sábado, 21 de janeiro de 2017

Jacques Becker

Amores de Apache

Em Ser ou não ser (To be or not to be) de Ernst Lubitsch, oficiais alemães levam alguns minutos puxando-se reciprocamente os bigodes a fim de desmascarar o impostor entre eles.

É inútil submeter os personagens de Amores de apache a semelhante teste, pois cada fio do bigode de Serge Reggiani é hors concours neste festival de autenticidade.

Amores de apache, por outro lado, foi o único filme que Jacques Becker, normalmente minucioso, maníaco, inquieto e às vezes tateante, filmou de uma vez só, muito depressa, num só fôlego, direto ao fim. Ele mesmo escreveu o diálogo, muito falado, absolutamente natural e tão econômico que parece que Reggiani não pronuncia mais que sessenta palavras.

Para todos aqueles que gostam de Amores de apache, é evidente que Simone Signoret e Serge Reggiani encontram no filme seus melhores papéis, embora o público francês – mas não o inglês, decididamente mais fino – pareça ter vaiado esse casal paradoxal, belo justamente por seu paradoxo: um homem pequeno e uma mulher alta, um gatinho vadio nervoso e uma bela planta carnívora qui ne crache pas sur le frommage.

Se nos interessamos pela construção das histórias, como não admirar a engenhosidade do roteiro e particularmente a maneira vigorosa, desviante e inesperada de chegar abruptamente à execução de Manda por meio de uma cena tão bela quanto misteriosa, a chegada de Casque d’Or a uma taberna em plena noite? Quando estamos em pane, meus amigos roteiristas e eu muitas vezes dizemos: E se adotássemos “uma solução Casque d’Or”?

Amores de apache, que em primeiro lugar é um filme de personagens, é também um filme muito bem sucedido plasticamente: a dança, a briga no quintal, o despertar no campo, a chegada de Manda diante da guilhotina sustentado por um padre, todas essas imagens são capas do Petit Journal ou de L’Illustré e esse encantamento do olhar causado pela ilustração me confirma a idéia de que o cinema tem uma vocação popular e que se engana ao pretender gostar das pinturas dos mestres.

Amores de apache, às vezes engraçado e outras trágico, prova, finalmente, que é possível ultrapassar a paródia através da utilização refinada do tom, olhar um passado pitoresco e sangrento e depois ressuscitá-lo com ternura e violência.

(1965)

Grisbi, Ouro Maldito

Não há nenhuma teoria sobre Jacques Becker, nenhuma análise, nenhuma tese. Tanto sua obra como sua pessoa desencorajam o exegeta e é melhor assim.

Becker, com efeito, não pretende mistificar nem desmitificar ninguém; seus filmes não são nem de “impressão de realidade” nem de “denúncia e crítica”, logo, nosso autor trabalha à margem dos modismos e nós o situaríamos mesmo nos antípodas de todas as tendências do cinema francês.

Todos os filmes de Jacques Becker são filmes de Jacques Becker; isso é apenas uma questão, mas importante. Embora admita-se comumente que é preferível ser o autor dos filmes que se dirige, as razões apresentadas são banais e continua-se a dedicar uma admiração a meu ver descabida às equipes e parcerias. O fato de Renoir, Bresson, Cocteau e Becker participarem da elaboração do roteiro e assinarem os diálogos proporciona-lhes não somente uma maior desenvoltura durante a filmagem como, mais radicalmente, possibilita-lhes recusar cenas e réplicas que são típicas cenas e réplicas de roteirista em favor de cenas e réplicas que um roteirista seria incapaz de conceber. Querem exemplos? A cena de Vivamos hoje (Edouard et Caroline) em que Elina Labourdette interpreta com os olhos assustados, para admiti-la como “filmável” teria sido preciso havê-la testemunhado na vida e depois tê-la pensado enquanto “diretor”.  Não sei se devemos essa cena a Annette Waldemant ou a Jacques Becker, mas tenho absoluta certeza que qualquer outro diretor a teria retirado da decupagem; ela não contribui para que a ação de um só passo, está ali para dar um toque, não de realismo, mas de realidade; também está ali por amor à dificuldade.

