por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
Tudo é exagero, abundância e excesso nesse filme de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta. Ainda assim, nada é demais e nada sobra: o Real é mostrado em estado bruto na sua justa medida.
Tudo começa num laboratório, onde sucessivas operações químicas permitem exibir o metal prateado, até então prisioneiro na trama do minério. Do laboratório vamos à mina, cuja entrada é assinalada por advertências: perigo!
O primeiro sentimento é de susto: o perigo cerca o casal de cineastas, nunca mostrados, mas o tempo todo adivinhados por detrás da câmera temerária, que leva o olho a pontos de vista inéditos. Um risco que leva ao espanto e corta a respiração: a carne frágil, sujeita a dilacerar-se, exposta a forças ciclópicas, numa reedição de Ulisses e seus companheiros de Odisséia na toca de Polifemo.
A seguir somos capturados na plena potência de um Deus ex machina que, esbanjando forças avassaladoras, submete a montanha de pedra, perfurando, rompendo, quebrando, estilhaçando, cisalhando, moendo e convertendo, enfim, rocha em pó, destinado ao fogo incandescente. Os homens entrevistos como serviçais humildes do monstro que faz tremer e devora a Terra.
Somos embalados por um ruído ensurdecedor transformado em poema sinfônico – o som furioso da montanha gritando sob os dentes que a devoram convertidos em música: um hino de guerra entoado por um exército em ordem de batalha, numa verdadeira cavalgada das valquírias. Sonoridade das oficinas de Vulcano convertida em canto de louvor a Dionísio, próprio para o festival das bacantes e, como ensina Nietzsche, precursor da tragédia, que parece suspensa e iminente na vizinhança de máquinas que mostram os punhos de poderosos Titãs.
Vemos imagens sem palavras, que não há palavra que encontre lugar naquela manifestação cruenta de forças da Natureza, mesmo orquestradas por Apolo. Então, não é apolínea a condução do processo que ordenha a Terra, para dela extrair o leite desejado? Afinal, se o homem aparece servindo à máquina, no limite é, ela própria, escrava obediente, que tão somente cumpre os desígnios desenhados e projetados pela Engenharia humana para obter o metal que, até há pouco tempo, dava luz ao mundo.
Imagens que nos mostram que as máquinas cumprem as ordens de seu criador, ordens estas resultantes do ordenamento simbólico exercido pela inteligência do homem no esforço de governar o Real. Mostram também a dignidade suprema do trabalho humano e, simultaneamente, o seu aviltamento – até o desconforto extremo e a ameaça permanente – conversando o tempo todo, num confronto ainda insolúvel. O produto: riqueza! Para quem? Para a humanidade.
O mais é beleza – beleza em estado bruto e puro. Grafismos, cores, tons e meios-tons, cintilações, reflexos, granulações, texturas, corredeiras, cascatas e ondas, matéria sólida convertida em fluido, arte plástica em movimento, transformação e mutação.
No fim do filme, a conclusão siderante de um circuito, onde a causa final, mostrada no princípio, reaparece, fechando-se o ciclo: as mãos calejadas de um operário dobram o envelope que levará a amostra ao laboratório, onde será examinada, pesada, medida e analisada, com a sabedoria herdada dos alquimistas, para a verificação final da qualidade da saliva do lobo.
Finalmente entram em cena as palavras, sem que se renuncie ao seu silêncio. São palavras escritas, na caligrafia desenhada pela mão do operário: imagens identificadoras das amostras – celebrando os hieróglifos, ideogramas, alfabetos, marcas, enfim, que afirmam, no registro simbólico, a vitória da Cultura sobre a Natureza. Ali e então.
O comovente hino dos mineiros chilenos, cantado ao final, em vozes alentejanas, embalando o arvoredo que se agita ao vento (finalmente é possível respirar), sugere uma ponte solidária estendida do Atlântico ao Pacífico, irmanando os mineiros de todo o mundo? Talvez.
Entretanto, a canção não consegue calar o silêncio respeitoso que me invade a alma ferida, exposta, como chaga aberta, à ardência de uma verdadeira obra de arte.
