
O que dizer
da passagem de Jean-Pierre Gorin pelo Brasil, apresentando os filmes que fez em
parceria com Jean-Luc Godard, num período que se transformou num dos mais
obscuros e controversos da carreira de um dos cineastas mais importantes e
conhecidos do mundo inteiro? O mínimo a se dizer é que passou tudo como um
furacão. Sessões lotadas, enormes filas de desistência, protocolos de sessão totalmente rompidos pelas falas
introdutórias e finais de Gorin, num estilo rebarbativo e frontal, jogando as
farpas de um ressentimento ainda mal resolvido mas igualmente contextualizando
e apresentando de forma muito aguda as problemáticas e as inconsistências do
Grupo Dziga Vertov, apelido dado à união dos dois para fugir do cinema
comercial e da glamurização do nome-do-autor e voto de princípio, a partir da
menção ao cineasta russo, a uma dedicação estrita em refletir e problematizar
sua época através de situações visuais bem específicas. Aos pouco inteirados
sobre a carreira e o percurso particular da obra de Godard (e de uma
determinada situação do cinema moderno na passagem dos anos 60 para os 70),
parecia que a exibição dos filmes era um mero adendo para ouvir as virulentas
invectivas de Gorin contra Os
Sonhadores, contra Cidade
de Deus, ou explicando o processo de cada filme, sua opinião em relação a
cada um deles (bastante sincera e apaixonada, diga-se – no bullshit), e tecendo
comentários ácidos sobre a carreira que Godard desenvolveu depois do término do
grupo. Impressão falsa: os filmes ainda falam muito, e falam forte. Falam,
inclusive, mais e mais forte que Gorin.
Se um dos textos canônicos sobre a obra de
Godard dizia da dificuldade de ser Jean-Luc Godard, deve-se dizer hoje que
também não é nada fácil ser Jean-Pierre Gorin, e ter seu nome afixado na
história do cinema apenas como uma espécie de apêndice, no melhor dos casos, e
de "Yoko Ono de Jean-Luc Godard" (citação do próprio Gorin), ou de
"mau passo", desvirtuamento de um gênio, no pior deles. Então, quando
se ouve o discurso verborrágico do, digamos assim, lado fraco da relação,
algumas coisas devem ser postas em perspectiva. O próprio comportamento de
Gorin já o colocava de antemão como alguém que parecia estar falando ou toda a
verdade, ou toda a mentira. Como todo discurso orgulhoso sobre uma relação que
deu errado, não há tanto mentiras, mas julgamentos relativamente
desequilibrados, injustiças patentes. Mas também testemunhos precisos, análises
certeiras. O trunfo maior de seu discurso é o momento do primeiro encontro
entre os dois, até concretizar-se o Grupo Dziga Vertov: "Quando eu o conheci,
ele já era Godard e eu era um militante, mas ele tinha vários projetos e não
conseguia completar nenhum, não sabia mais que tipo de cinema fazer, estava
estagnado (stuck). Fui eu quem fez que o grande cineasta voltasse a
trabalhar e fazer filmes." Ou então na análise da função estética dos
filmes do grupo no seio de um cinema de esquerda: "Toda a idéia do Grupo
Dziga Vertov foi de questionar o dito cinema de esquerda, que se interessava
por temas políticos mas organizava suas ficções da mesma forma que o cinema
imperialista ou comercial, sem questionar seus pressupostos, dentro do mercado
capitalista, em sua relação com os atores, etc.".
