segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Brian de Palma: mal visto, mal dito


por Bruno Andrade

Sobre Brian De Palma, duas proposições:

1. Seu cinema precisa ser visto
Vale lembrar o leitor que o cinema é sobretudo uma arte de imagens (O Pagamento Final), da união de/espaço entre as imagens (Femme Fatale) e do cruzamento de sons com imagens (Um Tiro na Noite). Existem os filmes, e existem alguns filmes – poucos, é verdade – que tratam direta ou indiretamente do fazer cinematográfico, momentos em que o cinema é tornado tema e matéria por e para si próprio. Apenas precisamos observar os exemplos de Godard, do Hitchcock de Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai, de Abbas Kiarostami, de Tsui Hark, de Dario Argento... e de Brian De Palma. Mas se em Godard temos a polivalência, em Hitchcock o catolicismo, em Argento o excesso operístico, em Hark a arte schizo e em Kiarostami a contenção, qual característica pode-se atribuir a De Palma? Não, com certeza não será o maneirismo que tantos lhe acusam de exibir. A técnica brilhante – sim, qual o problema? – revela antes de qualquer outra coisa um formalista interessado na análise, na revisão e na reflexão do correr das imagens, do qual seu cinema e todo o cinema que lhe interessa é altamente dependente. Por enquanto, porém, faz-se melhor permanecer naquilo que tange sua notável habilidade como encenador; em outras palavras, o estilo De Palma que incomoda tantos.

Na técnica, o olhar
Já de início nota-se o domínio assustador da gramática cinematográfica no cinema de De Palma: a beleza nas composições, que dão conta de um close-up da mesma maneira que o mais amplo dos planos; a leveza nos movimentos da steadycam; uma certeza que impinge cada movimento, cada quadro, cada plano; e, finalmente, aqueles longos movimentos realizados pela câmera, seja através do uso do travelling ou da grua, onde De Palma passa lentamente por um sem-número de pessoas, de objetos e de ambiências diversas. A capacidade do diretor de tirar do vasto repertório de imagens com o qual costuma trabalhar apenas aquilo que lhe é essencial faz primeiros trabalhos como O Que Andam Fazendo com Nossas Mulheres? e Hi, Mom! – momentos onde sua técnica se apresenta mais rude e, talvez, mais primitiva – mostrarem propósitos que o autor retoma em filmes de maior arrojo como Um Tiro na Noite e Dublê de Corpo (a saber, as relações entre o olhar e o objeto olhado, os jogos de aparências que tomam forma via encenações intrincadíssimas e improváveis). Os aparatos de registro de imagem – câmeras de vídeo, máquinas fotográficas, óculos ou até mesmo simples olhares ocultos – estão sempre envolvidos em algum tipo de joguete de simulacro e manipulação (o artifício da encenação tão caro a De Palma).

Os Mil Olhos do Sr. De Palma
Existe algo que De Palma quer fazer, e ele o faz com a aplicação de um pupilo muito impressionado pelo que viu de seus mentores (não precisamos de joguinhos aqui: Hitchcock em especial, mas também Orson Welles, Jean-Luc Godard e Georges Méliès). Os empregos de modelos e princípios que lhe interessam sempre parecem se adequar bastante bem ao tipo de cinema narrativo que vem realizando, mas ainda assim permanece qualquer coisa que incomoda mesmo alguns dos apreciadores de seu cinema. O que? A busca do cineasta por um incessante questionamento de tudo aquilo que é mostrado ao espectador. Para tanto, uma "imagem de base" é fornecida, seja na forma de um plano, uma seqüência, uma cena ou um personagem. Esta imagem põe diante do espectador um máximo de signos e dispositivos de narração. Algumas informações são ocultadas, outras são evidenciadas ao ponto do exagero. O filme nada mais é do que uma análise absurdamente detalhada desta "imagem de base", justamente a imagem que na maioria das vezes inicia os filmes do diretor. Em O Pagamento Final, Carlito Brigante recebe um tiro, cai nos braços de sua amada Gail e é levado por uma maca. Começa a nos falar como num relato, retomando todo o percurso que traçou antes deste momento. É a partir desta narração, também a narração de De Palma, que teremos a "imagem de base" desenredada: todos os signos terão ao final – que nada mais é que o replay de toda a ação que se dá nos primeiros minutos do filme – significações que não lhes eram próprias em um primeiro momento. Podemos citar Pecados de Guerra como exemplo idêntico de estrutura, além de outros filmes que não utilizam do formato flashback mas que também mostram projetos equivalentes de narrações que se constróem a partir de uma imagem que encerra o tema e/ou o assunto do filme, como são os casos de Um Tiro na Noite, Olhos de Serpente, Carrie – A Estranha, Scarface e Síndrome de Caim.

