quinta-feira, 19 de agosto de 2021

High Noon, de Fred Zinnemann (1952)

Arte é modo de produção de saber – no mínimo, transmissão de saber produzido alhures: este é o título onde situo o Cinema.

Dentro do Cinema, isolo um gênero em particular, o “western” – ou, se preferem, o filme de faroeste, bangue-gangue, bandido e mocinho, cowboys e índios... Qualquer que seja o nome, falamos de um cenário mítico em que se encenam questões que agitam a alma humana. Um agito que vai além dos dilemas entre o falso e o verdadeiro, ou o bem e o mal, e toca a oposição eterna entre Natureza e Cultura, entre pulsão e desejo.

Dentro do gênero, isolo aqui uma obra de arte: o filme High Noon, de Fred Zinnemann. Em português, Matar ou Morrer. Um bom título, rente à pulsação central do enredo, mas vale a pena examinar o título original, algo como “sob o sol do meio dia”, hora da luz sem sombras, de clareza sem meios tons, da luminosidade meridiana perfeita para iluminar o homem diante de seu ato.

E quem fala em ato, fala em Ética, e quem fala em Ética, no Ocidente, precisa falar da filosofia grega no século IV a.C. Refiro-me a um livro, publicado há quase 2.500 anos: Ética a Nicômaco. Um livro escrito a partir das anotações de Nicômaco, o filho de Aristóteles, durante as preleções de seu pai, no Liceu da velha Atenas.

O título, Ética [ensinada] a Nicômaco, por si só já põe um marco nos deveres dos pais para com seus filhos – transmitir-lhes valores. O livro – na verdade uma coleção de 10 tomos – parte da premissa de que a Ética é um bem da Cultura: não existe na Natureza e deve ser construída pelo pensamento e pela reflexão, podendo ser transmitida.

A Ética em Aristóteles passa longe de uma divagação metafísica e se assenta em razões práticas, visando a conquista e a proteção da Felicidade, o bem supremo de uma vida humanamente vivida.

A cogitação ética em Aristóteles parte do exame dos problemas que o Real apresenta ao homem – e das respostas que este pode dar ao Real, resposta aqui entendida como res... posta: a sua própria coisa (res), o mais íntimo do seu ser, o si mesmo, posto para responder à questão que o agita.

Especificamente o livro III vai tratar de responsabilidade, ação, conhecimento das circunstâncias, deliberação e escolha – exatamente os ingredientes que vão nutrir a encenação em High Noon, onde um homem será posto numa situação limite, sob risco de perda total. Seu elenco de respostas possíveis já está identificado no mesmo livro: covardia, coragem e temeridade.

Covardia que se pode tornar superlativa como pusilanimidade: o covarde responsabiliza terceiros pela sua (in)decisão. Coragem que pode ser evasão, se assim está indicado pelo conhecimento claro das circunstâncias; mas também pode se aprofundar e estender como bravura e heroísmo. Com espaço, ainda, para o temerário – aquele que arrisca mais do que deve, por um cálculo impróprio dos riscos e das possibilidades.

Estas respostas possíveis, o roteirista (Carl Foreman) e o cineasta (Fred Zinnemann) farão aparecer distribuídas pelos vários habitantes da pequena cidade de Hadleyville, e não concentradas exclusivamente no personagem principal, o xerife Will Kane (Gary Cooper). Seguindo-se o filme, vamos reconhecendo todos os tons de cinza: os que tiram partido da situação para faturar, de alguma forma; os que transferem a solução para os políticos da capital e para aqueles que são pagos com seus impostos; os que revelam um ódio saudoso dos tempos em que não havia segurança, mas os negócios eram mais prósperos; o ressentimento da esposa quaker, que se vê casada com um homem ainda disposto a matar... mas escolho concentrar-me no xerife.

Longe de um herói impávido e colosso, imune a toda vacilação e aderido ao arquétipo tão caro aos nossos ideais no Ocidente (onde o herói está mais próximo do “temerário com muita sorte”), Kane protagoniza um homem real: um homem dividido, que sente medo, que apela ao outro, que pede ajuda, que dá sinais de angústia, que perde a cabeça, que luta consigo mesmo, que confia e é abandonado por todos – e daí é que se extrai a sua grandeza.

Se, num primeiro momento, escolhe a evasão, logo a idéia de honra se ergue no caminho de seus pensamentos. A seguir, o conhecimento das circunstâncias o faz retroceder: ele será presa fácil, na pradaria, sem refúgios, fugindo com a esposa numa carroça que não pode competir em velocidade com os cavalos dos perseguidores. Provavelmente será morto e a mulher estuprada. Retorna. Confia em que, na cidade, não estará sozinho.

O fato é que – sim! – ele estará só.

Pois é só, embora não sozinho, que um homem decide e realiza seu ato – esse é o coração do mito encenado.

