quinta-feira, 27 de junho de 2019

Cineclube do Atalante: Mouchette



Mouchette é uma jovem inocente do interior que tem uma vida difícil e se acostumou a conviver com os abusos da família; ela se verá no meio do furação quando um assaltante, foragido, decide se relacionar com ela para ganhar um álibi.


Dirigido por Robert Bresson. 


(Mouchette: FRA, 1967 - 81 min. Com Nadine Nortier,  Jean-Claude Guilbert, Marie Cardinal. 14 anos.)


Serviço:
Sábado, 29 de junho
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

domingo, 23 de junho de 2019

Clube do Filme: de volta em julho


Atenção: comunicamos que não haverá Clube do Filme em junho.

Após esta breve pausa, estaremos de volta na Casa do Contador de Histórias em julho, na quarta quarta-feira do mês, dia 24, às 19h15.

Esperamos você por lá!

terça-feira, 18 de junho de 2019

Lola Montès

por François Truffaut 


 

O ano cinematográfico que agora termina tem sido o mais rico e estimulante desde 1946. Abriu com La Strada, de Fellini, e sua apoteose é Lola Montès, de Max Ophüls. Como a heroína de seu título, o filme pode provocar um escândalo e despertar paixões. Se tivermos que lutar, lutaremos; se tivermos que polemizar, que assim seja. É todo o cinema que deve ser defendido hoje, um cinema de auteurs que é também um prazer visual, um cinema de ideias onde a inventividade informa cada imagem, um cinema que não toma emprestado do período pré-guerra, um cinema que rompe com novos caminhos há muito tempo proibidos. Vamos frear o nosso entusiasmo e proceder de forma ordenada, tentando nos mantermos objetivos, não importa o quão pouco queiramos. A forma como a narrativa é construída e se apressa a cronologia, nos lembra Citizen Kane, embora agora tenhamos os benefícios do Cinemascope, um processo aqui utilizado ao máximo do seu potencial pela primeira vez. Em vez de simplesmente deixar seus atores no quadro desumano da tela grande, Ophüls doma a imagem, a divide, a multiplica, a contrai ou a dilata de acordo com as necessidades de sua surpreendente concepção. A estrutura é nova e ousada; pode muito bem confundir o espectador que se deixa distrair ou que chega ao meio do filme. Que pena. Há filmes que exigem atenção integral. Lola Montès é um deles. No final de sua vida dramática, Lola Montès atua e imita sua Paixão, alguns episódios de uma vida amorosa incomum. A atmosfera do circo é de pesadelo e alucinatória. Três episódios nos afastam dessa cena: o fim de um caso com Franz Liszt; sua juventude; e um caso de amor real na Baviera, pouco antes de ela entrar para o circo. O quarto episódio nos mostra Montès no circo. Peter Ustinov interpreta o papel de mestre de cerimônias, atormentador e amante final. De fato, no final de sua vida, a verdadeira Lola Montez (uma aventureira e cortesã irlandesa apesar de seu pseudônimo espanhol) foi contratada por um circo americano como a estrela de um espetáculo baseado em sua vida. Em vez de se condensar em duas horas de material cinematográfico que justificaria uma série de dezesseis partes, Ophüls optou por recriar o espetáculo de um circo e interceptar cenas do passado de Lola. Peter Ustinov, o mestre de cerimônias-biógrafo, administra seu programa com o mesmo mau gosto, vulgaridade e crueldade inconsciente que regem as transmissões de televisão. Se atores importantes têm mais prestígio do que as estrelas da TV, é porque a arte imita a vida e não a embeleza nem um pouco. O filme de Max Ophüls é sobre os pontos fracos do sucesso, sobre carreiras turbulentas e as formas como o escândalo é explorado. Montès, muitas vezes é lembrada, de que não consegue cantar ou dançar; ela simplesmente sabe como agradar, ela provoca, ela causa escândalo. O mestre de cerimônias nos diz que ela é uma mulher fatal e, se ela se mudou muito, é porque "as mulheres fatais não podem ficar paradas". Mas os flashbacks no passado de Lola que nos mostram sua infância, seu casamento com um bruto bêbado (Ivan Desny), sua aventura com um solene e tolo Franz Liszt, e suas decepções artísticas desmentem suas declarações condescendentes. Lola era uma mulher como todas as outras, vulnerável e insatisfeita, só que ela fez "todas as coisas que as mulheres na rua sonham em fazer, mas não se atrevem". Mas ela viveu num ritmo acelerado, e após um maravilhoso último interlúdio com um rei anacrônico na Baviera (Anton Walbrook), ela deve morrer todas as noites em um circo americano, imitando suas próprias paixões. Ophüls não esquece que ela levou várias semanas para atravessar um país há cem anos, então uma parte central do filme se passa em carruagens que cruzam a Europa. No final de sua vida vertiginosa, Lola é devastada, usada prematuramente: "Eu a examinei", diz o médico. "O seu coração está a adoecer e a doença na garganta é talvez ainda mais grave". As observações físicas e terrenas contam a história: "Para mim, a vida é movimento. O rei da Baviera pergunta-lhe uma noite: "Não quer parar, descansar, ficar quieta por um momento?" 

