terça-feira, 17 de agosto de 2021

Cinema e...


Sempre que a proposta é falar de Cinema e... qualquer outro tema, por mais digno e importante que seja, cabe sempre erguer uma advertência: há um enorme risco de que se embarque em proselitismo ou doutrinação.

Portanto, parece sensato que, tanto aquele que faz a proposta, quanto aquele que a aceita, leve tal advertência a sério. Advertido o orador – e advertidos os ouvintes, para o caso de que o primeiro caia em tentação – talvez se faça anteparo ao risco da catequese.

Outro perigo, talvez igualmente grave, é o de se reduzir o filme à pura ilustração, com o que se tem uma obra de arte degradada à condição de material didático - o que não é justo.

Tento explicar melhor.

Quando falamos de Cinema, falamos de Arte. Arte entendida como um modo de produção de saber ou, no mínimo, um modo de transmissão de um saber produzido alhures. Trata-se de apreender algo do Real e mostrá-lo em imagens em movimento; converter apreensões conceituais em luz modulada e projetada num poema assimilável pelo olhar; tocar a alma do espectador com algo que mobilizou o autor à produção artística exibida.

Ou seja, no Cinema acontece, embora nem sempre, a produção de obras de arte. Filmes. Com valor próprio. Não puros mediadores de mensagens edificantes ao gosto do propósito da hora.

Na condição de obra de arte, um filme não deve nada a ninguém. E seu autor só deve honestidade a si mesmo e à leitura de mundo que faz e compartilha. É justo que filme e autor sejam plenamente respeitados.

Claro que um filme pode conversar com outras produções culturais – o que costuma enriquecer as duas pontas do diálogo. Entretanto, para que não se perca um dos pólos da conversa, a advertência que aqui se levanta pode ter algum valor. A posição de quem se entrega ao “cinema e...” deve estar aprumada por forças gravitacionais que incluam, simultaneamente, o tema em questão e o filme em si, como força viva e autônoma.

Outro risco que cerca o Cinema, se o admitimos posto a serviço de uma proposta qualquer (ideológica, religiosa, filosófica, política, etc...), fica à espreita no terreno do financiamento. Um edital público poderá, dentro desse viés, privilegiar não o melhor projeto artístico, mas sim aquele mais alinhado com as preferências do poderoso da vez, ou com o conteúdo politicamente correto do momento – o que é sempre prejuízo para todos e injusto para com a Arte.

A Arte, posta a serviço de qualquer doutrina, passa ao estatuto de pura propaganda; perde sua mobilidade na exploração do Real em busca do novo e torna-se ferramenta de repetição de cânones consagrados, sempre paroquiais no tempo e no espaço; premia o oportunista e castiga o autor original, sintonizado com sua própria leitura do mundo, tão mais precisa quanto mais fundo ele se lê a si mesmo.

Quem perde é a Cultura, o mais digno destino para o mal-estar que aflige o humano.

Curitiba, 06 de Agosto de 2021

Vera Lúcia de Oliveira e Silva


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