Tudo é exagero, abundância e excesso nesse filme de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta. Ainda assim, nada é demais e nada sobra: o Real é mostrado em estado bruto na sua justa medida.
Tudo começa num laboratório, onde sucessivas operações químicas permitem exibir o metal prateado, até então prisioneiro na trama do minério. Do laboratório vamos à mina, cuja entrada é assinalada por advertências: perigo!
O primeiro sentimento é de susto: o perigo cerca o casal de cineastas, nunca mostrados, mas o tempo todo adivinhados por detrás da câmera temerária, que leva o olho a pontos de vista inéditos. Um risco que leva ao espanto e corta a respiração: a carne frágil, sujeita a dilacerar-se, exposta a forças ciclópicas, numa reedição de Ulisses e seus companheiros de Odisséia na toca de Polifemo.
A seguir somos capturados na plena potência de um Deus ex machina que, esbanjando forças avassaladoras, submete a montanha de pedra, perfurando, rompendo, quebrando, estilhaçando, cisalhando, moendo e convertendo, enfim, rocha em pó, destinado ao fogo incandescente. Os homens entrevistos como serviçais humildes do monstro que faz tremer e devora a Terra.
Somos embalados por um ruído ensurdecedor transformado em poema sinfônico – o som furioso da montanha gritando sob os dentes que a devoram convertidos em música: um hino de guerra entoado por um exército em ordem de batalha, numa verdadeira cavalgada das valquírias. Sonoridade das oficinas de Vulcano convertida em canto de louvor a Dionísio, próprio para o festival das bacantes e, como ensina Nietzsche, precursor da tragédia, que parece suspensa e iminente na vizinhança de máquinas que mostram os punhos de poderosos Titãs.
Vemos imagens sem palavras, que não há palavra que encontre lugar naquela manifestação cruenta de forças da Natureza, mesmo orquestradas por Apolo. Então, não é apolínea a condução do processo que ordenha a Terra, para dela extrair o leite desejado? Afinal, se o homem aparece servindo à máquina, no limite é, ela própria, escrava obediente, que tão somente cumpre os desígnios desenhados e projetados pela Engenharia humana para obter o metal que, até há pouco tempo, dava luz ao mundo.
Imagens que nos mostram que as máquinas cumprem as ordens de seu criador, ordens estas resultantes do ordenamento simbólico exercido pela inteligência do homem no esforço de governar o Real. Mostram também a dignidade suprema do trabalho humano e, simultaneamente, o seu aviltamento – até o desconforto extremo e a ameaça permanente – conversando o tempo todo, num confronto ainda insolúvel. O produto: riqueza! Para quem? Para a humanidade.
O mais é beleza – beleza em estado bruto e puro. Grafismos, cores, tons e meios-tons, cintilações, reflexos, granulações, texturas, corredeiras, cascatas e ondas, matéria sólida convertida em fluido, arte plástica em movimento, transformação e mutação.
No fim do filme, a conclusão siderante de um circuito, onde a causa final, mostrada no princípio, reaparece, fechando-se o ciclo: as mãos calejadas de um operário dobram o envelope que levará a amostra ao laboratório, onde será examinada, pesada, medida e analisada, com a sabedoria herdada dos alquimistas, para a verificação final da qualidade da saliva do lobo.
Finalmente entram em cena as palavras, sem que se renuncie ao seu silêncio. São palavras escritas, na caligrafia desenhada pela mão do operário: imagens identificadoras das amostras – celebrando os hieróglifos, ideogramas, alfabetos, marcas, enfim, que afirmam, no registro simbólico, a vitória da Cultura sobre a Natureza. Ali e então.
O comovente hino dos mineiros chilenos, cantado ao final, em vozes alentejanas, embalando o arvoredo que se agita ao vento (finalmente é possível respirar), sugere uma ponte solidária estendida do Atlântico ao Pacífico, irmanando os mineiros de todo o mundo? Talvez.
Entretanto, a canção não consegue calar o silêncio respeitoso que me invade a alma ferida, exposta, como chaga aberta, à ardência de uma verdadeira obra de arte.
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