Uma história de cinema
Pois é, Brian De Palma gosta de cinema. Algo estranho para quem realiza filmes, a se julgar por todas as acusações que vem recebendo desde seus primeiros trabalhos. O fato de que o que vemos nos seus filmes é muito menos um agrupamento de citações aleatórias que a estruturação de uma visão muito específica e pessoal sobre um certo tipo de cinema parece incomodar muito pouco seus preguiçosos detratores. Bem verdade, existe certo exibicionismo nos retornos a Hitchcock, a Godard, a Welles. Mas a apropriação de modelos já estabelecidos pelos mestres da imagem e som atende uma necessidade interna na obra de De Palma: a de se olhar algo já feito para que um processo de criação outro (o de De Palma, o dos seus protagonistas) se inicie. Seus filmes nada mais são do que espelhos deste processo de produção, e seu universo, repleto de voyeurs e investigadores, só pode se tornar concreto se o próprio De Palma toma uma "imagem de base" (de outros filmes que não os seus, ou mesmo dos seus filmes) para desencadear uma narrativa que lhe interesse. Portanto...

2. Seu cinema precisa ser revisto
A primeira seqüência de Um Tiro na Noite mostra-se emblemática no que permite compreender todo o processo depalmiano: assistimos a um filme slasher típico da década de 80. O assassino observa as ações de diversas mulheres num dormitório para estudantes antes de entrar em um banheiro. Segurando uma faca, dirige-se ao único chuveiro onde alguém toma banho (obviamente uma bela loira). O assassino recolhe a cortina de plástico que oculta o chuveiro, ergue a faca e aproxima-se da sua vítima lentamente quando esta percebe sua presença e lança um grito... absoluta e completamente desafinado. Corte, recorte: uma sala de cinema, onde o diretor e o sonoplasta do filme assistem à fita. O diretor grita um "Kill it!", apavorado com a péssima qualidade do grito, e discutirá com o sonoplasta sobre a péssima qualidade dos efeitos sonoros e sobre uma possibilidade de dublar o tal grito. É da busca do sonoplasta por um outro grito – um grito falso, portanto – que De Palma tira um inventário das suas próprias obsessões: filmes amadores, problematização da imagem e som nos mesmos moldes do Antonioni de Blowup e do Dario Argento de Prelúdio Para Matar e Suspiria, a fascinação por todo o aparato técnico próprio do cinema, o estudo do processo de captação de imagens e a junção destas com seus respectivos sons, e o tema da morte como destino único, invariável e inevitável. Sim, um cinema de retorno à imagem essencial, à imagem fundamento. Mas afinal, tudo isso para quê? Uma resposta do público, aquela que mais interessa a De Palma: o abandono de uma condição espectatorial molenga a que muitos já estão acostumados e a conseqüente conquista de uma relação com a imagem baseada no estudo e no questionamento. Em outras palavras, a passagem do espectador de mero voyeur a investigador.

Uma história de imagens / A ilusão 24 quadros por segundo
No interesse de De Palma por uma outra trama que se constituirá paralela à trama principal do filme – a farsa na qual seus protagonistas são invariavelmente engodados – já se percebe sua curiosidade pela duplicidade das formas. O seu universo é repleto de tipos já perpetuados pelo cinema: os gangsters (Carlito Brigante, Tony Montana), os tiras bons (Eliot Ness), os tiras maus (detetive Marino), os tiras bons e maus (comandante Kevin Dunne, Rick Santoro), os castrados (o soldado Eriksson, Jack Terry, Ethan Hunt), os transexuais (doutor Robert Elliott, Carter na sua encarnação Margo), as femme fatales (Laure Ash, Julia Costello, Kate Miller), os traídos (Carlito Brigante, Carter, Ethan Hunt, Rick Santoro), os traidores (Dave Kleinfeld, Cain, Jim Phelps, comandante Kevin Dunne). Mas para que retomar essas figuras se não por uma impostura, uma incapacidade de criar personagens com um mínimo de verossimilhança? O que De Palma faz, e poucos lhe dão o devido valor por isso, é jogar uma outra luz, deixar brotar uma ambigüidade que poucas vezes foi ofertada a estes personagens. Imagens que nos fazem pensar em outras imagens, personagens que nos fazem pensar em imagens, duplos que não correspondem às suas origens, tempos dilatados que não correspondem aos seus espaços, espaços exagerados que insistem em apresentar simetrias e informações visuais de toda a espécie: aqui temos um raciocínio de imagens,através das imagens, que tem a imagem como ponto de partida e outra imagem como finalidade.

