segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O realismo aterrorizante em ''Elle''

 por Catalina Sofia

Elle é um filme sobre uma mulher que vive sob o modus operandi masculino, não somente por viver em um mundo comum à todas as mulheres, dentro do cinema ou não. Mas falamos de um mundo essencialmente masculino que o filme mantém. Michèle joga o jogo. Entra nessa queda de braço, não mede esforços para se manter.

O filme começa com o que se diz ser o ápice do que pode chegar a violência masculina, o estupro. Mas o estupro — ainda que carregue toda violência e força que representa no filme, mesmo como fio condutor da narrativa— é apenas o resultado de toda uma violência explicitamente minuciosa e detalhada. Verhoeven nos choca com o estupro e não nos poupa com os demais gestos que serão de suma importância para construção desse universo violento ao longo do filme.

Michèle, após ser violentada, recolhe todos os cacos e entra em uma banheira, que logo é tomada por sangue. É uma mulher violentada, que se vê imersa nessa banheira de sangue, esperamos uma reação dessa personagem, e essa sensação de espera quase agoniante se intensificará à medida em que vemos a forma minimamente incômoda que ela lida com a situação.

Aqui, lembrando, falamos de um filme, e em um filme, se ela chamasse a polícia, a polícia iria atrás do seu algoz. Dificilmente teríamos a história de Michèle enfrentando e desafiando seu algoz em uma lógica mais realista, ainda que estejamos falando de um filme violentamente realista e talvez isso seja o mais assustador.

Sigamos. Conhecendo Michèle, ela jamais aceitaria perder e aqui entra o toque talvez mais polêmico e igualmente fascinante do filme: ela não aceita perder nesse mundo, porque esse mundo é dela e ela lutou por isso. Michèle não aceita essa violência, pelo pavor de se ver como menor, como vítima, que de fato é. E como ela não aceita? Se incorporando a essa violência, tentando se vingar por e através dela.


E se ela não aceita, ela vai se ver então submersa em violência dali pra frente e responder à altura, da maneira como lhe foi ensinada nos meios em que esteve. A ironia do destino nos mostra então que Michèle é chefe de uma produtora de jogos de videogame, algo dito como do “universo masculino” por excelência. Não basta ela ficar alguns minutos sozinha à noite em meio àqueles homens para que ela se sinta aterrorizada após o último incidente. É interessante notar em toda narrativa como ela tem que lidar na maior parte do tempo com homens e como nenhum está acima de qualquer suspeita e isso já colabora muito com o clima de tensão que o filme gera a partir desse primeiro episódio em que Michèle é violentada.

Duvidamos dos seus empregados da empresa (que fazem montagens com ela sendo penetrada por um monstro dentro do jogo que está sendo criado na produtora), duvidamos do seu amante (aliás, esposo da sua melhor amiga), duvidamos do seu ex-esposo (que é ex porque ele a agrediu fisicamente) e duvidamos do seu vizinho (homem pelo qual ela nutre um profundo desejo). Somente não duvidamos do seu filho, que é praticamente um “pau mandado” da noiva, completamente decadente e capenga, sem nenhum tipo de agregador do que se tem como “masculinidade” (ou repleto deles, nunca se sabe).




As relações em Elle, não se dão de forma despretensiosa e banal, todo gesto e conversa é pensado de forma a evidenciar esse clima prestes a transbordar. A vida de uma mulher dentro desse jogo sempre está por um fio, seja pelo medo ou seja pelo desejo, todos os passos a seguir acompanham a culpa. E culpa é algo que Michèle, que não poderia ser vivida por alguém melhor que Huppert, não se permite sentir.

Ela não é uma mulher ideal, custa acreditar que ela seja real. Ela é uma anti-heroína do seu próprio destino. Ela erra, é contraditória e mesmo assim, é vítima. Isso o filme nunca deixa de mostrar e talvez seja isso que alguns possam, erroneamente, insistir em não querer enxergar. Elle não é uma narrativa simples, está muito longe de ser e isso que torna o filme tão rico. Ele é construído sobretudo — e porque não seria? Aliás, falamos de um filme, pelas imagens e pelos gestos que esses personagens dão vida.

