Trechos do
primeiro capítulo do livro “O Olho Interminável- Cinema e Pintura” de Jacques Aumont.
Lumière,
“O último pintor
impressionista”: em resposta a essa afirmação de Godard
O que isso significa? Duas coisas. Os efeitos da
realidade, às vezes esquecemos de dizer, são também efeitos quantitativos, e é
este, eminentemente, o caso na vista Lumière. O que encanta o espectador é
também o fato de lhe mostrarem um número tão grande de figurantes a um só tempo
e, sobretudo, de maneira não repetitiva. As “personagens” da Saída da fábrica
ou da Place des Cordeliers são vistas como independentes umas das
outras; as pessoas ficam encantadas ao descobrir, na décima vez que vêem o
filme, um gesto, uma mímica que até então havia escapado; a cada instante
acontece alguma coisa, e quantas se quiser, ou quase. Bastante esclarecedor, ao
contrário, um filme como o Desembarque dos fotógrafos no Congresso de
Neuville-sur-Saône:bem individualizáveis, já que passam um a um diante da
câmera, eles acabam parecendo todos iguais. Vemos todos fazendo gestos
afetados, instalamo-nos na repetição, nos entediamos em um minuto! Tal efeito
quantitativo tornou-se difícil de ser apreciado, ficamos saturados e
insensíveis. Ele foi, no entanto, capital, até na concorrência entre Lumière e
Edison, e vários críticos opõem expressamente a profusão sempre renovada, a
generosidade visual dos filmes Lumière, à avareza do cinescópio, onde um pobre
grupo de figuras se repete interminavelmente.
Será que já, em pintura, um equivalente imaginável
desse tipo de efeitos de realidade, quero dizer, um equivalente espectatorial
que faça sentir o mesmo júbilo e o mesmo reconhecimento? Não estou certo de que
a dimensão dos quadros tenha desempenhado aí algum papel: diante das grandes
máquinas pictóricas do século XIX, ficamos mais tocados do que maravilhados, e
mais angustiados do que satisfeitos. O valor pictórico quantificável por
excelência, e no século XIX, talvez o único, é o caráter acabado do detalhe, a
precisão, a impecabilidade. Valor burguês, é óbvio, a impecabilidade é
igualmente cultivada pelo romântico e pelo pompier, pelo pintor de batalhas e
pelo mais frívolo dos pintores mundandos; ela está tanto em James Tissot quanto
em Gros ou Meissonier. O que causa a admiração do século XIX por esses quadros
aos quais não falta sequer um botão de polaina? O que permite a transferência,
para aquele valor, do deslumbramento técnico que a pintura sempre procurou
(“vejam minha virtuosidade”: leitmotiv do pintor ocidental)? É, de modo
inegável, poder imaginariamente, “computar” o real, fazer com que ele recaia
sobre o indefinidamente adicionável, sobre uma pura aglomeração de peças e
pedaços. O que seduz nas vistas Lumière seria, portanto, também seu lado
impecável, de uma rara perfeição, já que a quantidade de detalhes, e sobretudo
sua tão notada autonomia, tornam-se aí mais ou menos infinitas. Junção
inesperada, mas efetiva: por essa pletora, por esse transbordamento de realidade,
a vista Lumière escapa, de saída, de uma parte de sua herança— o brinquedo, o zootrópio ou
fantascópio, o divertimento baudeleriano—, e passa, de saída para o lado da arte, mesmo que
ainda de uma arte menor.
Segundo aspecto dos efeitos da realidade, mais
importante ainda, como veremos: sua qualidade. Lembramo-nos da surpreendente
reação a um dos primeiros espectadores do Lanche do bebê, George Meliès.
Desdenhando comentar o que é, hoje ainda, o charme do filme, — as caretas da garotinha, seu
jogo perverso com a câmera, a atitude incomodada e afetada dos pais—, Meliès só nota uma coisa: no fundo da imagem há
árvores, e maravilha, as folhas dessas árvores são agitadas pelo vento. Em
outra parte, serão a fumaça— as das Brûleuses
d'erbe, tão notadas—,
a neblina, vapores, reflexos, marulho das ondas, tão perturbadores que
ocultarão quase todo o resto e, em todo caso, bem rápido, o próprio movimento.
Como se, nas vistas Lumière, o ar, a água, a luz se tornassem palpáveis,
infinitamente presentes.