Brain De Palma
O cérebro que engendra e que opera todo o excesso de e das imagens, através das imagens. A multiplicação dos pontos de vista, daquilo que vários olhares registram de uma cena, das possibilidades oferecidas por todos os tipos de aparatos de registro de imagem (vídeo ou película, binóculos ou telescópios, e até mesmo nossos olhos, vejam só); apenas de uma loucura analítica, de um estágio onde não mais se sabe o que é real ou ilusório, revelado ou ocultado, é que se pode tirar alguma conclusão do objeto que se toma como referência. Todos os pontos de vista são incompletos e todos revelam alguma informação vital. A composição criada pelo fotógrafo Nicolas Bardo em Femme Fatale, no entanto, esclarece tudo isso que pode parecer confuso e/ou excessivo ao nos debatermos em um primeiro momento com a obra de Brian De Palma: o que importa não são as imagens mas os joguetes de pontos de vista, a maneira que se agrupa e organiza todas as informações que compõe uma imagem, a operação lógica que leva a tudo isso. Finalmente, podemos dizer que é aquilo que existe entre as imagens – aquilo que comprova que um filme é uma operação que nos leva do fragmento à totalidade, da "imagem de base" a uma "imagem síntese" – o material de todo o cinema que realiza Brian De Palma.

Disponível em: http://www.contracampo.com.br/47/depalmaldito.htm

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Cineclube do Atalante: Dublê de Corpo



O fracassado e claustrofóbico ator de filmes B, Jake Scully, acaba recebendo uma proposta irrecusável: ficar no belo apartamento de um amigo seu enquanto procura lugar para ficar. No novo lar, ele presencia estranhos acontecimentos com uma vizinha, passa a persegui-la e a querer ajudá-la, mas não desconfia do perigo à espreita. 


(Body Double: EUA, 1984 - 114 min. Com:  Craig Wasson, Melanie Griffith , Deborah Shelton. 16 anos.)

Serviço:
Sábado, 17 de novembro
16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante


domingo, 11 de novembro de 2018

O cinema e a memória da água [Le Grand Bleu (Imensidão Azul) de Luc Besson e Palombella Rossa de Nanni Moretti]


por Serge Daney

Quando durante os anos noventa nos debruçarmos sobre as metáforas de sucesso dos anos oitenta, veremos que eram aquáticas. “Só água, só água”, dir-se-á, lembrando tudo o que, em todos os sentidos do termo, flutuava. Da cotação das moedas ao fluxo das imagens televisivas (o tema da "torneira de imagens"), do regresso olímpico da natação sincronizada à promoção da "glisse"1, e, para acabar em beleza, da liquidação (a Leste) do comunismo, sobre fundo de liquefação (a Oeste) do sujeito, é a mesma mensagem que passa: o indivíduo novo, esse anti-herói das sociedades democráticas massificadas, esse "átomo flutuante esvaziado pela circulação dos modelos e por isso continuamente reciclável" (Lipovetsky) é, fundamentalmente, alguém que tem de saber nadar. Como de resto fazer de outro modo num mundo onde um Baudrillard, de longe o melhor jornalista da década, lhe descreveu freqüentemente a “ultra-fluidez”. Mas as metáforas populares (“ça baigne”2) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à tona de água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta. A cultura, doravante, merece a designação de “caldo”, é aí que a mercadoria flutua como uma rainha e a sopa (não apenas a Campbell de Andy Warhol) tem mais comerciantes do que nunca.Como é que o cinema terá sobrenadado neste caldo? Não muito bem. Duas “histórias”, no entanto, a de um mergulhador em apnéia apolítica e a de um jogador de pólo aquático comunista, terão marcado estes últimos anos. Uma, a do Grand Bleu (1988), terá tido um sucesso meteórico junto do que resta do grande público e a outra, a de Palombella Rossa (1989), terá permitido aos que ainda precisam de cinema contarem quantos eram3.Os dois filmes não têm nada em comum a não ser o facto de falarem de formas muito diferentes da mesma coisa. Nos dois casos, há um herói aquático e sedutor, um “banho” ao qual o primeiro escapa “afundando-se” e o segundo ocupando a superfície. Nos dois casos existe uma dificuldade de comunicar que torna o primeiro quase afásico e o segundo doente da linguagem. Do lado de Édipo, o papá está no fundo do oceano e a mamã à beira da piscina, não há mulheres nem ligação sexual e, mesmo quanto às relações com outros homens, apenas uma ligação distante com a competição. Um é imbatível, o outro é um derrotado-nato, mas cada um deles tem apenas um “outro” a dominar que é ele próprio. Estes heróis, confrontados com o que Eric Conan chamava aqui mesmo o “grau zero da alteridade”, são bem do nosso tempo.