Michèle não é um ícone feminista que irá vingar todas as mulheres das violências que ela  constantemente sofre e com certeza todas sofremos. Ela é uma mulher que à sua maneira, controversa e irreverente, vai lidar com o que a vida nesse espaço não lhe poupou. Colocá-la como esse ícone, seria transformá-la em mártir e reduzir sua figura a algo que desde o início não é a premissa do filme, pois falamos de um filme e somente um filme nos permite ampliar as questões dessa forma. O mundo no qual vivemos é também terrivelmente diferente. Isso seria simplificar sua figura extremamente complexa, que vai de melhor amiga à traiçoeira. De chefe majoritária de sua empresa à mulher aterrorizada, em duelo com a culpa.

Michèle é dura e é dura porque assim conseguiu jogar o jogo e não ceder à queda de braço. Ela se insere nesse jogo masculino e se mantém até perceber da pior forma que não é seu espaço. O seu direito de desejar, de fantasiar, seu gozo, lhe é negado. O mesmo homem que a violenta, é o motivo do seu desejo e essa é o grande baque de não poder estar mais nesse espaço. Conviver constantemente com seu algoz.

É interessante notar como nesse filme não temos apenas o estupro que gera a ira de todo desenvolvimento da narrativa, mas também temos um bem mais escondido, quase imperceptível.

Isso é um grande exemplo de como as imagens trabalham.



Robert, seu amante e esposo da sua melhor amiga, a chama para um motel logo no dia seguinte em que Michèle reuniu todos em uma mesa, em que ele inclusive está sentado com Anna, sua esposa (melhor amiga de Michèle), para falar que foi estuprada. Michèle diz que não quer ir a esse motel e é então convencida a aceitar, com tanto que ele prometa que será a última vez.

E então ela vai, mancando, ao motel. Quando tudo termina, Robert diz que gostou de como Michèle se “fingiu de morta” enquanto estavam se relacionando e então ela diz que ali será a última vez, em um tom muito frio e despretensioso. Essa cena, ainda que não mostre a violência de um estupro no qual a vítima é surpreendida em sua casa, tal como na primeira cena, mostra a complexidade e gestos que compõem o filme e que levam a esse tipo de frieza frente a uma cena que ao menos deveria ser vista como tão violenta quanto.

A relação sexual que ocorre em um quarto de motel, “consensualmente” entre dois adultos, aparentemente não deveria ser uma questão, um assunto ou então (como falamos de um filme) uma cena. Mas é.



Vamos então tratar do desejo e o poder, duas constantes na vida dessa personagem. Desejo e poder que culminam em culpa, coisas que muitas vezes andam próximos na vida de uma mulher, mesmo uma mulher como Michèle. Desejo esse que fatalmente, é destinado ao seu algoz.

O desejo: ela o observa através de um binóculo e se masturba enquanto ele carrega um dos três reis magos que ele irá colocar no seu presépio de jardim. Ela não permite frear seu desejo, seja ele como for e por quem for, ainda que ela não saiba exatamente quem é esse homem de verdade. Ela somente sabe que ele é seu vizinho, um homem casado pelo qual ela sente uma atração profunda.

Colocar uma mulher observando um homem através de um binóculo, ou seja, escondida, afastada e fetichizando através desse olhar, deixando pela imagem explícito que esses olhos pertencem a uma mulher, é algo muito forte. A imagem do homem observando o corpo feminino, tanto do dispositivo comum do cinema, na câmera que captura as imagens de um filme em questão, quanto no dispositivo inserido na narrativa,  como um binóculo, uma lente fotográfica ou que quer que seja, é notoriamente e constantemente explorada.

O contrário, no entanto, é algo cada vez mais fascinante de perceber, ainda que essa graça não venha somente com Elle e seja inédita aqui. Mas a forma como vemos em Elle é especial, aqui vários tabus serão questionados e colocados à prova. O direito ao olhar quando se é mulher, é extremamente importante, isso para bem e para mal (especialmente aqui), te insere no mundo.






O poder: Michèle sabe do seu direito de olhar e de por isso também desejar, mas isso não basta. Nesse mundo dominado pelos homens ela precisa do poder, ela quer jogar o mesmo jogo. 

Ela conta como quem tem um troféu em suas mãos, tal como um troféu de caça, a história de vida atrelada à série de assassinatos pelos quais seu pai foi culpado anos atrás e ela foi dada como cúmplice, ainda criança. Ela narra esses fatos com uma naturalidade e uma frieza assustadoras, até pra quem é capaz de atrocidades, como Patrick. No entanto, ela ainda não sabe disso. 




