quinta-feira, 27 de outubro de 2022

“NÓS” e “Mnemosyne”: os ventos selvagens do cinema

por Giovanni Comodo



“NÓS” (2021) é um filme corajoso e extraordinário. Em cinco minutos vemos fugas, refugiados, desilusões, guerra, muros, solidões e a imensidão do cosmos. A passagem do tempo, morte, vida e esperança, com a força da natureza a nos erguer, mesmo no mais absoluto deserto. Este grande filme é extraordinário por vir de um artista também extraordinário: Nelson Fernandes, também conhecido como Zina Caramelo, que usa diversas técnicas para executar suas visões – aqui, desenhos, recortes, substituições, animação de silhuetas e de papel frame a frame, animação 2D com stop motion, entre outras como vimos no making off que acompanhou o filme, revelador do processo incansável e meticuloso de construção das imagens.

Zina trabalhou por mais de dois anos em “NÓS”, sozinho, noites adentro em seu ateliê na pequena cidade de Fundão, Portugal, reservando os dias para seu trabalho salariado. É preciso coragem, afinal, para pôr em prática uma empreitada como esta: “É plano a plano, como se fosse um combate corpo a corpo. Não consegues desistir, ficas possesso a lutar por uma ideia. Apodera-se de ti, é mais forte do que tu. Não podes descansar até acabar. Se não fazes, sentes-te uma merda. No final do trabalho, podes olhar para trás e dizer ‘demorei dois anos.’ Mas enquanto estás a trabalhar não pensas nisso: o tempo passa e nem te dás conta. É bom sinal. [Risos] Confrontas-te com tantos problemas para resolver no stop motion que não há folga para angústias existenciais. O filme, no fundo, é o resultado da quantidade de problemas que conseguiste solucionar ou não…”, declarou em entrevista ao Jornal do Fundão.

Discípulo de Norman McLaren e René Laloux, Zina compartilha com eles a independência, a criatividade e o olhar inquieto para o mundo. “Um só plano do Wes Anderson, nas suas animadas megaproduções, custa infinitamente mais do que toda a minha obra passada e futura”, afirma. Com algumas folhas de papeis, lápis, tesoura e uma câmera, o diretor nos entrega o universo. Do pouco, surge tudo.

Como Zina, Mário Fernandes é também um artesão indomável das imagens. Realiza seus filmes sempre de forma independente, contando apenas com a colaboração de amigos, em frente e atrás da câmera. Seu primeiro filme, um western de quase 3 horas, teve como orçamento apenas cinquenta centavos diários para o café nas filmagens – “Lost West” (2011) tornou-se objeto de culto e lendas, em raríssimas exibições. Seu longa mais recente, “O Pastor da Noite” (2016) foi todo rodado de forma clandestina, nas madrugadas do hostel em que trabalhava como porteiro noturno. Trata-se de uma filmografia impressionante, de raro rigor, erudição e ética.

“Muito mais do que uma obra para o museu, o cinema é uma experiência existencial”, escreveu o realizador sobre Sam Peckinpah – um dos seus ídolos – mas pode ser entendido como uma declaração de princípios sobre si mesmo. Em rara entrevista, ao ser perguntado sobre onde acaba o cinema e começa a vida, Mário respondeu que são coisas ligadas de forma visceral: “durante a rodagem do meu primeiro filme, o Bruno Mello (um tipo que me ajudou muito) conheceu a minha prima Marta Lambelho, apaixonaram-se aí e hoje têm dois filhos. O filme ajudou a que dois seres se apaixonassem e que duas novas pessoas viessem ao mundo. E, graças a esse filme louco, conheci e fiquei amigo para a vida de tantas pessoas maravilhosas. O cinema também é isso, ou talvez seja sobretudo isso. Estás a ver? Não consigo trair essa verdade em relação às pessoas que filmo, em relação aos espaços, em relação à minha experiência… E a minha experiência porquê? Porque é o que conheço, não é uma cena egocêntrica. E tenho muita sorte por poder fazer os filmes com as pessoas que mais amo. Digo-te que prefiro falhar de grande, espalhar-me à grande, mas ir com essas pessoas até o fim” – como Peckinpah ou Cimino, cineastas essenciais para sua obra, grandes românticos de uma independência incompreendida.

“The Last Day of Leonard Cohen in Hydra” (2018), rodado em quatro dias com amigos queridos e sem sequer equipamento de som, une Paul Valéry, Cohen, Marianne Ihlen, Straub-Huillet, Godard, Ray Charles e Raymond Chandler para nos mostrar as andanças de um detetive sentimental nas Ilhas Gregas à procura de uma mulher amada sob a luz helênica que tanto testemunhou a morte. Um longo adeus banhado em mistério, melancolia e beleza, encerrado pela pergunta “o que é isso que chamam de Amor?”, cantada nos créditos por Marta Ramos (realizadora, amiga e parceria criativa em vários filmes) e Loukia Batsi (atriz, poeta e outrora parceira amorosa do diretor).