Desde a sua saída, Le Grand Bleu incomodou os profissionais da cinefilia. Demasiado inconsistente do ponto de vista estético, o filme tornou-se esta coisa triste: um fenômeno social. Não é portanto o fenômeno que foi analisado mas sim o que revelava do seu público jovem que, radiante, o via, a ele, dez vezes4. Ora Le Grand Bleu não é, como Jean de Florette ou Camille Claudel, o lifting acadêmico de um cinema cujo prazo acabou há muito, nem um enorme sintoma cujas falhas estéticas obrigam a abandoná-lo aos sociólogos. Se deu a tal ponto a sensação de “acertar” foi precisamente porque tinha qualquer coisa a ver com a estética. A única questão é saber se se trata ainda da do cinema. Voltemos à água e mergulhemos mais à frente. O que é desarmante em Le Grand Bleu é a forma como Besson parece contentar-se com o look que o mar há muito tempo tem em todo e qualquer spot publicitário (lembremo-nos do aterrorizador Ultra-Brite). Menos por inaptidão a filmá-lo do que porque o mar, para ele, é isso: um “grande azul” de síntese no qual se “hidrodesliza” sem fazer ondas. Enquanto que Beneix tem ainda um super-ego de artista que o faz sofrer imenso, Besson já utiliza a roupagem do cinema para produzir esses “seres de síntese” que são os indivíduos pós-modernos. É, neste sentido, o primeiro verdadeiro cineasta pós-publicitário, aquele que herda em completa inocência todos os “conceitos visuais” da publicidade e que, por isso, já não sofre com não ser “pessoal” e com alinhar apenas “lugares comuns”. É verdade que rodar um filme continua a ser uma aventura e um desafio desportivos, mas já não é uma aventura do olhar. A água é lisa e o seu fundo está vazio: já não há nada para ver5.O que é que nos diz a publicidade? Que as coisas já foram olhadas, que os olhares são arquivados e que o mundo é já visto. Besson sabe de uma vez por todas com que se parece um mar, um mergulhador, uma mulher, um golfinho, um italiano (ou mesmo uns peruanos). Tal como sabe intuitivamente com que se parecerá o “herói” do individualismo democrático massificado: com um corpo sem órgãos, fora do sexo, fora da linguagem, fora do desejo, programado para efetuar um único movimento. Com um robô sedutor, um autômato auto-legitimado. Por mais que custe aos media, Le Grand Bleu não representa forçosamente uma enésima “nova vaga” na história do cinema francês. É perfeitamente possível imaginar que o parque de salas de cinema só possa ser “salvo” do naufrágio por produtos audiovisuais como este (nem filmes de autor nem filmes de produtor, mas filmes de “promautores”), situados a meio-caminho entre a Disneylândia americana e os “sons et lumières” da cultura européia reciclada. O erro seria pensar que estes produtos não têm conteúdo nem estética. O interesse do Grand Bleu é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que turva, entre “cinema” e “publicidade” não tem já talvez razão de ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. O início dos anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade. Mas no fim desta mesma década, ter-se-á começado a assistir à sua aplicação propagandista. São os cânones publicitários que servem doravante para tratar os “grandes temas”, quer dizer, para declarar guerra ao Mal (do clip antidroga ao negócio da telecaridade) e a unificar o público do lado do “lado bom”. E a fabricar, para o fazer, o “corpo” de síntese dos cavaleiros brancos.Le Grand Bleu (com uma candura muitas vezes tocante que o astuto Ours [O Urso] de facto não tem) deriva desta fabricação. O indivíduo contemporâneo já não é pensável através das velhas categorias de “pessoa” (pós-guerra, neo-realismo) ou de “sujeito” (pós-1968, novas vagas), exige, também ele, um mito fundador e é lógico que este, por seu turno, tenha algo a ver com a água. É do fundo do oceano que, novamente, surgiu o elo que faltava. Pequeno celacanto botticelliano, o mergulhador órfão tem como pai essa coisa simpaticamente lisa que é o golfinho. Neste aspecto é o contemporâneo exato do actual vitalismo ecológico. Se os indivíduos animais têm, também eles, “direitos”, têm certamente o de serem mitologicamente pais dos indivíduos humanos.