O filme é construído rigorosamente; se afasta alguns espectadores, é porque há cinquenta anos a maioria dos filmes é narrada de forma infantil. Deste ponto de vista, Lola Montès não é apenas como Citizen Kane, mas também como The Barefoot Contessa, Les Mauvaises Rencontres e todos aqueles filmes que mudam a cronologia por efeito poético. O resultado é menos uma questão de seguir uma história do que contemplar um retrato de uma mulher. A imagem é muito cheia e muito rica para ver tudo de uma só vez. O autor claramente o pretende dessa forma, chegando ao ponto de nos permitir ouvir várias conversas ao mesmo tempo. Claramente, Ophüls está menos interessado nos momentos fortes da intriga do que no que ocorre entre eles. A história que apreendemos nos restos - o que percebemos dela nos ajuda a reconstituir o resto, como na vida real - é brilhantemente lacônica. Os personagens não resumem situações com fórmulas elegantes; quando sofrem, vê-se, não é articuladamente.


Certamente este é o diálogo mais inteligente e preciso de um filme francês desde Zero de Conduite de Jean Vigo, um diálogo estritamente empírico: 'Passe-me o sal...' 'Aqui...' 'Obrigado.' E, ainda assim, há um espírito retirado de cada diálogo. O único personagem que tem o cuidado de moldar-se, frases e dar uma punhalada na eloqüência é Peter Ustinov, mas ele procura as palavras certas, gagueja, repete-se, assim como na vida real. Se Ophuls fosse um cineasta italiano, diria: "Fiz um filme neorealista". De fato, ele nos deu um novo tipo de realismo aqui, mesmo que seja a poesia, acima de tudo, que nos chama a atenção. Lola Montès, feita em três línguas, é interpretada por atores de várias nacionalidades, incluindo Peter Ustinov (russo-inglês), Anton Walbrook (austríaco-inglês) e Oskar Werner (austríaco). Na versão francesa, a que nos interessa aqui, estes atores falam francês com um sotaque mais ou menos acentuados. Acrescido a isto o fato de que  o diálogo às vezes nos oferece duas ou três conversas simultaneamente, assim como sussurros e frases perdidas, e você termina com uma banda sonora que é cerca de 20% ininteligível na primeira audição. Por ter ficado fascinado e intrigado com o diálogo, obtive um roteiro para compará-lo com a trilha sonora final. O diálogo na continuidade escrita é boa, mas a do filme é extraordinária porque os atores não foram capazes de o executarem de acordo com o texto e por conta das mudanças no palco de som. A frase "Uma fera selvagem cem vezes mais mortífera do que as que vocês acabaram de aplaudir em nossa menagèrie", é declarada pelo gênio cabeça de vento Peter Ustinov como "Uma fera selvagem cem vezes mais mortal do que as que aqui estão". Todas as falas do mestre de dança foram substituídas durante as filmagens por pequenos gritos e murmúrios que são extremamente eficazes. Ophuls deliberadamente manteve planos que eram defeituosos por acidentes em vez de outros que eram perfeitos em sua versão final editada - por exemplo, uma cena em que o chicote de Ustinov fica preso na franja de um adereço. Ou, com o rei da Bavária a dizer Eu ia para sua casa, senhora... não, isso não está certo", ele move um pedaço do cenário e pega de novo. "Eu estava indo para sua casa, madame, a fim de poupar-lhe o inconveniente."O maravilhoso "Não, isso não está certo" sem dúvida veio quando Walbrook perdeu seu lugar durante a filmagem. Com esse tipo de improvisação contínua,sendo isso voltado para melhorar o filme, a uma verdade mais autêntica, Ophuls se junta ao Jean Renoir que fez Le Crime de Monsieur Lange. 

