por Luc Moullet
Os jovens cineastas americanos não têm nada a dizer, e Sam Fuller menos
ainda que os outros. Há algo a ser feito e ele o faz, naturalmente, sem se
forçar. Esse não é um pequeno elogio: detestamos os filósofos fracassados, que
fazem cinema apesar do cinema, que reproduzem descobertas de outras artes,
aqueles que querem exprimir um tema digno de interesse por meio de um certo
estilo artístico. Se você tem alguma coisa a dizer, diga-a, escreva-a, pregue-a
se quiser, mas nos deixe em paz.
Pode surpreender semelhante a priori a propósito de um
cineasta que confessa ter grandes ambições, e é o autor completo de quase todos
os seus filmes. Mas são justamente aqueles que o classificam de roteirista
inteligente que não apreciam Capacete de Aço, ou que, em seu nome,
rejeitam Renegando o Meu Sangue, que - outra possibilidade - defendem
por razões totalmente gratuitas.
Da coesão. De quatorze filmes, Fuller, antigo jornalista, consagra um ao
jornalismo; antigo repórter criminal, quatro ao melodrama policial; antigo
soldado, cinco à guerra. Os quatro westerns aparentam-se ao
gênero filme de guerra, pois é a perpétua luta contra os elementos, na qual o
homem reconhece sua dignidade, que define a vida do pioneiro do século passado,
luta esta prolongada em nossa época pela vida do soldado: é por isso que “a
vida civil não me interessa” (Baionetas Caladas).
Em Dark Page, pequeno romance policial super acelerado, um
jornalista arrivista bem-sucedido mata acidentalmente sua ex-amante; por
desafio, jogo e necessidade profissional, ele coloca seu melhor repórter no
caso, e se vê obrigado a cometer crime após crime para não ser
descoberto. O problema: a descrição, e através desta o questionamento, do
comportamento fascista, como em A Marca da Maldade. Mas
aqui Quinlan e Vargas se estendem as mãos: a contribuição estética do primeiro
- pois o fascismo é belo - e a contribuição moral do segundo - sozinho, ele tem
a razão do seu lado - se nutrem mutuamente. Welles renega Quinlan, mas ele é
Quinlan: eterna contradição cujas origens estão no final da Idade Média, no
Renascimento italiano e no drama elizabetano, perfeitamente definida pela
parábola do relógio cuco em O Terceiro Homem. Com Fuller,
é diferente: abandonando o domínio do absoluto, ele nos propõe um compromisso
entre a moral e a violência, cada uma necessária, contra seus próprios excessos.
A esse compromisso corresponde a conduta de Adam Jones, o comandante de Tormenta
Sob os Mares, o trabalho do soldado e do policial, e do cineasta também. Os
valorosos soldados de Capacete de Aço matam com o mesmo prazer
que os gângsteres de Anjo do Mal; apenas um certoaprendizado da relatividade poderá
nos fazer entrever as mais elevadas esferas: daí a razão deste não-conformismo
integral. Os canalhas tornam-se santos. Ninguém consegue se identificar com
eles. É pelo amor de uma mulher que o covarde Bob Ford, a vergonha da saga do
Oeste, mata Jesse James. É pelo amor de uma mulher que James Reavis, tornado
barão de Arizona graças a um complô monstruoso que se estende por vinte anos,
confessará tudo no momento em que já não tinha nada mais a temer, e permanecerá
voluntariamente sete anos na prisão. É um covarde, um anti-militarista, Denno,
que se tornará herói de guerra (Baionetas Caladas). É um batedor de
carteiras, Skip (Anjo do Mal) que, graças ao amor de uma mulher, roubará
dos espiões comunistas preciosos documentos os quais eles tinham interceptado,
e através desse roubo se reabilitará. Charity Hacket, redatora chefe com
hábitos de gangster, da rua Park Row, será finalmente conquistada pela
tenacidade de seu concorrente democrata, Phineas Mitchell, que ela tentou
ultrapassar de todas as maneiras; ela o salva da ruína e se casa com ele. Aqui,
e em Baionetas Caladas, é abordado este tema wellesiano do
duplo que constitui a ossatura de Casa de Bambu: a identidade do
policial associado aos gangsteres só nos é revelada em plena metade do filme, e
nada até então nos permitia distingui-lo dos outros. E é o próprio chefe da
gangue que lhe estende a mão, que o salva da morte: “Paradoxalmente, Fuller,
tão decidido, tão viril, é um mestre da ambigüidade”, disse Domarchi. Aqui,
o estudo dos dois personagens dá um sentido profundo a esta justaposição que,
num Welles, reflete os artifícios de uma má-consciência. Quinlan e Vargas não
podem se comparar, pois são complementares, e formam em realidade um único ser,
o ser do autor, enquanto que aqui Sandy e Eddie podem ser
comparados. O que, pelo contrário, não impede Welles de ser incomensuravelmente
maior que Fuller. Aposto inclusive que, se ele um dia for ver Renegando
o Meu Sangue, exasperado, deixará a sala antes dos créditos.
