Por Mateus Araújo*
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III. Um Cristo e duas moças na encruzilhada
Em seus primeiros 50 minutos, Vent d’est nos mostra uma
série de vinte e poucas cenas filmadas em exteriores italianos (rurais) no
verão. Elas se sucedem ou se alternam num fluxo bastante descontínuo, a meio
caminho entre a narrativa e o ensaio.25 No mais das vezes
plácidas e calmas, as imagens mostram um grupo de seis personagens nunca
nomeados mas cuja caracterização (figurinos, gestos, falas) e cuja interação em
paisagens amplas tendem a evocar figuras e situações de um western.
Em constante desacordo com a imagem, a banda sonora complexa traz a intervenção
de várias vozes over, ora em francês (puro ou com sotaque italiano), ora em
italiano, falando sobretudo das lutas operárias, de modo a trazê-las também
para a ficção. Assim, três atores evocam um soldado Yankee, uma
mocinha burguesa e um índio vindos do western, e os três outros
evocam um casal de jovens revolucionários e um personagem que a banda sonora
sugere ser um líder sindical. Conjugando estes dois universos em dois gêneros
igualmente distintos (uma narrativa de western evocada sobretudo
nas imagens, um ensaio sobre a greve e as lutas operárias esboçado sobretudo na
banda sonora), o filme vai avançando de maneira descontínua, mostrando os
personagens em separado, em grupos de dois ou três ou todos juntos, de modo a
sugerir um confronto entre, de um lado, o Yankee, o líder sindical
e a moça burguesa e, de outro, o índio e o casal de revolucionários. Pontuando
o fluxo, e empurrando-o para o terreno do ensaio, algumas cenas mostram as
próprias filmagens (atores se maquiando, assembléia da equipe discutindo como
usar uma imagem de Stalin, etc) e muitos planos trazem inserts de cartazes
anunciando blocos do filme, mostrando fotos rabiscadas e repetindo slogans políticos.26 No
som, as vozes femininas predominam, sobretudo uma, dita “revolucionária” na
transcrição da banda sonora (cf. GODARD; GORIN, 1972: 33, 36, 38, 39 etc.), que
comenta em over todo o fluxo das imagens e dos sons, pontuando
toda esta primeira parte como um fio reflexivo em meio aos embates entre
revisionistas e revolucionários, às evocações de lutas operárias e episódios
históricos (antigos ou recentes) e às palavras de ordem. A questão que se
repete vem de Lênin (“Que fazer”?), e sua resposta aponta para uma prática
revolucionária cujo caminho passa pela tematização da greve, do líder sindical,
das minorias ativas, da assembleia geral e da repressão.
O comentário feminino em over se torna ainda mais importante
na segunda parte do filme, mais ensaística, que começa aos 49’ e se organiza
como uma (auto)crítica à primeira, num procedimento recorrente nos filmes de
Godard desde Le gai savoir até pelo menos a sérieFrance
tour détour (1977-1978).27 Agora, aquela voz se dirige
a um “tu” que estaria fazendo o filme, para criticá-lo e comentar sua démarche (nota
do Guaci: procedimento), o que soa estranho, pois o filme é de Godard
e de Gorin. Aos poucos, vamos inferindo que ela se dirige a Godard e, mais
importante, que ela parece exprimir a posição e o discurso de Gorin,
explicitando assim na textura mesma do filme um debate interno ao grupo Dziga
Vertov que poderíamos definir como uma autocrítica dialógica. Que este diálogo
entre Godard e Gorin passe pela mediação de vozes ou personagens femininos não
surpreende, pois Godard já instituíra em seus filmes uma espécie de paridade
das vozes num constante diálogo masculino-feminino. Le gai savoir tornava
este gesto explícito, e os filmes seguintes o sistematizavam, especialmente
através da dupla Vladimir e Rosa, que aparece em Pravda antes
de reaparecer no filme homônimo, interpretada por Godard e Gorin.
Abrindo a segunda parte, a voz feminina cobra de Godard um exame da
primeira, e encadeia uma série de críticas severas à insuficiência do seu
método e da sua démarche desvinculada das massas e das lutas
reais. Diante de imagens documentais que irrompem no filme pela primeira vez
(trabalhos agrícolas, fábricas, favelas, prédios, canteiros de obras), a voz é
implacável em sua crítica, que resumo:
você não pesquisa… você faz sociologia burguesa… você faz
cinema-verdade… teu cinema é o das televisões burguesas e seus aliados
revisionistas… você nem chegou a pensar tua situação concreta. De onde você
parte? Não há cinema acima da luta de classes, a classe dominante cria as
imagens dominantes que reforçam sua dominação. Quer trabalhar para Nixon-Paramount
(ou suas filiais imperialistas na França, na Itália, na Alemanha) ou para
Brejnev-Mosfilm (e seus agentes revisionistas no leste), você trabalha sempre
para o mesmo patrão, que encomenda sempre o mesmo filme, que chamamos, não por
acaso, de western”.