Nem mesmo nós, que como espectadores alguma vezes temos certos privilégios no ato de olhar. Algumas pistas podem ser dadas e talvez a maior delas seja de fato essa cena. O flerte para essa mulher não se dá através de um cortejo, de um charme lançado ao ar como quem quer mas não vai atrás do que quer. Não existe mais espaço para isso e as relações entre homens e mulheres aqui são no mínimo conturbadas. É necessário defender seu espaço, por mais que saibamos as reais intenções por trás disso tudo.




A culpa e o fim: quando ela realmente descobre quem ele é, ela tem seu instinto de dominação ainda mais aguçado e ao conseguir primariamente dominá-lo, vemos igualmente uma cena violenta, em que ele lhe dá um forte tapa, por impulso dela. E ela cai em gozo, o que assusta profundamente Patrick, que logo vai embora. 

E a partir disso, após descobrir quem ele é e como ele reage ao seu domínio, que Michèle vê se perder seu direito de desejar, de dominar, de querer. E isso é algo que ela não vai suportar. Isso é perder, não ter mais direito sobre seu próprio desejo. Ter culpa.



Elle, é por fim, a história de uma mulher que por mais absurda que possa ser é real. É imperfeita e errante. Ela cabe dentro de um filme e ali se mantém, mas por caber em um filme não é incapaz de existir no mundo também. Não é um filme que propõe uma inversão de valores de forma fácil e redentora, isso talvez possa incomodar e não tiro a razão de quem se incomode. Mas existem muitas nuances incrivelmente inseridas no filme que fazem dessa teia de relações algo muito complexo e interessante de ser visto. E visto, dificilmente dito. Cabe a nós, espectadores, olharmos por uma lente de aumento, tal qual Michèle observa, para entrar fundo no poder dessas imagens. As relações entre homens e mulheres talvez ainda não estejam em uma resolução possível de nos apresentar um mundo ideal, a realidade é realmente outra.

Sendo assim, o jogo se inverte, depois de toda resolução, os homens desaparecem. Aqui talvez seja o mais próximo do ideal para a resolução desse impasse. E nos minutos finais do filme, todas as mulheres do filme saem ou voltam de/para suas tocas. Vemos a esposa de Patrick, que se separa, vemos a esposa do filho de Michèle, que continua mandando na relação, vemos a namorada do ex-marido de Michèle, que havia se relacionado com ele pensando que ele fosse um escritor que ela admirava, quando ela apenas tinha lido o nome do autor errado e confundido os nomes e por fim, vemos a melhor amiga de Michèle e agora ex esposa de Robert, Anna, andando junto com Michèle, de braços dados. Rumo a um destino incerto, que nós, espectadores, esperamos que seja melhor que a culpa, que o medo, que a violência.



sexta-feira, 25 de setembro de 2020

As chamas dos Conselhos da Noite

por Giovanni Comodo


O que primeiro vemos em Os Conselhos da Noite, de José Oliveira, é um enorme horizonte em poente azulado com um pequeno homem com enxada, sozinho. Logo depois, observamos o mesmo homem junto a uma lareira, com uma carta do instituto de oncologia, “cuidados paliativos em pacientes terminais”. De dia, ele se despede, anuncia que voltará para casa, para Braga. Só então vêm os créditos. Nestes poucos instantes, tudo ali: a trama do filme, seu protagonista Roberto, sua morte iminente, a capacidade do diretor de selecionar e apresentar o mundo. Após as cartelas, já estamos em Braga e observaremos as consequências desta premissa por duas horas.

Trata-se de uma história de retorno e de tentar fazer as pazes com o passado presente – como no filme anterior do diretor (Longe) e no vindouro (Guerra). Roberto, obrigado pela doença a não ter mais um futuro, revisita fisicamente o passado, de si e de uma cidade que já se transformou: o hospital em que nasceu (e hoje é um hotel), a quadra da escola, o cinema, os bares, a cripta das igrejas... criando um trajeto da sua e de todas as vidas. Oliveira falou em entrevista que esta é a história mais antiga possível, da Bíblia a Hollywood, citando Frank Sinatra em Some Came Running – e talvez de Vincente Minnelli venha a inspiração para o encantador trabalho de cor deste filme (como nunca antes nos filmes do Oliveira): amarelos, azuis, vermelhos, violetas, esverdeados, quadros compostos com muitas cores e luzes, porém sempre em uma certa palidez, como que gastos por um outro tempo.

Há quem diga que sair de sua cidade natal não é trair suas origens, mas na verdade destacá-las e valorizá-las. O retorno de Roberto à Braga é neste sentido, de procurar voltar a se valorizar e de encarar as vertigens do sentir após seu longo exílio voluntário em uma quinta, às vésperas de sua morte. É um percurso de voltar a conhecer-se e despertar para os sentimentos, inclusive dor e amor.