Fuller acima da política
Pelo seu não-conformismo, Renegando o Meu Sangue bate
todos os recordes: no dia seguinte à derrota, O’Meara, soldado sulista, vai de
encontro aos Sioux para lutar contra o jugo nortista. Em parte convencido pelo
capitão Clarke, o yankee liberal, que lhe mostra a inanidade de seu ódio, e
instruído pelo infeliz exemplo do tenente Driscoll, o yankee fascista, ele
retornará à sua pátria. Em julho de 1956, no New York Times, o próprio Fuller
precisou o sentido da fábula, que explicaria as dificuldades do regime
americano contemporâneo: os adversários políticos do governo, em qualquer
época, buscam maturar seu ressentimento, aliando-se aos inimigos de seus
países. Há aí várias interpretações possíveis, e Fuller deixa subentendido que
a aliança com os Índios de então corresponde à aliança, a respeito da questão
do Sul, com os elementos negros mais violentos. Contrariamente ao que se possa
dizer de Fuller, não existe nele nenhum maniqueísmo, ainda menos que em Brooks,
já que aqui encontramos dois tipos de Nortistas, dois tipos de Sulistas, e
ainda quatro tipos de Indígenas. O Huma-Dimanche[1] mostrou-se
perplexo diante de tal confusão: “Os Sulistas são anti-racistas, os
Nortistas são racistas, os Indígenas pró-Americanos, e certos Americanos
Pró-Indígenas”. Quando os renegados são obrigados a se contradizer, ou
seja, a massacrarem seus concidadãos, eles dão meia-volta: “The end of this
story could only be told by you”, ou, se assim preferirem, já que estamos
em Julho de 1956, a vida dos Estados Unidos dependerá do voto que
vocês depositarão nas urnas no próximo novembro. Eis aí, em aparência, um filme
nacionalista, reacionário, nixoniano. Fuller seria então este fascista, este
ultra-reacionário outrora denunciado pela imprensa comunista? Não o creio. Ele
possui em demasia o dom da ambigüidade para pertencer exclusivamente a um único
partido. Se o fascismo é o tema de sua obra, Fuller não se erige em juiz. É um
fascismo interior que o preocupa, ao invés de suas conseqüências políticas. É
por isso que os personagens de Meeker e Steiger são mais fortes que o de
Michael Pate em Sangue Sobre a Terra: Brooks é
excessivamente cuidadoso para ser implicado na questão, enquanto que Fuller se
encontra em casa; ele fala do que conhece. E apenas o ponto de vista sobre o
fascismo de alguém que fora tentado por este é digno de interesse.
Fascismo de gestos mais que de intenções. Pois não nos parece que Fuller
seja exatamente um especialista em política. Se ele se proclama de
extrema-direita, não seria para mascarar, sob uma fachada exterior mais
convencional, um ponto de vista moral e estético pertencente a um domínio
marginal pouco apreciado?
