Belarmino Fragoso (falo da personagem que conheço porque Fernando Lopes ma mostrou e não da outra que vive algures e que não conheço) é um homem quebrado. Em rigor, pouco mais sei dele e o que sei disto depende. Quebrado ao peso de muita coisa nua e evidente, como a nua e evidente parede que o enquadro. Muita coisa a que se pode chamar de diversos nomes: Lisboa 64, isto que nos pesa a todos, estes que todos nós somos, ou Belarmino Fragoso, ele próprio.
Afinal de contas, que importa o nome, o diagnóstico ou a moral da fábula? Importa um rosto humano captado à sua imensa altura, uma voz que mente sem outra possibilidade ou fim, uma derrocada em bruto – knock-out em todos os rounds – e a persistência da mesma fragilidade íntima e secreta, que se não revela e se oculta sempre por detrás do mesmo rosto e das mesmas palavras que mentem sabendo que a mentira é a sua verdade possível.
Por isso, o filme de Fernando Lopes é um filme sobre o silêncio e sobre a fuga a ele – nossa última etapa. Por isso não é cinema-verdade nem cinema-mentira é contemplação de quem sabe e pode fazê-lo, sabendo que os exames de consciência são sempre falsos e, em rigor, inúteis. Só a consciência que não se examina se entrega. Só quem recusa servir de consciência dos outros redime e recupera. Salva.
Encontrar em imagens o equivalente desta impossibilidade de dizer alguma coisa com algum sentido é um dom raríssimo de muitos raros. É deixar, por exemplo, que a câmara se detenha longamente num plongé sobre um homem que desenha e que se esqueceu já de nos olhar. É suspendê-la, fixando-a sempre o bastante para que o silêncio nos povoe e depois passeá-lo sem nexo algum: pelo Hot-Club, ou pelo Ritz-Club, pelo Rossio ou por um estádio deserto. Ao sabor do que pode servir essa impossibilidade de abrigar ou de consolar. Belarmino de Fernando Lopes é um filme que nada diz, que apenas escuta. E é ainda em silêncio que o faz. Muito demoradamente.
Como Godard, como Mizoguchi [1], Fernando Lopes é um contemplador. Há nele a inteligência do olhar e o pudor a que ela nos obriga. E há o saber dos apertados limites em que se move uma linguagem e do que não pode nunca ser por ela expresso. A visão de Fernando Lopes é justa porque está certa. E é bela pelo mesmo motivo.
Que interessa pois que se estabeleçam comparações, que se
fale de outro – se o há – cinema português? Os determinativos não interessam.
Interessa, sim, que se diga que Belarmino de Fernando Lopes é cinema e em
cinema. Ou melhor: que agora se possa dizer que o cinema é também Fernando
Lopes.
Texto em português de Portugal. Retirado da Revista "O Tempo e o Modo", 1ª série, nº 19, Setembro de 1964, p. 131-132. Disponível aqui.
[1] Não falo, como é evidente, de ordens de grandeza; falo de ordens de visão. Embora deva dizer que o nome de Godard e, sobretudo, Vivre sa Vie, me vieram constantemente à memória durante a projecção do filme. A mesma força no enquadramento, o mesmo olhar de frente, a mesma pureza dos raccords. É isso: a mesma ordem de visão [N. do A.]
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