Os testemunhos mais bombásticos, porém, não
vinham sem um quê de desdém: "Se observarmos o cinema de Godard antes do
Grupo Dziga Vertov e o cinema que ele fez depois, vamos perceber que o trabalho
de som e o descentramento das imagens não estão presentes em nenhum de seus
filmes antes de 68, e em todos os filmes depois do fim do grupo. Aí a modéstia
fala mais alto, ou a memória prega peças. Pode-se dizer, sem nenhum exagero,
que todo o revolucionário trabalho de som (voltaremos a ele já já) já está
prefigurado no lema "lutar em duas frentes", emitido numa das
conversas entre Anne Wiazemsky e Jean-Pierre Léaud, em A Chinesa: ela coloca um disco,
e quando a música começa ela diz a ele que não quer mais ficar com ele, que não
o ama mais, etc. Lutar em duas frentes, é também colocar bandas sonoras que
entram em conflito umas com as outras, fazer delas um uso dialético. Assim
também em Duas ou Três Coisas
Que Eu Sei Dela ou One Plus One. Não que não haja
uma novidade no discurso do grupo, mas é mais no sentido de uma radicalização
operada por um processo sistemático e centrado nesse tipo de questionamento do
que numa inovação trazida por Gorin que modificaria inteiramente o cinema de
Godard.
O som, ou
tratado de desarmonia
Se a frase mais pregnante do cinema de Godard em
todo o período do Grupo Dziga Vertov refere-se à imagem ("Não uma imagem
justa, mas justo uma imagem", numa cartela de Vento do Leste), é no trabalho
de edição de som que os filmes desse período se destacam. Muitos quiseram ver
na época – em em alguma medida é a interpretação mantida por muitos até hoje,
na mostra, a despeito mesmo das recorrentes indicações de Gorin – apenas uma
verborragia militante que revela um discurso datado ou ultrapassado. Sobre a
caduquice de muitos dos questionamentos do pós-68 expressos nos filmes, não é
aqui a ocasião mais adequada a demonstrar ou "desdemonstrar" (muitos
dos questionamentos contemporâneos passam pelos mesmos tipos de problemas, só
que com uma radicalidade atenuada e um vocabulário mais, err, moderno). Mas o
que essa impressão deixa de completamente errôneo é o argumento de que a única
coisa que filmes como Um Filme
como os Outros, Vento do
Leste e Tudo Vai Bem faziam com o som era elencar
palavras de ordem uma atrás da outra. Ora, basta entrar em contato com os
filmes para perceber que os "discursos" dos filmes, quase sempre
tirados diretamente de livros que faziam a sensação entre os militantes do
momento, não eram o discurso dos filmes propriamente, mas a matéria prima que eles utilizavam para criar ouro tipo de discurso, um discurso
propriamente cinematográfico. Não exatamente uma imagem justa, mas uma montagem
justa: usar uma banda sonora como espaço invasivo da outra (montagem sonora) ou
usar filmetes quaisquer de maio de 68 – não filmados por Godard ou por Gorin,
ao contrário do que se diz freqüentemente – para cortar o fluxo das imagens do
grupo militante sentado na relva discutindo os caminhos do pós-Maio (montagem
visual). Essa montagem justa não é uma montagem lógica para provar um ponto, um
argumento, mas uma montagem propriamente musical, que o som viria metaforizar
de forma flagrante. Se as leituras off são cortadas ou cortam as falas dos
militantes conversando, é porque nenhuma delas tem exatamente o papel de voz da verdade – pois, se assim fosse, logicamente
elas não deveriam nem poderiam ser cortadas –, mas uma espécie de função de
colagem dadaísta, uma maneira de problematizar e perspectivar esses
"discursos". Como sempre no cinema de Godard, antes e depois, é um
princípio socrático: jamais dar a verdade de uma problemática (isso seria
recair no cinema cheio de pressupostos e falhas lógicas do cinema
"imperialista" de esquerda), mas montar elementos que sirvam para a
criação de um objeto artístico que possa fissurar, suspender, instaurar um
outro tipo de questionamento. A fala dos filmes do Grupo Dziga Vertov, ou pelo
menos os melhores entre eles, não é ilustrativa, mas problematizante.