Fuller anti-comunista? Não precisamente. Pois Fuller confunde, em parte
indubitavelmente por motivos comerciais, comunismo e gangsterismo, comunismo e
nazismo. Ele imagina os representantes de Moscou, a respeito dos quais é
completamente ignorante, a partir do que conhece, por sua própria experiência,
dos nazistas e dos gângsteres. Não esqueçamos que Fuller só fala daquilo que
conhece. Quando pinta o inimigo (e em Capacete de Aço, Baionetas
Caladas e Tormenta Sob os Mares, ele se arranja geralmente
para passar silenciosamente por esse aspecto), é um inimigo muito abstrato,
extremamente convencional. Apenas o diálogo se encarrega de meter os pingos nos
is, e é lamentável que Anjo do Mal e No Umbral da
China nos sejam verboten[2] por um motivo tão pouco
fundamentado.
A moral é uma questão de travellings. Esses pequenos
detalhes não derivam em nada do modo pelo qual são expressos, muito menos de
sua qualidade de expressão, que aliás os desmente com freqüência. Seria
totalmente estúpido tomar este filme tão rico por uma defesa pró-Indígena ou
racista, assim como seria estúpido tomar Delmer Daves por um corajoso cineasta
anti-racista só porque, a cada contrato assinado, uma cláusula estipula a
presença em seus filmes de relações amorosas entre seres de raças diferentes. O
público inadvertido não se deu conta de nada, e é sempre o público quem tem
razão.
Um cinema moderno
A câmera se desloca pela esquerda, num plano baixo de um campo de milho
com admiráveis tons de amarelos intensos, recoberto de cadáveres de soldados em
uniformes sujos e escuros, alinhados nas mais curiosas posições; depois se
eleva para enquadrar Meeker, adormecido em sua montaria, num estado lamentável.
Sobre um fundo de fumaça negra extremamente densa, destaca-se Steiger, tão sujo
quanto o outro, mas vestido de camponês. Ele atira em Meeker, vasculha sua
vítima, descobre comida em seus bolsos, instala-se sobre o corpo para comer o
que achara; percebendo que carrega um pouco de pão também, ele o pega; acende
um cigarro. Meeker começa a reclamar incomodado, Steiger se afasta um pouco
para longe. Close em Steiger, que masca e fuma. Então, em imensas letras
vermelhas, se inscreve em sua fronte e sobre o seu queixo o título do filme. É
a primeira vez que os créditos aparecem sobre o rosto de um homem, e de um
homem prestes a comer. Esta seqüência, digna de uma antologia do cinema
moderno, já revela algumas das qualidades mestras do nosso cineasta.
1º O senso poético do movimento de câmera. Em muitos cineastas
ambiciosos, os movimentos de câmera dependem da composição dramática. Jamais
isto se dá em Fuller, onde sua gratuidade é felizmente total: é em função do
poder de emoção do movimento que se ordena a cena. Assim, ao final de Capacete
de Aço, é o caso deste lento deslocamento da câmera no qual, sob o fogo
ardente das descargas das metralhadoras, desabam, segundo um ritmo musical, os
inimigos. Baionetas Caladas formiga de longuíssimos travellings circulares
de 360°, e em igual medida de closes os quais, ao espocar de rosto em rosto,
são impregnados de um ritmo fascinante.