Sobre amor, há o encontro fulgurante entre Roberto (Tiago Aldeia) e Sara (Marta Carvalho) em um bar-caverna em tons de terra bruta. Se Roberto – em uma grande performance de Aldeia, sempre entre fragilidade e soberba – vestido de jaqueta jeans preta o tempo todo, já desde o começo anda e age como um cowboy solitário (Oliveira e suas constantes explorações sobre os strong, silent types), ali temos um encontro como o de Johnny Guitar – e Carvalho, com seus grandes olhos, pele alva, boca escarlate e força telúrica, muito lembra a própria Joan Crawford neste filme.  Mais adiante, ele já a chama de Sarah Jane e ela, de cowboy. Dois perdidos na noite de Braga, caçando estrelas. A graça com que filma estas cenas, mais leves que o ar, é um dos grandes saltos que Oliveira se permite neste filme, repleto de ousadias. 

Uma delas é a de transformar Os Conselhos da Noite em uma imensa carta de amor à Braga, uma cidade nunca vista antes no cinema. Seus habitantes, bares e ruas, tudo se transforma em partes integrantes e valiosas do filme, em grandes achados, como Adolfo Luxúria Canibal em papel de destaque, e pequenos, como Roberto se abrigando sob o toldo de um café chamado “O Mal Amado”. Braga em muito me lembrou Curitiba, a 8.500 Km do outro lado do Atlântico: organizadas e cinzentas, distantes das “grandes cidades do país”, com grafites meia-boca e shoppings de 1990 esvaziados, em uma arquitetura de dias gloriosos longe do presente, com poucos lugares pra se divertir e muitos sinos de igreja, urbana mas provinciana. E sedutora, exatamente pelas pessoas que lá vivem e pela maneira que falam e andam. É o olhar generoso de José Oliveira sobre sua cidade que nos traz esta sensação tanto de familiaridade como de descoberta.

Um grande amigo do meu avô, exemplar quase folclórico de uma boemia que já não existe, tinha uma frase lapidar: “A noite é um filtro: só ficam os bons”. O caráter subversivo da noite, de seus ensinamentos tortos e surpresas, contagia todo este filme, também ele rebelde e indomado para nossos tempos: contemporâneo e essencialmente clássico, enganosamente simples ao espectador mas não para seus personagens, um filme que quer ser, antes de mais nada, um filme, com pessoas e dramas pulsantes, sem julgamentos fáceis. Somente isto pode explicar a ainda baixa circulação nas vitrines dos festivais e em parte da crítica, mais preocupadas em engajamentos automáticos. Azar o deles, sobram os bons.

Nos últimos instantes da projeção, vemos uma pequena chama acesa, o vento e algumas palavras rabiscadas com força. Com estes elementos, todo o cinema foi construído. José Oliveira, com Os Conselhos da Noite, "construiu" para nós uma cidade inteira, a revisitar.

sábado, 19 de setembro de 2020

Clube do Filme: Belarmino

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de setembro é "Belarmino" (1964), de Fernando Lopes.


Afinal de contas, que importa o nome, o diagnóstico ou a moral da fábula? Importa um rosto humano captado à sua imensa altura, uma voz que mente sem outra possibilidade ou fim, uma derrocada em bruto – knock-out em todos os rounds – e a persistência da mesma fragilidade íntima e secreta, que se não revela e se oculta sempre por detrás do mesmo rosto e das mesmas palavras que mentem sabendo que a mentira é a sua verdade possível. Por isso, o filme de Fernando Lopes é um filme sobre o silêncio e sobre a fuga a ele – nossa última etapa.
- João Bénard da Costa

O filme está disponível para download neste link. (caso expire, ou em qualquer dúvida, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com).

Textos recomendados para leitura, todos breves:
1) "Mudar o olhar, mudar a vida", por Fernando Lopes. Disponível aqui.
2) "Mas os amigos onde estão? Bellarmin e os seus companheiros?", por Paulo Rocha. Disponível aqui.
3) "A verdade possível", por João Bénard da Costa. Disponível aqui.


Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: Belarmino, de Fernando Lopes
Dia 23/09 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Podcast do Atalante: novo episódio #2


Já está no ar o novo episódio do Podcast do Atalante, nosso programa dedicado a discutir cinema e crítica cinematográfica.