Assim, vendo os filmes em seqüência, percebe-se
com facilidade que as obras assinadas Grupo Dziga Vertov realizam melhor ou
pior seus projetos à medida que a banda sonora é mais ou menos complexa,
desempenha um papel mais ou menos problematizante do discurso das palavras de
ordem. Assim, é possível ver em filmes comoPravda ou Lutas na Itália apenas um esboço do que viria a ser
esse cinema (a banda sonora em voz off é ainda uma capitulação à voz da
verdade), ou em Vladimir e
Rosa uma dramatização cínica
e um tanto pueril que mais tem a ver com o agitpop (sic) de um Michael Moore do que
com as outras propostas e problematizações do grupo. Em seus melhores momentos,
contudo, os princípios da imagem
justa/justo uma imagem são
também aplicados ao som (ao contrário do que sugere Pascal Bonitzer em seu
artigoO Que é um Plano): em Sons
Britânicos, em Um Filme
como os Outros, em Vento
do Leste, em Tudo Vai Bem,
o uso do som – e nisso vai um grande grau de rascante perversidade
godard-goriniana em relação à cartilha militante do momento – assume uma função
fundamentalmente plástica, abstrata, musical em relação aos
"conteúdos". Em contraposição à voz
do pai (mais uma vez,
expressão de Gorin para se referir a Lutas
na Itália) dos discursos "conscientes" e auto-suficientes do
cinema de esquerda (basta olhar para o cinema de Ken Loach, Costa Gavras e Mike
Leigh para ver que o problema ainda se faz presente hoje), o que esses filmes
nos entregam com força enorme ainda hoje é um preciso questionamento do cinema
de esquerda como didática (como conscientizador, ou seja, fazendo o espectador
sentir-se como um aluno de escola primária diante do professor que sabe tudo) e
sua outra face, a de um filme que apenas nos apresenta, nos coloca diante de
certos dados que o próprio filme não faz questão de enquadrar numa significação
determinada (num sentido pronunciadamente diferente do que aquele que lhe dá
Serge Daney, uma pedagogia godardiana), mas simplesmente de associar uma certa
imagem com uma outra, acavalar um certo som em cima de outro, e fazer o
espectador então experimentar a força que surge do choque de um com outro.
Claro, há ainda no projeto do Grupo Dziga Vertov
uma certa ausência de auto-crítica, uma certa idealização do papel da vanguarda
revolucionária, um certo fetichismo da revolução. Isso é parte integrante do
trabalho do grupo, e é bem possível que tenha sido essa constatação o que fez
com que o Grupo se separasse e cada um tenha seguido o seu caminho. A melhor
crítica a se fazer do Grupo Dziga Vertov já foi feita, e pelo próprio Godard,
no filme que retoma um projeto inacabado do grupo em 1970, Jusqu'à la victoire.
A melhor crítica ao Grupo Dziga Vertov se chama Ici et ailleurs, Aqui e Acolá, obra-prima que
inaugura um certo tipo de cinema que Godard pratica até hoje. Mas isso é outra
história. Restam os filmes, uns fortes, outros nem tanto, e resta o discurso de
Gorin, infelizmente um tanto mais datado do que os melhores filmes, mas ainda assim
um discurso repleto de uma inesperada energia, uma energia que se vê nos filmes
e que, como o próprio Gorin observa, tem muito a ver com um certo sentimento de cinema de garagem que anos depois viria a se configurar
no punk, e que hoje poderia ser visto em determinados usos do hip-hop. Em comum
entre os filmes e os dois movimentos musicais, um desejo em desarmonizar, em
desarranjar o arranjado fazendo uma nova ordenação sonora em que o ruído exerce
uma função de significação (contrariamente à regra geral, que deseja o ruído
fora da composição) e problematiza a estética beletrista. Não basta aumentar o
amplificador, é preciso também agenciar as notas.
Ruy Gardnier
(Artigo original: http://www.contracampo.com.br/75/grupodzigavertov.htm)