entre Barbara Loden e Wanda.”[4]

Conforme Amy Taubin, Loden queria que os filmes de ficção se parecessem mais com os documentários[5]. Ela era fã de Andy Warhol e achava que o som “ruim” dos filmes dele, ao invés do som cristalino dos filmes de Hollywood, se aproximava mais da maneira como ouvíamos o mundo. É possível identificar seu apresso pela vida fora dos estúdios em seu filme que é muito bem sucedido no transito por diversas locações.

 A inspiração para a personagem surgiu de uma notícia que ela leu sobre uma mulher que foi cúmplice num assalto a banco que deu errado. O homem morreu e a mulher foi presa. A isso Loden somou a manipulação das próprias emoções que deram vazão a uma personagem inquietante, profunda e muito íntima. Ela era claramente uma autora e tinha muito a desenvolver.  

O filme ganhou status cult e hoje é celebrado por figuras como Isabelle Huppert e as irmãs Rodarte. Foram necessários anos de feminismo e de história para que um olhar como o seu que não apresenta soluções, mas sim se aproxima da zona cinzenta das coisas, fosse valorizado. Wanda nos perturba porque não é vítima, nem heroína, mas uma agente dentro das próprias circunstâncias.

Enquanto clamamos por algum tipo de recompensa que traga sentido aos atos de Wanda, Barbara Loden nos oferece seu filme que sobrevive no tempo e apresenta uma excelente oportunidade de discutirmos quem elas são no mundo.  



[1] Minha mente/Está de cabeça para baixo/Eu estava pisando em/Chão muito sólido

Todos os dias/Eu ficava mais cega/Oh pensei que eu era tão forte/Não precisava da ajuda de ninguém/Oh mas até o rio mais forte/Não pode fluir morro cima/Satisfeita/Isso é o que pensei que estaria/Eu continuei vivendo no meu próprio sonho/No meu próprio sonho.

[2] Despentes, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: N-1, 2017. P. 19

[3] Idem, p. 22

[4] Ver em Taubin, Amy. Wanda: a miracle. 2019 https://www.criterion.com/current/posts/6251-wanda-a-miracle

[5]  Idem

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Cineclube do Atalante: Wanda


Sábado, 05 de outubro:

WANDA

Dirigido por Barbara Loden.

(Wanda, EUA, 1970, 110 min., drama, 16 anos.)
Com Barbara Loden, Michael Higgins, Dorothy Shupenes.

Casada com um mineiro da Pensilvânia e mãe de duas crianças, Wanda não trata deles, nem da casa, e passa a maior parte do dia no sofá da sala, em roupão, chinelos e rolos de cabelo. Sem desejos, motivações ou força de caráter, Wanda deixa que o marido peça o divórcio e fique com a custódia dos filhos. Sozinha, sem casa, nem dinheiro, Wanda vagueia sem destino. Até que acaba por conhecer um ladrão, Dennis, de quem se torna amante e cúmplice.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“Wanda” (1970), de Barbara Loden
Sábado, 05/10
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

Apoio: @fcccuritiba

PROJETO REALIZADO POR MEIO DA LEI MUNICIPAL COMPLEMENTAR 57/2005 DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, SECRETARIA DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Cineclube do Atalante: O mundo é o culpado

 

Sábado, 28 de setembro:

O MUNDO É CULPADO
Dirigido por Ida Lupino

(Outrage, EUA, 1950, 75 min., drama/noir, 16 anos.)

Traumatizada por um abuso que sofre ao voltar do trabalho, jovem se desespera e foge de casa, abandonando o noivo e tentando reconstruir a vida em outra cidade. Amparada pelo pastor de uma igreja, terá de reconstruir sua confiança em si mesma e no mundo que a cerca, fonte de constantes ameaças e incertezas.

Serviço: 

CINECLUBE DO ATALANTE
“O mundo é culpado” (1950), de Ida Lupino
Sábado, 28/09
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Apoio: @fcccuritiba


PROJETO REALIZADO POR MEIO DA LEI MUNICIPAL COMPLEMENTAR 57/2005 DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, SECRETARIA DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Cineclube do Atalante: O Movimento das Coisas


Sábado, 14 de setembro:

O MOVIMENTO DAS COISAS
Dirigido por Manuela Serra

(O Movimento das Coisas, Portugal, 1985, 85 min., drama/experimental, 14 anos.)