“Mnemosyne” (2022) completa o díptico grego do realizador, novamente investigando o luto e a memória, partindo dos versos de Propércio. Se no curta anterior havia o silêncio e uma certa calma ensolarada perante o tempo, aqui há som, vento e nuvens carregadas. Tudo se agita como as ondas que quebram nas pedras (de uma força imagética langiana) enquanto observamos uma mulher (Batsi, que também é a voz no filme) caminhar solitária entre as ruínas milenares.

Um filme de movimento e vento – a origem do cinema – em que as imagens parecem elas mesmas esculpidas pela ação do tempo como suas paisagens. Mário captura em seu filme instantes fugidios da vida (o calor da mão no vidro antes de Batsi desaparecer do filme), como se lutasse contra o apagamento da memória a que todos estamos condenados a experimentar.

“Queima os teus versos” ouvimos em grego (o que é esta língua a qual devemos tanto?), como se uma sentença para o próprio filme e o cinema. Resta viver, parece propor “Mnemosyne”. “A vida é que vai dando as coisas. Os filmes acontecem quando é mesmo necessário”, já dizia Mário na entrevista.

Nos trabalhos de Zina Caramelo e Mário Fernandes, a solidão exibida em seus personagens é um convite para a comunhão e a vida, repleta de vento e possibilidades. Eu e você, que agora conhecemos seus filmes, podemos partilhar desta amizade também.


Cinemateca de Curitiba, 23 de outubro de 2022.
Folha para a Sessão Além-mar.

Imagens que ilustram a postagem, de cima para baixo: "Nós" e "Mnemosyne".

sábado, 22 de outubro de 2022

Clube do Filme: Agente Triplo

O Clube do Filme do Atalante continua em atividade no formato virtual. A cada mês nos reunimos na quarta quarta-feira para a discussão de um filme e textos relacionados, sempre gratuitamente.

Em 2022 iremos explorar a filmografia do cineasta francês Éric Rohmer (1920-2010)!

Em outubro, continuamos explorando a obra tardia do diretor com "Agente Triplo" (
Triple Agent, 2004).


"Mas sobretudo, esse filme é um filme de olhares: olhares obstinados e receosos das testemunhas, olhares profissionais dos policiais, do advogado, dos comparsas, olhares de loucura de Vera Milles, olhares de Henry Fonda. Como descrevê-los? São deles, talvez, que jorra mais claramente o significado do filme. E há outras mil belezas, essa majestade ordinária do tom, essas elipses ousadas ou essas lentidões desejadas, mas que não engendram nunca a lassidão, essa cena do espelho quebrado tão brutal e nova na sua decupagem que Hitchcock evocava, nos contando recentemente, Stravinsky e Picasso."
- Éric Rohmer, em sua crítica sobre "O Homem Errado", de Alfred Hitchcock, uma das leituras indicadas neste mês.

O filme está disponível aqui. Qualquer problema, fale conosco.

Textos indicados para leitura:
A) Crítica do filme, por Paulo Ricardo de Almeida. Disponível aqui.
B) Crítica de "One Exciting Night" de D. W. Griffith, por Éric Rohmer. Disponível aqui.
C) Crítica de "O Homem Errado" de Alfred Hitchcock, por Éric Rohmer. Disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi.

Serviço:

Clube do Filme: "Agente Triplo" (2004), de Éric Rohmer
Dia 26/10 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante


terça-feira, 18 de outubro de 2022

Sessão Além-Mar: curtas inéditos portugueses

Em 23 de outubro, uma sessão especial com a estreia de dois curtas-metragens inéditos de realizadores portugueses independentes na Cinemateca de Curitiba. Entrada franca!

Pela primeira vez no Brasil, os trabalhos mais recentes de dois dos cineastas mais indômitos e criativos de Portugal: Nelson Fernandes e Mário Fernandes.

Nelson apresenta NÓS, poderosa animação de stop motion feita de forma totalmente independente, mesclando diversas técnicas. O filme já esteve presente em 85 festivais internacionais e será acompanhado de seu making off, oportunidade para descobrirmos os segredos das imagens que compõe seu filme.

Mário Fernandes completa seu díptico grego de amor e passagem do tempo em MNEMOSYNE, que será exibido pela primeira vez fora de Portugal. A partir dos versos de Propércio, o realizador investiga novamente o luto em um filme de vento, luto e poesia após The Last Day of Leonard Cohen In Hydra – que também integra a sessão.