É com tudo isto na cabeça que é preciso repetir, com a última energia, que Palombella Rossa é um grande filme e Nanni Moretti o mais precioso dos cineastas. Palombella Rossa é, num certo sentido, a resposta do cinema ao audiovisual. Resposta minoritária porque o “cinema” passou doravante para a minoria (ativa, espera-se). O filme de Besson “acerta” porque propõe a um vasto público o espetáculo de um indivíduo autônomo, ao passo que o de Moretti “visa com verdade” porque fala a um público modesto de um indivíduo plural, estorvante e estorvado, jogador e jogado, falante e falado, insuportavelmente ligado aos outros.Voltemos então à água e mergulhemos de novo. Esta água já não mitológica mas social, a água sobrepovoada de uma piscina onde se ajusta ao mesmo tempo um grande número de contas: com a infância, com a outra equipa, com a política, com as palavras, com o jornalismo, com o cinema, com a memória. Onde a fundação mitológica exigia um efeito de profundidade, o laço social é agora um efeito de superfícies e, cada vez mais, de interfaces. É, dos dois, o filme “superficial” que é mais profundo porque vivemos num mundo onde este todo que é privado aflora à superfície e se torna “público” (a publicidade é precisamente o agente estético e econômico deste “afloramento”).É verdade que Moretti pertence à família dos cômicos que – de Chaplin a Jerry Lewis – tomam tudo (e tudo é demais) a “seu cargo”, mas pertence também àquela outra tradição que – de Keaton a Tati – renunciou a salvar o mundo, pela boa razão que o mundo, para surpresa geral, não se “afunda” (flutua). A água de Palombella Rossa não é nem a grande coisa amniótica de que se sai como de uma câmara de descompressão, simpático e regenerado, nem esse elemento gag onde se cai facilmente com um grande pluf: é o habitat doravante natural das sociedades desreguladas, das economias e das atenções flutuantes, dos interfaces cintilantes e dos encontros aleatórios (o “drible” como figura do laço social, como arte de apagar o adversário).No seu filme precedente (La Messa è finita), Moretti filmava um rapaz muito novo que não se cansava de atravessar a piscina de um lado ao outro: não o filho do golfinho que regressa do fundo matricial mas o pequeno peixe (pescellino) que, custe embora a alguns, “se masturba”6 enquanto desliza, à força de idas e vindas, nos interstícios do social. A cena era sublime porque, ele próprio nadador, Moretti filmava como David Hockney soube pintar: a materialidade da água, o movimento reconquistado e a liberdade da cria humana (que não tem nada a ver com a autonomia do mergulhador publicitário). A cena “respirava”, estava nos antípodas do que caracteriza o mergulho em apnéia: reter o fôlego, não respirar mais.“É aqui que estamos”, parece dizer Moretti. O cinema está aqui, apetece acrescentar. Não irá mais além. Custar-lhe-á. É hoje o nosso único fio condutor e a nossa única memória neste banho pós-moderno onde, à falta de combatentes, a ideia democrática triunfa sob os nossos olhos (“cosa significa oggi essere communista?”), onde rosna a guerra econômica, a aplicação das leis de mercado a todas as esferas da atividade humana e a difícil “subjetivação” de um indivíduo multifacetado, certamente enganador mas talvez mais “forte”7. Mais forte porque poroso, móvel e deslizante? Da água bessoniana surge um mutante demasiado liso e um autômato demasiado perfeito para não inquietar. Na água morettiana é toda uma população (italiana, européia) que se agita entre a nostalgia da História e a fuga em frente. Cada um em suspenso, à imagem do pólo aquático, esse desporto onde se nada menos do que se flutua. Porque flutuar ainda é trabalho.