2º Um humor fundado sobre a ambigüidade. Aqui, o contraste entre o corpo
de Meeker agonizante e a impassibilidade de um Steiger esfomeado. Mais adiante,
num impressionante close, veremos um camponês do Sul transbordar em canções a
força do seu ódio contra os Yankees. Juntemos a isso algumas reflexões picantes
sobre a Constituição dos Estados Unidos. Walking Coyote confessa que não buscou
se tornar chefe de sua tribo, pois a política o enoja. Indignado com a
possibilidade de que o enforquem, ele exclama: “Ah! que tempos! Na minha época,
isto não era assim. Hoje, não há mais moral. Os jovens massacrem os velhos,
matam, embriagam-se, estupram”. Réplica que poderia muito bem
figurar em Os Trapaceiros ou em qualquer filme americano
sociológico, mas que colocada na boca de um Sioux de 1865 nos mata de rir. Em
cada diálogo, Fuller se diverte em nos desconcertar; ele dá a impressão de
esposar todos os pontos de vista, e é isto que torna seu humor sublime. Cada
cena de amor (a das sobrancelhas em Casa de Bambu, a da tatuagem e
da bofetada em Tormenta Sob os Mares, onde encontramos
também uma admirável paródia do poliglotismo do jargão comercial) enriquece um
motivo extremamente banal por meio de um texto cheio de verve e de
originalidade.
3º Uma recriação da vida que não possui nada em comum com a que nos é
geralmente imposta na tela do cinema. Ao invés do civilizado Brooks, é a O
Atalante que devemos nos reportar. Fuller é um personagem rude: tudo o
que faz é incongruente. Uma centelha de loucura o habita. Mas temos necessidade
dos loucos, pois o cinema é a mais realista das artes; e na evocação da
existência, os cineastas sensatos permaneceram sob a influência das tradições
estabelecidas desde séculos pela literatura e pintura, coagidos a esquecer a
verdade mais superficial em nome do realismo, limitado visual e temporalmente.
Apenas os loucos podem aspirar a criar um dia uma obra comparável ao modelo
vivo, obra esta que, aliás, jamais chegará a possuir um décimo da verdade do
original. Mas ninguém pode fazer melhor. Em Fuller, vemos tudo o que os outros
omitem deliberadamente de seus filmes: a desordem, a escória, o inexplicável, a
barba mal aparada, e uma espécie de fascinante feiúra do rosto do homem. É um
traço de genialidade ter escolhido Rod Steiger, pobre coitado atarracado, desprovido
de todo prestígio, cujo chapéu achatado oculta os traços ao menor dos plongés,
mas a quem uma trajetória e um porte desgraciosos conferem a própria força da
vida. Poderíamos inclusive assinalar a simpatia do diretor pelos corpulentos,
pelos balofos: um Gene Evans é o astro em quatro de seus filmes. E - apliquemos
aqui aos personagens a famosa e truffaudiana teoria dos autores - sua estima
diminui na proporção do número de quilos. Estes heróis esbeltos de rosto
anguloso, John Ireland, Vincent Price, Richard Basehart, Richard Kiley, Richard
Widmark não possuem o peso suficiente necessário para resistir à baixeza. É que
o homem pertence à ordem da terra, e deve a ela se assemelhar, em toda a sua
acre beleza.
Fuller é um primitivo - mas um primitivo inteligente, o que traz para a
sua obra ressonâncias singulares -; o espetáculo do mundo físico, o espetáculo
da terra é seu melhor terreno de inspiração, e se ele se vincula ao ser, é
apenas na medida em que este se vincula à terra. É por isso que a mulher é com
freqüência ignorada (não em A Dama de Preto, Anjo
do Mal e Dragões da Violência, onde ela conserva as
características do homem fulleriano; não em No Umbral da
China, Tormenta Sob os Mares e igualmente Dragões
da Violência, onde Fuller evoca, com um talento demencial, o contraste
entre a besta e o anjo, o que dissipa todo e qualquer equívoco). É por esse
motivo que o corpo do homem lhe interessa particularmente - cem vezes Fuller é
inspirado pelos corpos nus dos Índios, assim como pelos corpos nus dos
marinheiros em Tormenta Sob os Mares; ao sair de uma
sessão deRenegando, ficamos com a impressão de nunca até então termos
visto verdadeiros Índios em um western - e a parte do corpo
que lhe interessa ainda mais particularmente é esta que toca constantemente o
solo: sem dúvida, Fuller é um podólatra. No primeiro plano, ao encontrar-se com
Walking Coyote, a câmera arranha a terra, reenquadra os pés e apenas
acidentalmente retoma a visão dos rostos. E esse estilo será radicalizado a
ponto de fundar o simbolismo da obra: a corrida da flecha, pivô e título do
filme, é a corrida de um homem calçado de mocassins perseguindo um homem de pés
descalços (membro da Infantaria, que depois de ter encontrado um certo Walking
Coyote, irá se casar com uma certa Yellow Mocassin). O melhor dentre estes será
aquele que possuir os pés mais sólidos. Pés ensangüentados, pés fatigados, pés
rudemente eficazes, pés ágeis, pés calçados de botas, com que virtuosismo
Fuller, que, aliás, teve todo o tempo disponível para estudar esta questão
quando de sua viagem ao Japão, retrata diferentes estilos de maratonistas! Quem
melhor do que ele para filmar os Jogos Olímpicos em Roma, no ano seguinte? As
nádegas são estrelas igualmente, pois ao menos 30 segundos do filme são
consagrados a um estudo minucioso do problema relativo ao conforto da sela do
cavaleiro.