E não é um acaso se esse aspecto escapa, em 1989,
menos que outro. Claro, para nós, ele é óbvio, mas está sempre ali e participa
o bastante desse efeito mágico tão bem descrito por Langlois, Godard e Garrel (comentado
em um trecho anterior do texto). É que, ainda hoje, esse tipo de efeito responde a
uma certa definição de arte visual, e esquecemos que ao longo de ao menos um
século a pintura, e depois a fotografia, se obstinaram a produzir esse tipo de
efeito. Há aí uma história, a da pintura das nuvens, das tempestades, e dos
arco-íris, a das folhas trêmulas ao vento e do mar cintilante ao sol, uma
história da qual o século XIX fizera, entre outros, seu grande negócio. Seria
um exagero, é claro, fazer disso um fato só desse século. Pintores tão importantes
e tão diferentes quanto Poussin, Velazquez ou Chardin, entre muitos outros,
trabalharam para mostrar o tremor da luz nas folhas ou a atmosfera dos fins de
tarde, ou o brilho tranquilo dos objetos do cotidiano. O que é próprio do
século que vai inventar o cinema é o fato de ter sistematizado tais efeitos, e
sobretudo de tê-los cultivados por si sós, de ter erigido a luz e o ar em
objetos pictóricos.
Nessa pesquisa, três traços são salientados, como
questões relacionadas à pintura:
— o impalpável: a luz ainda não pode ser tocada,
ela é “matéria” visual por excelência, pura. Melhor ainda, a luz atmosférica
não é, propriamente falando, sequer vista, a não ser por seus efeitos; ela é
apenas a “cor” do ar... A herança luminista— a de Ticiano e Velázquez— deve ser
repensada, seria preciso chegar a pintar o transparente em todos os seus
estados.
— o irrepresentável: é, portanto, um desafio à
habilidade do pintor, salientado como tal. Com a insistência um pouco obstinada
que lhe é habitual, Ingres quer resolver o problema pela força, pela força
técnica: “As nuvens também podem ser desenhadas, são linhas, nem mais nem menos”.
No outro extremo, Turner mergulha, espetacularmente, —com outra virtuosidade,
mas igual— qualquer linha em uma explosão de cor. Irrepresentável, o fenômeno
atmosférico suscita ainda mais, dir-se-ia, a obstinação teórica: é para
figura-lo que Turner aplica Goethe, que os impressionistas acreditam aplicar
Chevreul.
— o fugidio, enfim, o infinitamente lábil, e
portanto, em profundidade, a irritante questão do tempo. Como fixar o efêmero
em pintura de outra maneira que não no modo da síntese temporal, à qual a
doutrina do instante pregnante condena? Retomaremos de modo mais
demorado esse ponto, mas notemos, logo, que a fotografia, ao “embalsamar” o
tempo (André Bazin), duplicou a questão à qual está submetida a pintura,
aprofundou o desacordo entre a lentidão do pintor e a infinita rapidez do raio
a ser pintado.
É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça pra
baixo, que ele ultrapassa definitivamente com seus efeitos de realidade, inocentes,
e inocentemente perfeitos. A atmosfera continua aí impalpável, e, se se
quiser, irrepresentável; mas não deixa de estar presente no cintilar das folhas
(agitadas pelo vento, pelo ar, concluem infalivelmente os críticos: é
mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é claro, o fugidio é
enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico que se mede o
melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as centenas de
folhas duramente pintadas, uma por uma, e um Théodore Rousseau, pelo
aparecimento imediato de todas as folhas. E além do mais, elas se
mexem...
(...)
Lumière enfim contemporâneo, ligeiramente atrasado
talvez, da pintura: o cinema será sempre esse ”pequeno último”, mas o que a
história das folhas que se mexem assegura é que ele faz mesmo parte da banda.
(...)
Eu tentei apenas apreender em que Lumière podia ser
“o último grande pintor impressionista da época”, e minha resposta a essa
questão consiste em agora duas ideias. Em primeiro lugar, Lumière encontra e, volens
nolens, trabalha dois problemas que pertencem de pleno direito à reflexão
pictórica, e à pintura simplesmente. Esses dois problemas— o dos efeitos da
realidade, o do quadro— estão ligados particularmente no momento em que Lumière
se apropria deles, à questão mais geral da liberação do olhar no século
XIX.
(...)
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