Da cidade, esse homem solitário receberá apenas a proteção da arquitetura: becos, esquinas, desvãos, terraços, lugares de onde pode ver sem ser visto – um mínimo de vantagem no jogo de forças desiguais: falamos de quatro pistoleiros decididos a executá-lo.

A ação se desenvolve e coloca em cena uma aparição surpreendente: sua mulher, Amy Kane (Grace Kelly), comparece para estar com ele no confronto final. Reedita Antígona, ao contrariar seus preceitos religiosos e todas as convenções sociais e morais, matando um dos pistoleiros, pelas costas. Capturada pelo último dos quatro assassinos, ainda assim, ela própria numa situação limite com risco de perda total, tem coragem para ajudar o marido a liquidar seu adversário.


O final segue o paradigma do universo mítico do velho oeste: uma redenção amarga. O estado de direito em construção mostra-se precário e a justiça pelas próprias mãos se efetiva diante da selvageria. O mundo do western é, a seu modo, mais justo que o mundo real, onde não há garantia de justiça. Desse modo, o gênero em geral, e este filme em particular, nos oferece uma certa esperança, esse outro nome do desejo, de que pode haver um mundo melhor.

Para a maioria, esta crítica pode ficar por aqui. Mas, para aqueles que, como eu, estão sempre de olho num mais além do princípio do prazer, coloco uma questão ética, já que julgar os outros, encarnados nos personagens desse filme, é fácil demais.

A questão:

Onde estaria eu, ao meio dia, na pequena Hadleyville, naquele dia em que quatro assassinos prometiam executar, juntos, o xerife que trouxera segurança e tranqüilidade para todos, eu inclusive?

Curitiba, 07 de Agosto de 2021
Vera Lúcia de Oliveira e Silva


Texto produzido por ocasião do "Papo dos Confrades" sobre "High Noon" (1952) de Fred Zinnemann, organizado pela Confraria dos Viajantes, com Vera, José Mauro e Giovanni Comodo - disponível na íntegra aqui.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Cinema e...


Sempre que a proposta é falar de Cinema e... qualquer outro tema, por mais digno e importante que seja, cabe sempre erguer uma advertência: há um enorme risco de que se embarque em proselitismo ou doutrinação.

Portanto, parece sensato que, tanto aquele que faz a proposta, quanto aquele que a aceita, leve tal advertência a sério. Advertido o orador – e advertidos os ouvintes, para o caso de que o primeiro caia em tentação – talvez se faça anteparo ao risco da catequese.

Outro perigo, talvez igualmente grave, é o de se reduzir o filme à pura ilustração, com o que se tem uma obra de arte degradada à condição de material didático - o que não é justo.

Tento explicar melhor.

Quando falamos de Cinema, falamos de Arte. Arte entendida como um modo de produção de saber ou, no mínimo, um modo de transmissão de um saber produzido alhures. Trata-se de apreender algo do Real e mostrá-lo em imagens em movimento; converter apreensões conceituais em luz modulada e projetada num poema assimilável pelo olhar; tocar a alma do espectador com algo que mobilizou o autor à produção artística exibida.

Ou seja, no Cinema acontece, embora nem sempre, a produção de obras de arte. Filmes. Com valor próprio. Não puros mediadores de mensagens edificantes ao gosto do propósito da hora.

Na condição de obra de arte, um filme não deve nada a ninguém. E seu autor só deve honestidade a si mesmo e à leitura de mundo que faz e compartilha. É justo que filme e autor sejam plenamente respeitados.

Claro que um filme pode conversar com outras produções culturais – o que costuma enriquecer as duas pontas do diálogo. Entretanto, para que não se perca um dos pólos da conversa, a advertência que aqui se levanta pode ter algum valor. A posição de quem se entrega ao “cinema e...” deve estar aprumada por forças gravitacionais que incluam, simultaneamente, o tema em questão e o filme em si, como força viva e autônoma.

Outro risco que cerca o Cinema, se o admitimos posto a serviço de uma proposta qualquer (ideológica, religiosa, filosófica, política, etc...), fica à espreita no terreno do financiamento. Um edital público poderá, dentro desse viés, privilegiar não o melhor projeto artístico, mas sim aquele mais alinhado com as preferências do poderoso da vez, ou com o conteúdo politicamente correto do momento – o que é sempre prejuízo para todos e injusto para com a Arte.

A Arte, posta a serviço de qualquer doutrina, passa ao estatuto de pura propaganda; perde sua mobilidade na exploração do Real em busca do novo e torna-se ferramenta de repetição de cânones consagrados, sempre paroquiais no tempo e no espaço; premia o oportunista e castiga o autor original, sintonizado com sua própria leitura do mundo, tão mais precisa quanto mais fundo ele se lê a si mesmo.

Quem perde é a Cultura, o mais digno destino para o mal-estar que aflige o humano.

Curitiba, 06 de Agosto de 2021

Vera Lúcia de Oliveira e Silva