Notas:


1 Denominação reunindo esportes que implicam deslizar, como o surf, o ski, o snowboard... (NdT)

2 Está tudo a correr bem. (NdT)

3 Estranho sentimento, à saída do filme, de um regresso de cinefilia grupal, “à antiga”. Sentimo-nos de novo prontos a zangarmo-nos com o nosso melhor amigo caso ele não gostasse de Palombella Rossa. A ponto de passar por cima dos defeitos que o filme tem: um certo voluntarismo teórico, um certo desejo asfixiante de dizer tudo.

4 O psicanalista Jean-Jacques Moskowitz confiava ao autor que o seu jovem filho não parava de ver e rever o filme para o compreender melhor. Mas o que é que há de tão difícil de compreender nesta história tão simples? A resposta pode ser esta: Le Grand Bleu diz que a morte existe. Di-lo a crianças que não confundem as gesticulações dos mortos na televisão ou dos filmes gore com a morte, a verdadeira, aquela cujo espectáculo lhes é cada vez mais cuidadosamente escondido. Do mesmo modo, Sociedade dos Poetas Mortos, outro filme-culto para os adolescentes, começa com uma cena onde é significado aos alunos que morrerão um dia.

5 Isto ainda vai mais longe. No seu terceiro filme, Nikita, Besson inventa uma curiosa personagem, interpretada por Jean Réno e chamada “o Limpador”. A função do Limpador é fazer de modo a que não sobre rigorosamente nenhum rasto material de uma operação de espionagem que acabe mal. Ele atravessa portanto o filme como um exaltado, com o seu banho de ácido debaixo do braço. Daí os gags anatômicos bastante divertidos. Podemos ver no Limpador um herdeiro dos “Senhores Limpinhos” da publicidade. E, ao mesmo tempo, podemos ver nesta necessidade de “criar vazio” uma vontade bem firme de não herdar nada. Nem do mundo, nem do cinema.

6 Alusão furiosa à campanha publicitária que, na mesma altura, louvava a nova fórmula dos Cahiers du Cinéma: “já não nos masturbamos”.

7 É evidentemente a questão central da época e nada seria mais temerário do que responder aqui. O autor sente bem que faz parte daqueles a quem a porosidade do social pós-industrial mergulha numa certa soturnidade. Não é o único, mas terá por isso razão? Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão razão? A circulação dos significantes, a flutuação dos significados, o apagamento dos referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a tudo o que a ameaça, fosse embora ao preço de uma certa mediocridade e de uma desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização), do trágico (pelo “segundo grau”), da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura (pelo turismo)? Os “roubos de malas de mão” serão um mal menor? E o “fim da história” não será apenas o começo das aventuras do “mal menor”? Vertiginoso.

Libération, 29 de Dezembro de 1989. Texto recolhido em Devant la recrudescence des vols de sacs à main, — cinéma, télévision, information (1988-1991), Lyon, Aléas Editeur, 1991, pp. 161-165.

Tradução de Luiz Soares Júnior.

Disponível em http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2008/12/o-cinema-e-memria-da-gua-le-grand-bleu.html. Tradução de Luiz Soares Júnior.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Cineclube do Atalante: Palombella Rossa


O filme desenrola-se a partir da amnésia pós-traumática de um conhecido jogador de polo aquático e importante dirigente do Partido Comunista na Itália (imagem biográfica do jovem Nanni Moretti). É num campo de polo aquático que o personagem da história, Michele, tenta reposicionar-se de novo no mundo, num sucessivo aparecimento de fragmentos de memória e personagens que o atormentam ao longo da narrativa.

(Palombella Rossa: ITA, 1989 - 83 min. Com: Nanni Moretti, Asia Argento, Silvio Orlando. 12 anos)

Serviço:

Domingo, 11/11 (excepcionalmente)
16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante.