por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
[Contém spoilers]
A Ponte das artes, de
Eugène Green, me provoca uma reflexão sobre o laço social: a arte como ponte,
como enlace com o Outro. Trata-se de uma primeira leitura, talvez apressada,
mas o filme não fica por aí e vai mais além dessa associação imediata.
É verdade que a Arte –
representada pelos Poemas de Michelangelo e pelo Lamento della
ninfa de Monteverdi – faz a ponte entre Pascal e Sarah: um laço que
antecede e vai além da morte, pois transcende os corpos e reúne as almas.
Um laço que Sarah não pôde fazer
nem com o marido Manoel – um homem encantador, terno e dedicado; nem com a
Arte; nem com a Vida; entregue ao funcionamento da Melancolia, no seu
insuperável ódio ao “si mesmo”.
Mas o cineasta não fica por aí e
explora outras modalidades do laço social:
·
Expõe tratar-se de um laço impossível para os
intelectuais, aqui convocados para encarnar os perversos do mundo,
sempre aptos a usar o outro como objeto, nas suas manobras sórdidas. No
caso, justamente através da Arte, em mais um desses paradoxos surpreendentes da
experiência humana.
·
Fala de um laço paradoxal promovido justamente
pela separação: Christine diz a Pascal que está mais próxima dele depois que se
separaram.
·
E nos faz testemunhar o efeito apaziguador do
laço -apaziguador no sentido de que traz alguma paz ao coração, quando Pascal,
em busca de Sarah, encontra seu marido enlutado. A desconfiança inicial cede a
uma conversa onde aqueles dois homens, por algum tempo, compartilham
pensamentos em torno à Sarah ausente.
Basta comparar
este diálogo com aquele mantido, anteriormente, por Manoel e os pais de Sarah
-uma troca burocrática de palavras, em torno à morte da filha e esposa, como se
falassem de uma notícia ouvida na TV- para se perceber que Eugène Green sabe a
distância que separa a palavra vazia da palavra plena.
Mais além da literalidade da
trama, entretanto, o filme faz laços com outros bens da Cultura, enlaces que
não podem ser acidentais:
·
Como em Crônica de uma morte anunciada, livro
de Gabriel García Márquez e filme de Francesco Rossi (1986), o suicídio
funciona aqui como um clarão que ilumina retrospectivamente todos os anúncios
até então ignorados: a declaração incisiva de Sarah de que a ninfa que ela
deveria encarnar não sabe se está louca ou morta; a “aceitação” dos mal tratos
do seu regente “inominável”; o “esquecimento” de mostrar a Manoel o disco de
vinil já gravado, e que correspondia a uma vitória dela sobre as adversidades;
o sonho em que vê Manoel fazendo a travessia de um rio em busca da “outra
margem”, onde ela supostamente estaria, conduzido por um barqueiro que, na
verdade é um espectro; sua recusa à dança na festa de Ano Novo, com a
“explicação” de que estaria cercada por gente hostil; e, finalmente, o último
ato na ponte.
·
O próprio sonho de angústia tem ressonâncias da
Mitologia Grega. Que rio seria aquele? - o Aqueronte, rio do infortúnio? - o
Lete, rio do esquecimento? ou o Estige, o rio infernal onde ficam os condenados
pelo pecado da ira? E quem seria aquele barqueiro? – Caronte? Não creio que
sejam referências fortuitas.
·
Quanto à cena magistral de Sarah na ponte penso
que, até o último momento, perdura uma certa esperança no espectador, apesar de
todos os prenúncios em contrário. Até o fim não conseguia crer que Eugène Green
tinha matado Sarah. Talvez animada pelo eco de outros filmes onde, na mesma
situação, acontece um resgate: A mulher e o atirador de facas (Girl in
the Bridge / La Fille sur le Pont), de Patrick Leconte, 1999; e A noite
branca (Le notti Bianche), de Lucchino Visconti, 1957.
·
A apresentação do teatro Nô, uma verdadeira aula
da arte de mostrar sem mostrar (como faz com o Ogro de Le Monde Vivent): só
vemos os olhos que vêem, num espetacular jogo de espelhos!
·
O filme faz referências explícitas ao Barroco e
para mim fica uma tentação: explorar semelhanças e contrastes entre o barroco e
o Nô. Penso o barroco como exuberante e excessivo, caudaloso até, como a
arquitetura e a arte decorativa do período; e o Nô como econômico e austero,
reduzido a um ou dois personagens, uns poucos músicos e um cenário com dois
elementos (uma cabana e um pinheiro). A
que estaria o cineasta apontando quando faz essa aproximação, num mesmo filme,
justamente intitulado A Ponte das Artes? Que a Arte acolhe e tem espaço para
todos? Deixo a pergunta em aberto, pois não sei a resposta.
Os demais personagens do filme,
todos eles, de algum modo me tocam:
·
Manoel – um homem encantador, terno e dedicado
que, embora bidimensional – raso e sem espessura – parece disponível e disposto
para o trabalho e o amor. Em seu sonho de angústia, Sarah o coloca num barco
com o qual ele pretende encontrá-la na outra margem, mas o encontro revela-se
impossível, já que ela se dá conta de que não há a outra margem. Lá onde ele a
busca não há nada nem ninguém.
·
O Inominável, aquele “que não tem um nome”, dirá
Pascal, numa acusação carregada de autoridade. Sérgio Alpendre, em seu
belíssimo artigo “O poder da emoção”, publicado na Contracampo de Março de
2010, atribui humor e complexidade ao personagem, no qual eu vejo tão somente
um virtuose patético: pura técnica sem alma alguma - alma que inveja e odeia no
outro. Desempenho estupendo de Denis Podalydès, que encarnou o perverso.
·
Seus companheiros no mundo da cultura que,
reunidos num restaurante, conseguem tornar sórdido o erótico, divertindo-se com
o elogio ao uso perverso do outro (melhor seria dizer abuso), via manobras de
manipulação viabilizadas pela assimetria do poder institucional.
·
O contraste dessa posição cínica com a do michê
que encarna a prostituição honesta, onde se faz sexo sem laço, porém em um
comércio consensual – faço o que você quer e você me paga. O michê aceita a
performance do seu cliente, mas deixa claro: o sexo continua custando 500
francos.
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Cédric, o assistente do Inominável, uma
verdadeira esfinge que parece entrar no jogo perverso de seu patrão, mas sem se
aviltar nem perder a dignidade. Tenta ajudar Sarah, que está fora do seu
alcance - e de quem quer que seja.
·
E sobretudo o próprio Pascal, sujeito fiel a si
mesmo, que não aceita engodos e persegue algo que não sabe o que é, mas que
está certo de reconhecer quando o encontrar.
O que aqui deposito não passa de um conjunto de anotações sobre um filme
belo e enternecedor, sobre o qual muito se pode dizer, sem jamais esgotar sua
complexidade. Apesar da tristeza que o percorre, mesmo nos seus aspectos
cômicos, nele sobrevive, como consolo, uma nota de confiança na Cultura.
Coletivo Atalante / Clube do Filme, 20 de Agosto
de 2023.