terça-feira, 19 de setembro de 2023

La Sapienza, de Eugène Green

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

Um casal inscrito num laço de amor enlutado confronta-se com obstáculos à realização de suas ambições profissionais idealistas – ele (Alexandre) vê-se coagido a adulterar o projeto de Arquitetura e Urbanismo com o qual foi o vencedor de um concurso, para submetê-lo a restrições econômicas e políticas; e ela (Aliénor) tem sua proposta de humanização de uma comunidade de imigrantes ridicularizada como “injeção de testosterona”, já que diagnostica consequências da perda de poder paterno nas famílias desenraizadas de sua própria cultura.

Empreendem uma “Viagem à Itália”, pois ambos declaram que precisam pensar, viagem esta que terá uma trajetória diversa da mostrada por Rosselini – eles vão interagir com um casal de jovens irmãos (Goffredo e Lavínia) e este enlace produzirá efeitos transformadores nas vidas dos quatro personagens.

Com este argumento simples, Eugène Green vai desdobrar uma alternância de imagens arquitetônicas esplêndidas e diálogos densamente significativos, que são a marca de seu estilo: pessoas que falam, e o que dizem denota que escutam, em conversas marcadas por um genuíno interesse mútuo e uma profunda reflexão sobre a vida de cada qual.

Como sempre, o cineasta faz com que os atores ocupem sucessivamente o quadro, de frente para a câmera, falando com o olhar teoricamente dirigido para seu interlocutor no extracampo, porém com uma estratégia que acaba nos aliciando, nós expectadores, a receber a mensagem como se fôssemos nós, cada um de nós, o verdadeiro Outro a quem se destina o discurso.

À medida que o enredo se desdobra, Aliénor, que permanece na maravilhosa Stresa para se dedicar à frágil Lavínia, acometida por um adoecimento manifestamente histérico, conduz a sua cura, num tratamento que se resume a presença e palavra e culmina em um apelo à cultura como destino de salvação: é com o teatro de Moliére que a terapeuta dirige Lavínia a saber da natureza imaginária da sua doença. Lavínia, até então alienada no laço com o irmão e submetida a um papel de inválida atribuído pela mãe (desgostosa pela iminente chegada da cura), vai ao ponto de separação da novela familiar que a libertará de seu mal.

Simultaneamente Aliénor também se transforma. O próprio Eugène Green encarna um personagem arquetípico, que se apresenta como um “caldeu”, numa alusão à mística das forças da Natureza, mas também como “estrangeiro”, essa manifestação concreta da alteridade - e que lhe antecipa o futuro: você vai encontrar um lugar onde poderá amar.

E quem fala em lugar, faça em espaço, tema que, junto com a luz, vai ocupando os diálogos de Alexandre e Goffredo, que viajam juntos, numa trajetória em que os papéis de mestre e aluno vão deslisando a ponto de já não se saber mais quem ensina e quem aprende. Na verdade, ambos ensinam e ambos aprendem, sobre o espaço, a luz e um lugar para as gentes; e sobre modos de se estar no mundo.

Esta viagem à Itália marca uma transformação absoluta na vida dessas pessoas reunidas pela mágica do Cinema, num filme em que Eugène Green explicitamente dá lugar à psicanálise como ferramenta de trabalho. Será um puro acaso? Será também por acaso que ele se põe a mostrar com seu filme que, para além do Conhecimento e da Beleza, existe a Sapiência?

Finalizando:

Quem diz Beleza diz Estética. E toda Estética supõe uma Ética.

Então podemos perguntar: De que Ética se trata?

Em Green, a ética do bem dizer, da escuta e da palavra.


16 de setembro de 2023.

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