Neste momento, a voz feminina anuncia um breve exercício de teoria.
Nele, sobre imagens paródicas do oficial Yankee a cavalo,
trazendo o índio amarrado pelas mãos, a voz esboça um esquema geopolítico do
cinema mundial, dividindo-o em três pólos que ela critica severamente: 1)
Hollywood, Nixon-Paramount; 2) Brejnev-Mosfilm e suas zonas de influência
(Argélia, Cuba); 3) Underground. Os três pólos deste esquema, cuja
tripartição conjuga parâmetros geográficos (EUA x URSS) e estéticos
(underground, com vários núcleos de irradiação), são criticados e aparecem como
caminhos sem saída, inimigos ou obstáculos para a emergência de um cinema
materialista.
É exatamente neste momento, e sem transições, que aparece a cena de
Glauber, cuja duração não excede dois minutos (57’–59’). Seu contexto imediato
no filme é portanto a dura autocrítica de Godard e sua crítica severa a três
grandes modelos de um cinema ocidental comprometido (ou compatível) com o
imperialismo e emblematizado pelo western. Quando Glauber surge no
filme, ele parece anunciar uma quarta via, o cinema do terceiro mundo,28 de
modo a completar uma espécie de transposição cênica, mais precisa, de um
esquema já presente no manifesto de Godard pelos dois ou três Vietnãs no
cinema, de 1967. Escrito por ocasião da Chinoise, e ecoando a
divisa “criar dois, três… muitos Vietnãs”, que Che Guevara usara no título de
seu artigo publicado em Havana num suplemento especial da revista Tricontinental de
abril de 1967 (e traduzido na França em Dossier Partisan, 1967),
tal manifesto dizia:
Cinquenta anos depois da revolução de Outubro, o cinema americano reina
sobre o cinema mundial. Não há muito a acrescentar a este fato, salvo que, em
nossa modesta escala, devemos nós também criar dois ou três Vietnãs no seio do
imenso império Hollywood – Cinecittà – Mosfilms – Pinewood – etc. E devemos
fazê-lo tanto economicamente quanto esteticamente, ou seja, lutando em duas
frentes, criando cinemas nacionais, livres, irmãos, camaradas e amigos”
(GODARD, 2006: 88).
A transposição cênica do manifesto de 1967 neste momento do Vento
do leste acrescenta oUnderground como um subproduto ou uma
variante do cinema imperialista e elege o terceiro mundo como representante dos
cinemas nacionais, mas o movimento geral do argumento é o mesmo: ataque ao cinema
imperialista em suas várias versões seguido de um apelo a um outro cinema.
Glauber encarnará por um instante esta promessa de um outro cinema. Passemos à
sua cena.
Plano geral fixo, não muito aberto, de paisagem campestre atravessada
por uma estradinha de terra em forma de “V”, em cujo vértice, no centro do
quadro, vemos Glauber de corpo inteiro, de frente para a câmera. Ao fundo, o
céu claro e o capim em torno da estrada. À sua esquerda, uma vegetação mais
densa, contrabalançando a secura da paisagem. De calça e camisa compridas, em
primeiro plano, Glauber tem os braços abertos,29 como se
sinalizasse desde já os caminhos que apontará logo depois, mas evocando ao
mesmo tempo a figura do Cristo crucificado (sem a cruz, como notou MACBEAN,
1971: 144; 2005: 58) e um gesto expansivo muito recorrente dos personagens de
seus filmes,30 dentre os quais o primeiro a nos vir à mente é o
Corisco no fim de Deus e o diabo, de braços também abertos e
gritando “mais fortes são os poderes do povo!”. Glauber canta em português e à
capella, desde o inicinho do plano, com alguma desafinação – numa entonação a
meio caminho entre a melodia e a simples recitação dos versos -, o refrão
ligeiramente modificado31 da canção Divino maravilhoso de
Caetano Veloso e Gilberto Gil:
Atenção! É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a
morte / É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte /
Atenção! é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte / é
preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”.
(...)
Texto
na íntegra (e notas): http://guaciara.com/2009/03/29/godard-glauber-e-o-vento-do-leste-alegoria-de-um-desencontro-por-mateus-araujo/