Uma desordem à la Vigo
Cineasta terrestre, poeta do telúrico, ele se apaixona pelo instintivo.
Adora mostrar o sofrimento de uma forma ainda mais sádica que a de DeMille:
amputações (mesmo uma mão deliberadamente cortada em Tormenta
Sob os Mares), dolorosas extrações de balas de seu próprio corpo (Baionetas
Caladas) ou de outros corpos (Renegando o Meu Sangue), com fortes
perdas de sangue. Uma criança indefesa é massacrada em uma esquina da Park Row.
Nem o amor despreza os prazeres do sadismo (Anjo do Mal). Antes de ser
nocauteado por repetidos golpes de martelo, o Japa de Tormenta Sob os
Mares lamenta não ter sido espancado com mais força, como se isso
fosse uma vergonha. Festival de crueldades e orgias; Renegando o Meu
Sangue se encerra com este admirável plano no qual Meeker, prestes a
ser esfolado vivo, recebe a graça de uma bala no meio da testa vermelha e
suada.
Mais acima citei Vigo; esta semelhança mostra-se ainda mais evidente
em Anjo do Mal, Capacete de Aço e sobretudo Baionetas
Caladas: sobre um roteiro extremamente cadenciado e num plano premeditado,
Fuller compõe ações sem referência a uma dramaturgia pré-fabricada. Faz-se não
importa o que, e é bem difícil entender o que quer que seja. As relações dos
soldados entre eles, relações morais e relações no plano, onde todos os rostos
estão voltados para interesses diferentes, criam um labirinto de significações.
Podemos aplicar a Fuller o que Rivette escreveu de Vigo: “Ele sugere uma
constante improvisação do universo, uma perpétua, tranqüila e segura criação do
mundo”.
O Anti-Tati
No plano formal, pela primeira vez descobrimos esse lado Fabrice em
Waterloo[3], ressaltado tão freqüente e complacentemente a propósito de
operetas menores. Esse bizarro fulleriano explica seu gosto pelos cenários
exóticos - seis de seus filmes se situam no Extremo Oriente -, pagodas
misteriosas (Capacete de Aço), estátuas, casas e mobiliários à moda
nipônica (Casa de Bambu), que possuem o mesmo relevo, o mesmo poder de
vida que o metrô, os becos dos imóveis de Chicago e suas casas sobre
palafitas em Anjo. E sobretudo, quando se trata de evocar
a complexidade da maquinaria moderna, Fuller se torna o maior metteur
en scéne do mundo. Nele, o universo artificial e o natural apresentam
as mesmas características: sabe admiravelmente reproduzir o caráter denso,
maciço e misterioso das armas de fogo, de um depósito de munições (No Umbral
da China), de um imóvel tinindo de novo (Casa de Bambu), do
mecanismo de um submarino, onde as sucessivas variações de cenários de fundos
coloridos intensificam o realismo e a originalidade, de uma usina atômica (Tormenta
Sob os Mares). A natureza também constitui um cenário barroco:
extraordinários cantões esfumaçados de Capacete de Aço e
montanhas cobertas de neve em Baionetas Caladas.
