por Giovanni
Comodo
“NÓS” (2021) é
um filme corajoso e extraordinário. Em cinco minutos vemos fugas, refugiados, desilusões,
guerra, muros, solidões e a imensidão do cosmos. A passagem do tempo, morte,
vida e esperança, com a força da natureza a nos erguer, mesmo no mais absoluto
deserto. Este grande filme é extraordinário por vir de um artista também
extraordinário: Nelson Fernandes, também conhecido como Zina Caramelo, que usa
diversas técnicas para executar suas visões – aqui, desenhos, recortes, substituições,
animação de silhuetas e de papel frame a frame, animação 2D com stop motion, entre outras como vimos no making off que acompanhou o filme,
revelador do processo incansável e meticuloso de construção das imagens.
Zina trabalhou
por mais de dois anos em “NÓS”, sozinho, noites adentro em seu ateliê na
pequena cidade de Fundão, Portugal, reservando os dias para seu trabalho
salariado. É preciso coragem, afinal, para pôr em prática uma empreitada como
esta: “É plano a plano, como se fosse um combate corpo a corpo. Não consegues
desistir, ficas possesso a lutar por uma ideia. Apodera-se de ti, é mais forte
do que tu. Não podes descansar até acabar. Se não fazes, sentes-te uma merda.
No final do trabalho, podes olhar para trás e dizer ‘demorei dois anos.’ Mas enquanto estás a trabalhar não pensas
nisso: o tempo passa e nem te dás conta. É bom sinal. [Risos] Confrontas-te com
tantos problemas para resolver no stop
motion que não há folga para angústias existenciais. O filme, no fundo, é o
resultado da quantidade de problemas que conseguiste solucionar ou não…”,
declarou em entrevista ao Jornal do Fundão.
Discípulo de Norman McLaren e René Laloux, Zina compartilha com eles a independência, a criatividade e o olhar inquieto para o mundo. “Um só plano do Wes Anderson, nas suas animadas megaproduções, custa infinitamente mais do que toda a minha obra passada e futura”, afirma. Com algumas folhas de papeis, lápis, tesoura e uma câmera, o diretor nos entrega o universo. Do pouco, surge tudo.
Como Zina,
Mário Fernandes é também um artesão indomável das imagens. Realiza seus filmes
sempre de forma independente, contando apenas com a colaboração de amigos, em
frente e atrás da câmera. Seu primeiro filme, um western de quase 3 horas, teve
como orçamento apenas cinquenta centavos diários para o café nas filmagens –
“Lost West” (2011) tornou-se objeto de culto e lendas, em raríssimas exibições.
Seu longa mais recente, “O Pastor da Noite” (2016) foi todo rodado de forma
clandestina, nas madrugadas do hostel em que trabalhava como porteiro noturno. Trata-se de uma filmografia impressionante,
de raro rigor, erudição e ética.
“Muito mais do que uma obra para o museu, o cinema é uma experiência existencial”, escreveu o realizador sobre Sam Peckinpah – um dos seus ídolos – mas pode ser entendido como uma declaração de princípios sobre si mesmo. Em rara entrevista, ao ser perguntado sobre onde acaba o cinema e começa a vida, Mário respondeu que são coisas ligadas de forma visceral: “durante a rodagem do meu primeiro filme, o Bruno Mello (um tipo que me ajudou muito) conheceu a minha prima Marta Lambelho, apaixonaram-se aí e hoje têm dois filhos. O filme ajudou a que dois seres se apaixonassem e que duas novas pessoas viessem ao mundo. E, graças a esse filme louco, conheci e fiquei amigo para a vida de tantas pessoas maravilhosas. O cinema também é isso, ou talvez seja sobretudo isso. Estás a ver? Não consigo trair essa verdade em relação às pessoas que filmo, em relação aos espaços, em relação à minha experiência… E a minha experiência porquê? Porque é o que conheço, não é uma cena egocêntrica. E tenho muita sorte por poder fazer os filmes com as pessoas que mais amo. Digo-te que prefiro falhar de grande, espalhar-me à grande, mas ir com essas pessoas até o fim” – como Peckinpah ou Cimino, cineastas essenciais para sua obra, grandes românticos de uma independência incompreendida.
“The Last Day of Leonard Cohen in Hydra” (2018), rodado em quatro dias com amigos queridos e sem sequer equipamento de som, une Paul Valéry, Cohen, Marianne Ihlen, Straub-Huillet, Godard, Ray Charles e Raymond Chandler para nos mostrar as andanças de um detetive sentimental nas Ilhas Gregas à procura de uma mulher amada sob a luz helênica que tanto testemunhou a morte. Um longo adeus banhado em mistério, melancolia e beleza, encerrado pela pergunta “o que é isso que chamam de Amor?”, cantada nos créditos por Marta Ramos (realizadora, amiga e parceria criativa em vários filmes) e Loukia Batsi (atriz, poeta e outrora parceira amorosa do diretor).
“Mnemosyne” (2022) completa o díptico grego do realizador, novamente investigando o luto e a memória, partindo dos versos de Propércio. Se no curta anterior havia o silêncio e uma certa calma ensolarada perante o tempo, aqui há som, vento e nuvens carregadas. Tudo se agita como as ondas que quebram nas pedras (de uma força imagética langiana) enquanto observamos uma mulher (Batsi, que também é a voz no filme) caminhar solitária entre as ruínas milenares.
Um filme de movimento e vento – a origem do cinema – em que as imagens parecem elas mesmas esculpidas pela ação do tempo como suas paisagens. Mário captura em seu filme instantes fugidios da vida (o calor da mão no vidro antes de Batsi desaparecer do filme), como se lutasse contra o apagamento da memória a que todos estamos condenados a experimentar.
“Queima os teus versos” ouvimos em grego (o que é esta língua a qual devemos tanto?), como se uma sentença para o próprio filme e o cinema. Resta viver, parece propor “Mnemosyne”. “A vida é que vai dando as coisas. Os filmes acontecem quando é mesmo necessário”, já dizia Mário na entrevista.
Nos trabalhos de Zina Caramelo e Mário Fernandes, a
solidão exibida em seus personagens é um convite para a comunhão e a vida,
repleta de vento e possibilidades. Eu e você, que agora conhecemos seus filmes,
podemos partilhar desta amizade também.
Cinemateca de Curitiba, 23 de outubro de 2022.
Folha para a Sessão Além-mar.
Imagens que ilustram a postagem, de cima para baixo: "Nós" e "Mnemosyne".