Histórias do quotidiano de silêncio. Em caminhos desertos de vento inquietante, numa aldeia do Norte. Há um dia de trabalho atravessado por três famílias: quatro velhas, o campo, o pão, as galinhas e, a lembrar-nos, clareiras de histórias velhíssimas de gestos saboreados em mineralógicas palavras. Nestes fragmentos de cenário move-se Isabel, também, com os olhos postos no futuro, para lá dos outros, em que o sentido da vida é apenas viver. O tempo atravessa o nascer e o pôr-do-sol. É um respirar a vida, usando o campo como meio numa aldeia do Norte, de gestos antiquíssimos e pousados.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“O Movimento das Coisas” (1985), de Manuela Serra
Sábado, 14/09
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Agradecimento: The Stone and The Plot e Manuela Serra
Apoio: @fcccuritiba


PROJETO REALIZADO POR MEIO DA LEI MUNICIPAL COMPLEMENTAR 57/2005 DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, SECRETARIA DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.

sábado, 24 de agosto de 2024

Um cineasta do desencanto: Michael Mann

 por Fernando Verissimo

1964. O jovem Cassius Clay treina para disputar o cinturão dos peso-pesados com Sonny Liston, a luta de sua vida. À sua volta, a cultura negra americana passa por um momento de intensa efervescência, seja nos discursos de Malcolm X ou no soul contagiante de Sam Cooke. O estímulo externo vem acompanhado da memória de eventos simbólicos: seu pai pinta numa igreja a imagem de um Jesus loiro de olhos azuis; na volta para casa, na parte de trás do ônibus reservada às "pessoas de cor" o pequeno Clay observa assustado à fotografia que estampa na primeira página do jornal o rosto em pedaços de uma vítima de linchamento. O homem observa o garoto por cima da leitura e fecha o jornal num gesto agressivo; Clay fecha os olhos, entristecido com a lembrança, e começa a socar o saco de pancadas com mais violência.

Os primeiros dez minutos de Ali (2001), filme que comprova a grande fase por que passa o cinema de Michael Mann, culminam no combate que elevaria Cassius Clay à categoria de campeão. A vitória no ringue é carregada de significado e Mann filma a batalha – magistralmente, diga-se de passagem – como um legítimo ato político. Ali é um trabalho inestimável em sua tentativa de construção imaginária de um herói positivo, firmemente comprometido com a idéia de associar (ou sacrificar) sua trajetória individual a um idealismo de base – afinal, não é à toa que evoca-se a imagem de Jesus na gênese do mito.

Muhammad Ali, assim como todos os outros heróis de Mann, é um homem imerso em profunda melancolia. Herdeiro de Sam Peckinpah, outro grande cineasta do desencanto, Mann filma suas personagens entregues a um processo de envelhecimento, de desgaste e confrontamento com seus ideais particulares. Em O Informante (1999), seu filme anterior, Al Pacino e Russel Crowe fazem os papéis, respectivamente, de um jornalista (Lowell Bergman) e um cidadão comum (Jeffrey Wygand) que, aliados para trazer à tona uma importante revelação sobre a indústria do tabaco, têm que encarar um duro golpe: a verdade, diz Lowell a Wygand, não importa; ela é construída de acordo com tais ou tais interesses para servir a tais ou tais propósitos. A constatação causa um profundo abalo em Wygand, que havia sacrificado sua carreira científica e sua família em função desta revelação; por outro lado, Lowell – um ex-aluno de Marcuse – é obrigado a rever suas próprias certezas a respeito de sua profissão sentindo na pele o fracasso de um projeto de geração, dobrado a interesses corporativos.

Este aspecto de desencanto se apresenta em toda a obra de Mann. Em Profissão Ladrão (1981), um de seus primeiros filmes, James Caan é um dedicado especialista em roubo de jóias que resolve se aposentar e constituir uma família. Para o último grande golpe, ele se alinha a uma quadrilha que termina por aprisioná-lo numa estrutura de poder que põe em risco seu código de conduta. Profissão Ladrão é uma provocante aplicação de uma visão marxista à proposta de revisão de gênero: tudo gira em torno do trabalho, que constitui o objeto de estudo privilegiado da narrativa; a câmera se deixa hipnotizar por cada gesto que constitui o último grande assalto, uma longa seqüência em que vemos apenas a aplicação prática da elaborada técnica dos ladrões. A trama, por sua vez, se desenvolve rumo a uma vingança kamikaze de Caan contra os agentes da exploração de seu trabalho.