Essa busca por uma exatidão de tom cada vez maior pode ser observada principalmente nos diálogos; em Amores de Apache, Raymond (Bussières) entra na carpintaria de Manda (Reggiani) dizendo: “E então, trabalho trabalho, carpina carpina?”; esta réplica não só não poderia ser uma réplica de roteirista como também não é uma dessas que se inventam na hora da filmagem; isso não impede que nesse “trabalho trabalho, carpina carpina” exista uma inteligência (no sentido de cumplicidade: inteligência com um amigo) que me deixa confuso toda a vez que assisto ao filme.

Não é tanto a escolha do tema o que caracteriza Becker e sim a escolha do tratamento do tema, a escolha das cenas que irão ilustrá-lo. Embora mantenha apenas o essencial do diálogo, ou o essencial do supérfluo (talvez até onomatopeias), ele optará de bom grado por escamotear aquilo que qualquer outro além dele trataria o mais cuidadosamente possível para deter-se mais em personagens tomando o café da manhã, passando manteiga em torradas, escovando os dentes, etc. Reza uma convenção que, na tela, os amantes só devem abraçar-se em sobreposição; se o cinema francês mostra um casal se despindo ou andando pelo quarto em roupa de dormir será para fazer gozação. Poder-se-ia pensar que essas regras tácitas são ditadas por uma preocupação com a elegância. O que faz Becker em semelhante caso? Seu gosto pela dificuldade a que já me referi fará com que trate a cena ao contrário das regras. Em Amores de apache ele mostra Reggiani e Signoret de roupa de dormir e, em Grisbi, Gabin de pijama.

Esse gênero de trabalho é um perpétuo desafio à vulgaridade, desafio do qual Becker sai sempre vencedor, pois seus filmes são elegantes e dignos.

O que acontece com os personagens de Becker conta menos do que a maneira como acontece. O enredo, que é um mero pretexto, tende a estreitar-se de filme em filme: Vivamos hoje é apenas a história de uma noitada tendo como acessórios um telefone e um colete de smoking. A história de Grisbi, ouro maldito é apenas a transferência forçada de noventa e seis quilos de ouro. “Interesso-me primeiro pelos personagens”, diz Becker; o verdadeiro tema de Grisbi, aliás, é o envelhecimento e a amizade. Esse tema transparecia no livro de Simenon mas poucos roteiristas teriam sabido detectá-lo e trazê-lo para o primeiro plano, relegando ao segundo a ação violenta e o pitoresco. Simonin tem quarenta e nove anos, Becker, quarenta e oito, Grisbi é um filme sobre a cinquentena. No fim do filme, Max – como Becker – usa óculos “para ler”.

(...)

Para nós, que temos vinte anos ou mais, o exemplo de Becker é uma lição e ao mesmo tempo um encorajamento; de genial conhecemos apenas Renoir; descobrimos o cinema quando Becker estreava; assistimos a seus tateios, a seus ensaios: vimos uma obra se fazer. E o sucesso de Jacques Becker é o de um jovem que não concebia outro caminho além daquele que ele mesmo escolhera, e cujo amor pelo cinema foi retribuído.

(1954)

A um passo da liberdade

(...)

Um cineasta ingênuo não tem muitos problemas de roteiro, uma vez que é facilmente logrado pela história que conta, o primeiro otário, o primeiro espectador. Um cineasta filósofo, que procura expressar ideias gerais, precisa apenas construir uma história para transformá-la no veículo de seu pensamento. Nesse caso também não há problema. Jacques Becker, porém, não era um cineasta ingênuo nem um cineasta filósofo, era um puro cineasta, preocupado somente com os problemas inerentes à sua arte.

Sua precisão básica era obter uma precisão de tom cada vez mais refinada, ou seja, evidente. Como acontece com todos os cineastas que se colocam muitas questões, ele conseguia saber muito melhor aquilo que queria evitar do que aquilo que queria obter. Odiava um tipo de cinema que poderíamos chamar de cinema abusivo, a ênfase, a exploração do erotismo, a violência, o aumento sistemático de tom.

(...)

Jacques Becker era um cinéfilo. Apesar dos vinte anos de profissão nós o sentimos ainda perplexo por haver realizado seu sonho de adolescente, fazer filmes. No final de A um passo da liberdade é emocionante ver seu filho, Jean Becker, surgir bruscamente das profundezas exatamente como Edouard Dhermite-Cocteau surge das ondas em Le testament d’Orphée.

(1960)

Trechos retirados do livro Os filmes da minha vida de François Truffaut.               

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