Neste segundo episódio discutimos algumas dúvidas trazidas pelos ouvintes em nossas redes, retomando o texto "Imagens de imagens" do diretor Raúl Ruiz, a ideia da cópia na criação artística, o Maneirismo no cinema e ainda debatendo a cinefilia e nossa relação com os filmes durante a pandemia.

No próximo episódio, vamos discutir um novo texto, a ser escolhido por você em votação no nosso Instagram nos próximos dias.

Ouça, participe, debata. E, se puder, fique em casa!

Disponível para ouvir aqui.

Apresentado e produzido por Catalina Sofia, Giovanni Comodo e Waleska Antunes. Editado por Catalina Sofia.

Realização: Coletivo Atalante

A verdade possível

por João Bénard da Costa


Belarmino Fragoso (falo da personagem que conheço porque Fernando Lopes ma mostrou e não da outra que vive algures e que não conheço) é um homem quebrado. Em rigor, pouco mais sei dele e o que sei disto depende. Quebrado ao peso de muita coisa nua e evidente, como a nua e evidente parede que o enquadro. Muita coisa a que se pode chamar de diversos nomes: Lisboa 64, isto que nos pesa a todos, estes que todos nós somos, ou Belarmino Fragoso, ele próprio.

Afinal de contas, que importa o nome, o diagnóstico ou a moral da fábula? Importa um rosto humano captado à sua imensa altura, uma voz que mente sem outra possibilidade ou fim, uma derrocada em bruto – knock-out em todos os rounds – e a persistência da mesma fragilidade íntima e secreta, que se não revela e se oculta sempre por detrás do mesmo rosto e das mesmas palavras que mentem sabendo que a mentira é a sua verdade possível.

Por isso, o filme de Fernando Lopes é um filme sobre o silêncio e sobre a fuga a ele – nossa última etapa. Por isso não é cinema-verdade nem cinema-mentira é contemplação de quem sabe e pode fazê-lo, sabendo que os exames de consciência são sempre falsos e, em rigor, inúteis. Só a consciência que não se examina se entrega. Só quem recusa servir de consciência dos outros redime e recupera. Salva.

Encontrar em imagens o equivalente desta impossibilidade de dizer alguma coisa com algum sentido é um dom raríssimo de muitos raros. É deixar, por exemplo, que a câmara se detenha longamente num plongé sobre um homem que desenha e que se esqueceu já de nos olhar. É suspendê-la, fixando-a sempre o bastante para que o silêncio nos povoe e depois passeá-lo sem nexo algum: pelo Hot-Club, ou pelo Ritz-Club, pelo Rossio ou por um estádio deserto. Ao sabor do que pode servir essa impossibilidade de abrigar ou de consolar. Belarmino de Fernando Lopes é um filme que nada diz, que apenas escuta. E é ainda em silêncio que o faz. Muito demoradamente.

Como Godard, como Mizoguchi [1], Fernando Lopes é um contemplador. Há nele a inteligência do olhar e o pudor a que ela nos obriga. E há o saber dos apertados limites em que se move uma linguagem e do que não pode nunca ser por ela expresso. A visão de Fernando Lopes é justa porque está certa. E é bela pelo mesmo motivo.

Que interessa pois que se estabeleçam comparações, que se fale de outro – se o há – cinema português? Os determinativos não interessam. Interessa, sim, que se diga que Belarmino de Fernando Lopes é cinema e em cinema. Ou melhor: que agora se possa dizer que o cinema é também Fernando Lopes.

Texto em português de Portugal. Retirado da Revista "O Tempo e o Modo", 1ª série, nº 19, Setembro de 1964, p. 131-132. Disponível aqui.


[1] Não falo, como é evidente, de ordens de grandeza; falo de ordens de visão. Embora deva dizer que o nome de Godard e, sobretudo, Vivre sa Vie, me vieram constantemente à memória durante a projecção do filme. A mesma força no enquadramento, o mesmo olhar de frente, a mesma pureza dos raccords. É isso: a mesma ordem de visão [N. do A.]

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Notas sobre o Verdes Anos, de Paulo Rocha

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

Nada me preparou para o final trágico – nem mesmo rever o filme, tomando como farol as palavras de Paulo Rocha: se em vez de estarem atentos à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável[1].