Uma exceção entre os grandes coloristas, Fuller prefere, com Joseph
MacDonald[4], os tons intermediários, marrons, ocres enegrecidos, violetas
pálidos, brancos sujos, cores da terra, tão autênticas quanto as do arco-íris,
que evocam contudo o parque de diversões em Casa de Bambu e a
plasticidade de Renegando o Meu Sangue.
Um filme feito com seus pés
Se, a cada instante, Baionetas Caladas criava uma
seqüência de relações originais entre os heróis e burilava os rostos com uma
arte consumada, o mesmo não acontece em Renegando o Meu Sangue,
onde somente por clarões encontramos estes confrontos de seres entre seres.
O’Meara e Driscoll, Crazy Wolf e O’Meara, Driscoll e Crazy Wolf, através dos
sorrisos de canto da boca, prefiguram os êxtases da competição ou, por meio de
olhares enraivecidos, contém a custo sua raiva, quando em seu caminho se
interpõem uma mulher ou um terceiro. O gosto pela luta, pela violência cria uma
cumplicidade entre os adversários, em nome da qual um salva o outro, tema
de Casa de Bambu retomado inúmeras vezes aqui. Mas isto apenas
constitui uma ínfima parcela do todo. Por quê?
Na Fox, Fuller era obrigado a respeitar certas formas tradicionais de
decupagem e de filmagem, e de trabalhar no interior destas formas. Deve lhe ter
sido duro. Enquanto que, em sua produtora de denominação shakespeareana[5], a
milhares de quilômetros de Hollywood, era livre como um pássaro. O roteiro é
extremamente elaborado, com suas sutis correspondências, mas o filme sofre - e
se beneficia - de um desequilíbrio constante. Como Fuller adora filmar, mais
que tudo, uma seqüência de cenas que lhe dão prazer, livremente, ele negligencia
o resto, todas essas ligações obrigatórias: ele as escamoteia na decupagem ou
na filmagem - eis a razão desses múltiplos buracos nos filmes - ou se
desinteressa - e aí a direção de atores torna-se praticamente nula. Baionetas era
a desordem na ordem, perfeita síntese formal da moral fulleriana do
compromisso. Era sua obra-prima na medida em que a loucura só pode realmente se
exprimir com um acréscimo considerável de razão. Enquanto que Renegando é
o triunfo da desenvoltura, da indolência, da preguiça. Talvez nenhum cineasta
tenha ido tão longe no desleixo (com exceção do pobre Josef Shaftel com The
Naked Hills). Quaisquer que sejam suas negligências, não deixamos de nos
fascinar pela espontaneidade implicada por elas:Baionetas é ou será
logo um clássico, enquanto Renegando permanecerá um filme de
cabeceira. Fuller é um amador, um desleixado, já entendemos. Mas seu
filme exprime o amadorismo e a preguiça, e isso já é muito.
Se o filme não arrecadou um centavo na América, foi porque Fuller, único
responsável, só mandou para a RKO uma montagem de rushes que esta cortou, a
Universal recortou e a Rank cortou ainda mais. Com razão, ninguém acreditava no
sucesso de um filme que Sam Fuller realizou com seus pés, como o
disse graciosamente Mrs. Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido
sabotada. Mas os cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor deRenegando:
o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em série, os
sempiternos raccordsimprovisados e ridículos.
Filmar é fácil para ele
O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha livremente
perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas - uma de suas
filmagens mais longas! -, com um orçamento de quatrocentos milhões - Deus sabe
o que ele pode ter feito com isso! -, e para nos oferecer o quê? Cento e
cinqüenta planos, que na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis.
