O que primeiro vemos em Os Conselhos da Noite, de José Oliveira, é um enorme horizonte em poente azulado com um pequeno homem com enxada, sozinho. Logo depois, observamos o mesmo homem junto a uma lareira, com uma carta do instituto de oncologia, “cuidados paliativos em pacientes terminais”. De dia, ele se despede, anuncia que voltará para casa, para Braga. Só então vêm os créditos. Nestes poucos instantes, tudo ali: a trama do filme, seu protagonista Roberto, sua morte iminente, a capacidade do diretor de selecionar e apresentar o mundo. Após as cartelas, já estamos em Braga e observaremos as consequências desta premissa por duas horas.
Trata-se de uma história de retorno e de tentar fazer as pazes com o passado presente – como no filme anterior do diretor (Longe) e no vindouro (Guerra). Roberto, obrigado pela doença a não ter mais um futuro, revisita fisicamente o passado, de si e de uma cidade que já se transformou: o hospital em que nasceu (e hoje é um hotel), a quadra da escola, o cinema, os bares, a cripta das igrejas... criando um trajeto da sua e de todas as vidas. Oliveira falou em entrevista que esta é a história mais antiga possível, da Bíblia a Hollywood, citando Frank Sinatra em Some Came Running – e talvez de Vincente Minnelli venha a inspiração para o encantador trabalho de cor deste filme (como nunca antes nos filmes do Oliveira): amarelos, azuis, vermelhos, violetas, esverdeados, quadros compostos com muitas cores e luzes, porém sempre em uma certa palidez, como que gastos por um outro tempo.
Há quem diga que sair de sua cidade natal não é trair suas origens, mas na verdade destacá-las e valorizá-las. O retorno de Roberto à Braga é neste sentido, de procurar voltar a se valorizar e de encarar as vertigens do sentir após seu longo exílio voluntário em uma quinta, às vésperas de sua morte. É um percurso de voltar a conhecer-se e despertar para os sentimentos, inclusive dor e amor.
Sobre amor, há o encontro fulgurante entre Roberto (Tiago Aldeia) e Sara (Marta Carvalho) em um bar-caverna em tons de terra bruta. Se Roberto – em uma grande performance de Aldeia, sempre entre fragilidade e soberba – vestido de jaqueta jeans preta o tempo todo, já desde o começo anda e age como um cowboy solitário (Oliveira e suas constantes explorações sobre os strong, silent types), ali temos um encontro como o de Johnny Guitar – e Carvalho, com seus grandes olhos, pele alva, boca escarlate e força telúrica, muito lembra a própria Joan Crawford neste filme. Mais adiante, ele já a chama de Sarah Jane e ela, de cowboy. Dois perdidos na noite de Braga, caçando estrelas. A graça com que filma estas cenas, mais leves que o ar, é um dos grandes saltos que Oliveira se permite neste filme, repleto de ousadias.
Uma delas é a de transformar Os Conselhos da Noite em uma imensa carta de amor à Braga, uma cidade nunca vista antes no cinema. Seus habitantes, bares e ruas, tudo se transforma em partes integrantes e valiosas do filme, em grandes achados, como Adolfo Luxúria Canibal em papel de destaque, e pequenos, como Roberto se abrigando sob o toldo de um café chamado “O Mal Amado”. Braga em muito me lembrou Curitiba, a 8.500 Km do outro lado do Atlântico: organizadas e cinzentas, distantes das “grandes cidades do país”, com grafites meia-boca e shoppings de 1990 esvaziados, em uma arquitetura de dias gloriosos longe do presente, com poucos lugares pra se divertir e muitos sinos de igreja, urbana mas provinciana. E sedutora, exatamente pelas pessoas que lá vivem e pela maneira que falam e andam. É o olhar generoso de José Oliveira sobre sua cidade que nos traz esta sensação tanto de familiaridade como de descoberta.
Um grande amigo do meu avô, exemplar quase folclórico de uma boemia que já não existe, tinha uma frase lapidar: “A noite é um filtro: só ficam os bons”. O caráter subversivo da noite, de seus ensinamentos tortos e surpresas, contagia todo este filme, também ele rebelde e indomado para nossos tempos: contemporâneo e essencialmente clássico, enganosamente simples ao espectador mas não para seus personagens, um filme que quer ser, antes de mais nada, um filme, com pessoas e dramas pulsantes, sem julgamentos fáceis. Somente isto pode explicar a ainda baixa circulação nas vitrines dos festivais e em parte da crítica, mais preocupadas em engajamentos automáticos. Azar o deles, sobram os bons.
Nos últimos instantes da projeção, vemos uma pequena chama acesa, o vento e algumas palavras rabiscadas com força. Com estes elementos, todo o cinema foi construído. José Oliveira, com Os Conselhos da Noite, "construiu" para nós uma cidade inteira, a revisitar.
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