Mann insiste, correndo o sério risco de parecer anacrônico, em revisitar pontos estratégicos da agenda da esquerda liberal (trabalho, imprensa, minorias) sob a ótica do indivíduo e das implicações morais do gesto político, o que indica a presença de um idealismo de base em seu discurso. Como suas personagens, Mann trilha um caminho muito particular com seus filmes: nascido no mesmo ano que Martin Scorsese, Mann entraria para o cinema seguindo os passos de uma geração posterior, descolada do traço de cinefilia-enquanto-religião do brat pack; estudou na London Film School tendo como companheiros de classe figuras como Adrian Lyne e os irmãos Ridley e Tony Scott, mas trilhou o caminho do documentário engajado e das séries de televisão, ao invés da publicidade, como preparação para seu trabalho como cineasta. Sua contribuição para a TV americana é imensa, tendo provocado com o sucesso colossal de Miami Vice uma revolução no formato das séries policiais (um terreno ao qual, ademais, retorna volta e meia), o que contribuiu, associado à sua abordagem essencialmente formalista do cinema, para sua desqualificação crítica como autor.

Em meados da década de noventa, Mann passa a se dedicar exclusivamente ao cinema, entusiasmado pela boa recepção de sua obra-prima Fogo contra Fogo (1995), um filme que poderíamos qualificar como a mais ambiciosa (e bem-sucedida) tentativa de revisão do cinema de gênero junto com Os Imperdoáveis de Clint Eastwood. Tudo neste filme remete à estrutura épica: a ação se desenrola num espaço mítico, uma Los Angeles de contornos abstratos transfigurada no palco de um confronto de proporções bigger-than-life. A história se articula em torno do encontro de dois ícones do policial moderno, Al Pacino e Robert DeNiro, que se reúnem para discutir, sentados à mesa de um café, seus papéis na trama. A seqüência alterna em campo/contracampo a verborragia histérica do overacting de Pacino à composição metódica da canastrice de DeNiro, num jogo de reconhecimento e identificação mútuos entre perseguidor e fugitivo, figuras complementares e irreconciliáveis. Cada enquadramento (Mann é um dos maiores estetas do cinemascope em atividade) acentua o descompasso da personagem com o ambiente que lhe cerca: Pacino, em determinado momento, expressa seu mal-estar em viver na casa decorada num estilo que chama de "post-modern bullshit"; DeNiro e sua gangue, por sua vez, subvertem o espaço público, fazendo das ruas um espaço de guerrilha urbana numa das melhores seqüências de ação do cinema americano em todos os tempos.

Fogo contra Fogo foi, sem dúvida alguma, o filme que provocou a maior repercussão crítica na obra de Michael Mann permitindo, por um lado, uma revisão necessária de seus filmes e, por outro, inaugurando uma fase notável de renovação de seu cinema. Há que estar atento a este processo, pois dele ergue-se uma voz das mais interessantes trabalhando hoje no cinema americano.

Texto publicado originalmente em http://www.contracampo.com.br/50/michaelmann.htm.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Cineclube do Atalante: Profissão: Ladrão

O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Michael Mann. Entrada franca e seguido de conversa, sempre.


PROFISSÃO: LADRÃO
Dirigido por Michael Mann

(Thief, EUA, 1981, 122 min., policial, 14 anos.)
Com James Caan, James Belushi, Tuesday Weld.

Decidido a mudar de vida, um ladrão especialista em roubar joias resolve participar de um último crime, aceitando uma proposta de uma quadrilha. Seus planos vão por água abaixo quando ele se vê envolvido em uma trama que coloca sua vida em perigo.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“Profissão: Ladrão” (1981), de Michael Mann
Sábado, 24/08
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Apoio: @fcccuritiba

PROJETO REALIZADO POR MEIO DA LEI MUNICIPAL COMPLEMENTAR 57/2005 DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, SECRETARIA DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.