Sobre os realizadores:

Zina Caramelo é o nosso Norman McLaren da animação pelas suas preocupações existenciais no homem em conflito consigo próprio. Uma dúzia de folhas dependuradas num estendal ostentam grandes bolhas de oxigénio debaixo de água e estes desenhos pertencem ao filme citado acima que transporta de imediato o visitante para um universo estranho e subjugante. Zina Caramelo usa o seu nome de Nelson Fernandes para assinar os seus filmes e foi com ele que ganhou vários prémios nacionais e internacionais.
- Manuel da Silva Ramos, sobre NÓS. Texto completo aqui.

Estes trinta minutos de cinema magnético, de amor sublime, de amor louco, são inusitados na sétima arte portuguesa e constituem a partir de agora das coisas mais belas e fulgurantes que se fizeram nos últimos tempos em Portugal. E isso porque Mário Fernandes é, apesar dos seus trinta e três anos, um dos cineastas mais cultos do nosso país, e, sem dúvidas nenhumas, aquele que sabe melhor ler a literatura. Com a Grécia em pano de fundo, o cineasta desnuda-se e dá-nos um retrato poderosíssimo de si próprio.
- Manuel da Silva Ramos, sobre The Last Day of Leonard Cohen In Hydra. Texto completo aqui.

"...vamos ver The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, que novamente não vai corresponder ao esperado nem às expectativas, numa atitude e num trabalho que é menos experimental – modelo já completamente viciado e académico e que hoje em dia vai correspondendo ao anunciado nas sinopses e na imprensa – e que tem tudo a ver com a aventura, com o desbravar terreno, neste caso, captar, perseguir, transfigurar, reter a luz em questão. (...)  Tudo se parece passar realmente num único dia, como nos diz o título, no último dia. E numa luta e numa tensão primordiais. Uma luta entre a incandescência e o fogo com a claridade e a água. Nunca se sabendo quais destes representa o negro, a consumição. Não é seguro que seja o fogo a devorar o que há para devorar e que o branco signifique a alvorada e o recomeço. Estamos no princípio da tensão. Nada é preto no branco e o entrelaçamento, a comunhão e a ruptura são a matéria principal e em causa deste abismo; que tal como a voz-off e toda a musicalidade intrínseca, a partir de um certo ponto, algures naquela floresta de símbolos, se volve sonoridade concreta, parecendo, como por golpes mágicos ou naturais, pertencer à imagem e à sua envolvência, cinema puramente sonoro. O resto é um mistério, ou sem história ou com as histórias de todos os seres que amaram e destroçaram algo por uma educação no mundo, é a impossível combinação do policial sem pais nem filhos do Professione: reporter de Michelangelo Antonioni com o lento cerimonial de Sergio Leone aparentemente contradicto pela lembrança de F.W. Murnau. Mais uma vez, vamos estar aonde nunca pensamos. Mudo... Sou o mesmo... Mudo... Sou o mesmo..."
- José Oliveira, sobre The Last Day of Leonard Cohen In Hydra. Texto completo aqui.

Programação completa:



NÓS

(POR, 2021, 5 min., animação, indicação livre)
Direção: Nelson Fernandes.
NÓS é um curta-metragem de animação que mistura diversas técnicas de stop motion, propondo uma viagem pela conflitiva condição humana. Guerra, solidão, natureza, travessias e sonhos partidos são alguns dos aspectos recorrentes neste poema animado em papel.


Making of completo do "NÓS"

(POR, 2021, 10min., documentário, indicação livre)

Direção: Nelson Fernandes.

O documentário revela o processo artístico da animação e suas diversas técnicas artesanais utilizadas.


The Last Day of Leonard Cohen In Hydra
(POR, 2018, 29 min., drama, 14 anos, legendado)
Direção: Mário Fernandes.
Um detetive sentimental obcecado por uma fotografia com as memórias de Leonard Cohen e Marianne Ihlen na ilha de Hidra, na Grécia.


Mnemosyne
(POR, 2022, 16 min., drama, 14 anos, legendado)
Direção: Mário Fernandes.
Elenco: Loukia Batsi
Elegia cinematográfica a partir de Propércio, “Mnemosyne” é a viagem de uma mulher enlutada pela Grécia de todos os tempos.

(Duração total aproximada do programa: 60 minutos + debate após a sessão)

Serviço:

Sessão Além-mar: curtas portugueses inéditos [NÓS, Making off de NÓS, The Last Day of Leonard Cohen In Hydra e Mnemosyne]
Domingo, 23/10
Às 18h
Duração: 60 minutos + conversa sobre os filmes
Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)
(41) 3321-3552.
ENTRADA FRANCA

Programação e produção: Giovanni Comodo
Arte: @heitkoeter
Apoio: Coletivo Atalante