Segui supostos indícios – mas acabei concluindo que Paulo Rocha deixou pistas falsas e redobrou a falsificação com suas palavras sobre a progressão inexorável. Se há no filme algum indício concreto, ele foi apontado por Kátia Patrício – a homologia entre a cena na TV, onde modelos contracenam com um tigre enjaulado, e a cena em que Ilda “desfila” os trajes da patroa para um Julio acuado, sentado em um banquinho, mais apropriado para uma criança. Lembrou-me Nietzsche: O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo?... na indiferença do seu  não-saber, ele repousa sobre o impiedoso, o voraz, o insaciável... um assassino sobre as costas de um tigre.[2]

Então, tomada pelo impacto da pergunta – de onde vem a grandeza trágica com que se encerram os Verdes Anos? – decidi entrar em cheio na tragédia, deixando de lado possíveis anúncios premonitórios, abandonando de vez uma talvez crônica da morte anunciada[3]. Fui diretamente ao dia do desfecho e fiz a leitura mítica que passo a partilhar.

Na tarde daquele dia, Júlio parece bem: diferente dos dias precedentes, asseado e elegante, passeia com Ilda pelo campus da Universidade, cuja arquitetura altaneira aponta à Cultura, talvez como um aceno de um possível destino pulsional[4] alternativo à violência.

Naquele dia ele propõe casamento. Embora interessada por ele e sua companhia, Ilda recusa a proposta, alegando lúcidas razões de ordem prática. A seguir ela pede licença e vai confraternizar com amigos de sua aldeia natal. No giro seguinte do parafuso, Júlio “acabará” com ela. É na ambigüidade da palavra “acabar”, que ele convence a patroa a permitir que se encontrem pela última vez: está tudo acabado entre nós; só quero devolver uma foto; é só um minuto. A patroa que, anteriormente, em um diálogo de cores maternais, fizera à moça advertências quanto ao perigo representado pelos rapazes, da cidade ou do campo, cede ao argumento de Júlio, talvez levada por sua aparência descontraída e benevolente.  

De fato, pela primeira vez em toda a mise-en-scène “Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado[5]. A patroa vence as reticências e permite o encontro fatal.

Uma vez a sós, o homem penetra o corpo da mulher. Que emite, não um grito de dor ou um pedido de socorro, mas um arfar de gozo [6]. Consuma-se o casamento entre Eros e Tânatos, bodas de sangue entre o Amor e a Morte.

Considerando que a musa trágica por excelência é o castigo imerecido[7]; e que o homem está no mundo como ser-para-a-morte [8], sendo a morte um problema imposto pela própria existência; então o desfecho trágico sustenta-se por si só, sem necessidade de uma progressão inexorável explícita. Surpreende: como erupção assombrosa do Real.

Na cena seguinte, o filme alinha três figuras femininas míticas: a Mãe, a Mulher e a Morte – as três Moiras, as que fiam, tecem e cortam o destino dos homens e dos deuses (na psicanálise lacaniana, uma "interpretação" encontra a marca do seu acerto -ou não- naquilo que ela produz em associações, no depois. Se assim for, encontro em O Rio de Ouro, de 1998, uma espécie de "confirmação" da possibilidade de leitura de Paulo Rocha à luz da tragédia grega, pois, aqui, às margens do Douro, Isabel Ruth encarna, em plena majestade, a condensação das três Moiras).

Voltemos ao Verdes Anos: Júlio sai da cena do crime. A mise-en-scène continua a entregar elementos para apoiar a tese das bodas consumadas. Despido do paletó e da gravata, ele saltita pelas escadas. Vai a um bar, chama a atenção de todos, quebrando uma vidraça, e expõe a mão ensangüentada, estampando-a no linho branco do casaco do garçom – como um lençol exposto na manhã seguinte às núpcias, para honra dos noivos e suas famílias [9].

Cena final: o homem sozinho – ele e seu ato – face a face com aquilo que o ultrapassa e esmaga, o Destino, em três planos de potência avassaladora.

28 de agosto de 2020


[1] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963

[2] Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. 1873

[3] García Márquez, G. Crônica de uma Morte Anunciada. 1981

[4] Freud, S. A pulsão e seus destinos. 1915

[5] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963 “... a subida rápida de Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado”.

[6] La petit mort = orgasmo em francês.

[7] Nietzsche, F. Introdução à Tragédia de Sófocles. 1870 - Texto de uma das preleções proferidas pelo autor na Universidade da Basiléia, sob o título “Contribuições à história da tragédia grega”.

[8] Heidegger. O ser e o tempo. 1927

[9] Tradição no Cáucaso, região entre a Armênia, a Geórgia, o Azerbaijão e a Rússia.