O duplo - e até mesmo triplo - lapso que constantemente surge em Lola Montès entre os personagens e suas observações, entre a sua atuação e o texto, cria um encanto semelhante ao das hesitações de Margaritis em L'Atalante. Lola Montès é o primeiro filme que gagueja, um filme em que a beleza de uma palavra (a volúpia aveludada com que Walbrook adorna a palavra "público") dá consistentemente a deixa para o significado de uma frase. Jean Vigo vem à mente novamente, com seu gosto por textos versificados no qual ele compartilha com Ophuls. Meu coração está dividido entre este pequeno poema de L'Atalante:

Ces couteaux de table (Estas facas de mesa)
Aux reflets changeants (Com reflexos mutáveis)
Sont inoxydables (São inoxidáveis)
Eternellement. (Eternamente)
 
E este, declamado por Ustinov:

À Raguse (Em Ragusa)
Robe exquise (Vestido refinado)
Qu'on refuse (Que na feira da igreja)
A I'eglise. (Recusa ser doado)

Lola Montès é um filme que bate todos os recordes: o melhor filme francês do ano, o melhor Cinemascope até hoje; Max Ophuls é declarado o melhor encenador da época e o melhor diretor; pela primeira vez, Martine Carol, como Lola, é realmente satisfatória, Peter Ustinov é sensacional, assim como Oskar Werner; Anton Walbrook e Ivan Desny são excelentes. Max Ophuls é marcadamente um cineasta do século XIX. Nunca temos a impressão de estarmos a ver um filme histórico, mas sim de sermos espectadores de 1850, como se estivéssemos a ler Balzac. O retrato da mulher nesta obra é uma síntese de todas as suas mulheres anteriores: Lola Montès tem todos os percalços emocionais das heroínas de Sans Lendemain, Carta de uma Mulher Desconhecida e Madame de...

Estou bem ciente de que provavelmente não é uma boa idéia atacar filmes que eu não gosto para defender um filme que eu amo, mas no final sou francamente obrigado a pensar que se o público era legal para Lola Montès, é porque ele foi pouco educado para ver obras realmente originais e poéticas. Os "melhores" filmes franceses (estou pensando em Le Rouge et le Noir de Claude Autant-Lara, e em Diabolique de Clouzot, e em Les Grandes Manoeuvres de René Clair) foram feitos para agradar, lisonjear e acariciar o público. O delírio de um filme que foi desnudado cinco vezes numa semana pode continuar para sempre. Vou terminar descrevendo a beleza da última cena: Na ménagerie, Lola oferece sua mão para ser beijada através das barras de uma jaula; enquanto a câmera se move para trás, os espectadores do circo se movem para frente na parte inferior da tela e nos misturamos com eles. Pela primeira vez, a saída de um cinema acontece na tela. Todo o filme é assim colocado sob o patrocínio de Pirandello, como todo o trabalho de Ophuls. Lola Montès é apresentada como uma caixa de chocolates que nos é dada como presente de Natal; mas quando a tampa é retirada, sai como um poema que vale uma fortuna incalculável.

Texto publicado em 1955 e retirado do livro “Os Filmes de Minha Vida”, de François Truffaut. Tradução de Waleska Antunes.