E que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu primeiro
ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um bruto! Nele, o plano
americano, figura perfeita do classicismo, ou é raro ou medíocre. Quando se
interessa por vários personagens ou objetos, planos gerais; se é por um ou
dois, closes. Fuller é o poeta do close, que, por seu caráter elíptico, é
sempre rico em surpresas (a abertura de Capacete) e que dá um
relevo insólito a rostos ou fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema
comercial a pouca reverência. Mas aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se -
muito, ou age-se - muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não está
interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar os ângulos para
desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara no bom caminho. Longo
discurso. Contracampo? Ainda espero por este. Durante no mínimo quatro ou cinco
minutos, assistimos aos dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus
ao A.B.C. idhecal[6].
Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É errado
dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isto pressuporia a possibilidade de
que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade filma ativamente.
Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para ele; basta-lhe permanecer
idêntico a si mesmo a cada instante - o que poderíamos dizer a propósito de um
Ray menor como Quem Foi Jesse James?. Seus esboços são insólitos, e
mais fortes e reveladores que uma sólida construção. Ele pode se permitir a
mistura de estilos: há de tudo em Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus
bosques de árvores esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça,
destas traquinices plásticas à la Eisenstein à composição rigorosa e
fordiana dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também Fritz
Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena do assalto
ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal (a
morte de Moe). De quê importa! Por uma espécie de homogeneidade poética, tudo
isto permanece sempre Fuller, com sua força do instantâneo e do inacabado.
Notas:
[1] Huma-Dimanche: Humanité-Dimanche, revista
francesa de orientação comunista [n.d.t.].
[2] Anjo do Mal foi banido na França por sua
representação dos Comunistas, e No Umbral da China, que se passa na
Guerra Vietnamita, por sua representação dos franceses; Proibido (1958)
ainda não tinha sido visto na França. Quando Anjo do Mal foi
finalmente liberado na França, em 1961, foi numa versão dublada chamada Le
port de la drogue (literalmente O Porto da Droga) na qual
toda história referente ao roubo de segredos de Estado Americanos por
Comunistas tinha sido transformada em uma trama sobre o tráfico de drogas - uma
alteração cuja facilidade com que se realizou foi tomada para validar o ponto
de vista de Moullet sobre a representação ‘abstrata’ do inimigo. Anjo
do Mal foi criticado por Moullet em Cahiers du Cinéma nº
121, Julho de 1961, eProibido em Cahiers du Cinéma nº
108, Junho de 1960 [n.d.t.].
[3] Fabricio Del Dongo, personagem da obra-prima de Sthendal, A
Cartuxa de Parma. Fabricio, jovem romântico, cheio de entusiasmo por
Napoleão, vai por conta própria para Waterloo lutar como voluntário em seus
regimentos. O episódio é narrado de forma irônica; Fabricio passa mais tempo
esperando pela ação do que realmente participando nesta, e quando ele de fato
luta pela sua vida é em meio à retirada Francesa [n.d.t.].
[4] Joseph MacDonald. 1906-1968. Fotógrafo que trabalhou com Fuller
em Anjo do Mal, 1953, e em cores emTormenta Sob os
Mares, 1954, e Casa de Bambu, 1955; MacDonald também era bem
conhecido por Moullet e pelo restante dos Cahiers por seu
trabalho com Nicholas Ray em Delírio de Loucura, 1956, e Quem
Foi Jesse James?, 1957 [n.d.t.].
[5] A companhia produtora de Fuller chamava-se Globe Entreprises, e produziu Renegando
o Meu Sangue eProibido para a RKO; No Umbral da
China e Dragões da Violência para a Fox; O
Quimono Escarlate e A Lei dos Marginais para a
Columbia.
[6] Regras ditadas pelo Instituto de Altos Estudos Cinematográficos,
comumente designado IDHEC [n.d.t.].
(Cahiers du Cinéma nº
93, março 1959, pp. 11-19. Republicado na compilação Cahiers du
Cinéma: The 1950s - Neo-Realism, Hollywood, New Wave, editada por Jim
Hillier, B.F.I., 1985, pp. 145-155. Traduzido por Luiz Soares Júnior)
Texto na íntegra:http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/moullet-marlowe.htm