por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
Nada me preparou para o final trágico – nem mesmo rever o filme, tomando como farol as palavras de Paulo Rocha: “se em vez de estarem atentos à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável”[1].
Segui supostos indícios – mas acabei concluindo que Paulo Rocha deixou pistas falsas e redobrou a falsificação com suas palavras sobre a progressão inexorável. Se há no filme algum indício concreto, ele foi apontado por Kátia Patrício – a homologia entre a cena na TV, onde modelos contracenam com um tigre enjaulado, e a cena em que Ilda “desfila” os trajes da patroa para um Julio acuado, sentado em um banquinho, mais apropriado para uma criança. Lembrou-me Nietzsche: O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo?... na indiferença do seu não-saber, ele repousa sobre o impiedoso, o voraz, o insaciável... um assassino sobre as costas de um tigre.[2]
Então, tomada pelo impacto da pergunta – de onde vem a grandeza trágica com que se encerram os Verdes Anos? – decidi entrar em cheio na tragédia, deixando de lado possíveis anúncios premonitórios, abandonando de vez uma talvez crônica da morte anunciada[3]. Fui diretamente ao dia do desfecho e fiz a leitura mítica que passo a partilhar.
Na tarde daquele dia, Júlio parece bem: diferente dos dias precedentes, asseado e elegante, passeia com Ilda pelo campus da Universidade, cuja arquitetura altaneira aponta à Cultura, talvez como um aceno de um possível destino pulsional[4] alternativo à violência.
Naquele dia ele propõe casamento. Embora interessada por ele e sua companhia, Ilda recusa a proposta, alegando lúcidas razões de ordem prática. A seguir ela pede licença e vai confraternizar com amigos de sua aldeia natal. No giro seguinte do parafuso, Júlio “acabará” com ela. É na ambigüidade da palavra “acabar”, que ele convence a patroa a permitir que se encontrem pela última vez: está tudo acabado entre nós; só quero devolver uma foto; é só um minuto. A patroa que, anteriormente, em um diálogo de cores maternais, fizera à moça advertências quanto ao perigo representado pelos rapazes, da cidade ou do campo, cede ao argumento de Júlio, talvez levada por sua aparência descontraída e benevolente.
De fato, pela primeira vez em toda a mise-en-scène “Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado”[5]. A patroa vence as reticências e permite o encontro fatal.
Uma vez a sós, o homem penetra o corpo da mulher. Que emite, não um grito de dor ou um pedido de socorro, mas um arfar de gozo [6]. Consuma-se o casamento entre Eros e Tânatos, bodas de sangue entre o Amor e a Morte.
Considerando que a musa trágica por excelência é o castigo imerecido[7]; e que o homem está no mundo como ser-para-a-morte [8], sendo a morte um problema imposto pela própria existência; então o desfecho trágico sustenta-se por si só, sem necessidade de uma progressão inexorável explícita. Surpreende: como erupção assombrosa do Real.
Na cena seguinte, o filme alinha três figuras femininas míticas: a Mãe, a Mulher e a Morte – as três Moiras, as que fiam, tecem e cortam o destino dos homens e dos deuses (na psicanálise lacaniana, uma "interpretação" encontra a marca do seu acerto -ou não- naquilo que ela produz em associações, no depois. Se assim for, encontro em O Rio de Ouro, de 1998, uma espécie de "confirmação" da possibilidade de leitura de Paulo Rocha à luz da tragédia grega, pois, aqui, às margens do Douro, Isabel Ruth encarna, em plena majestade, a condensação das três Moiras).
Voltemos ao Verdes Anos: Júlio sai da cena do crime. A mise-en-scène continua a entregar elementos para apoiar a tese das bodas consumadas. Despido do paletó e da gravata, ele saltita pelas escadas. Vai a um bar, chama a atenção de todos, quebrando uma vidraça, e expõe a mão ensangüentada, estampando-a no linho branco do casaco do garçom – como um lençol exposto na manhã seguinte às núpcias, para honra dos noivos e suas famílias [9].
Cena final: o homem sozinho – ele e seu ato – face a face com aquilo que o ultrapassa e esmaga, o Destino, em três planos de potência avassaladora.
[1] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963
[2] Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. 1873
[3] García Márquez, G. Crônica de uma Morte Anunciada. 1981
[4] Freud, S. A pulsão e seus destinos. 1915
[5] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963 “... a subida rápida de Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado”.
[6] La petit mort = orgasmo em francês.
[7] Nietzsche, F. Introdução à Tragédia de Sófocles. 1870 - Texto de uma das preleções proferidas pelo autor na Universidade da Basiléia, sob o título “Contribuições à história da tragédia grega”.
[8] Heidegger. O ser e o tempo. 1927
[9] Tradição no Cáucaso, região entre a Armênia, a Geórgia, o Azerbaijão e a Rússia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário