sábado, 1 de julho de 2017

Zombie, ou a desrazão

















Por Miguel Haoni       

O primeiro plano de Zombie (1979) de Lucio Fulci é um revólver apontado para a plateia. A ironia implícita no gesto remete ao grande projeto do autor: a destruição da racionalização que o público assume na fruição dos filmes. Não à toa, a única maneira de eliminar os zumbis que invadem seu universo é através da destruição de suas cabeças, que sempre simbolizaram a razão, a inteligência, a consciência e outros instrumentos insuficientes para a apreciação de seus filmes. É através desta destruição que os mortos-vivos e os espectadores se libertarão.   

O filme se estrutura sobre paradoxos: os casais simbolizam os limites entre o desespero assumido e a projeção de uma aparência de controle. Enquanto as mulheres são as primeiras a mergulhar no pesadelo, os homens representam os estertores de uma razão vacilante. Para isto o filme transita entre o sobrenatural e o científico. O personagem do Dr. Menard, por exemplo, através de todas as estratégias médicas tenta em vão dar conta dos fenômenos inexplicáveis. A invasão dos mortos-vivos é a materialização do impossível, o que exigiria dos personagens – que são ao mesmo tempo heróis no filme e representantes da platéia - o abandono das antigas regras e um mergulho na fé. Algo que um dos personagens não consegue alcançar, pois, no fim do filme, reencontrando sua mulher transformada em zumbi, ignora o fato e acaba sendo mordido. A não assimilação do absurdo inerente ao universo representa o seu fim.            

A acefalia e a bestialidade garantiriam a sobrevivência neste universo, pois é preciso que os personagens se tornem animais e percam o contato com sua humanidade para sair do labirinto infernal que os engendra. No ataque dos zumbis (cena central que será abordada mais adiante) os personagens trancam as portas e as janelas, tentando se proteger através da redoma da consciência deste “outro” invasor maligno, e ignoram o mal que habita o lado de dentro. No clichê dos filmes de zumbi, com o grupo encurralado, um a um dos personagens sobreviventes vão passando para o outro lado (o lado do diretor, do inexplicável e da poesia)[1] levando com eles as possibilidades de esperança de uma comunidade cada vez menor. Não existe escapatória.      

Neste sentido o drama se estrutura como um pesadelo. Os objetivos iniciais dos personagens, pensando na lógica causal da narrativa clássica, serão arbitrariamente abandonados de forma incoerente e aleatória, assegurando a inconsistência destas personas (que são feitas de matéria muito mais vaporosa do que se lhes poderia atribuir à primeira vista). A culminância desta espiral descendente é a impossibilidade de saída. Nova York dominada pelos zumbis é o último golpe da fábula sobre o Homem.            

Mas do que é feito o zumbi de Lucio Fulci? Em primeiro lugar é resultado do exacerbamento gráfico da violência no cinema, produto da apelação[2] que o filme de gênero (principalmente o de horror) encampa a partir dos anos 60. O gore, aqui, além da necessidade comercial, materializa também uma fé na beleza da abjeção. As tripas, miolos, sangue, vermes e excrementos possuem em si uma fabulação, uma dinâmica artesanal que nos convida (como no Inferno de Dante) a enxergar a beleza orgânica onde a tradição da sensibilidade se recusou a visitar. Nosso senso-comum associa muito gratuitamente o Belo às virgens, às estrelinhas do céu e aos campos floridos e – o pior – àquilo que se convencionou chamar de “bom-gosto”. Fulci não faz concessões a este maldito bom-gosto. Sua sensibilidade é selvagem, brutal e parte das entranhas, do sangue e da matéria que torna todos os homens criaturas frágeis e belas. Eis outro paradoxo fundamental: a beleza da música no filme é extraída exatamente de sua feiúra, assim como o trabalho dos atores. A canastrice, pastiche da tradição hollywoodiana, é deliciosamente coerente ao projeto, afinal o que anima os planos não são pessoas, mas sim criações, metáforas de pessoas. Porque deveria Fulci mascarar este fato? O gore, entretanto desenha aqui um duplo movimento: a busca pelo realismo mais impactante e um elogio ao nitidamente falso. Deste paradoxo Fulci extrai a sua energia: não apenas a assimilação do mundo fabricado, mas uma luta entre o mundo e o seu simulacro. Não apenas a “péssima” atuação, mas a fragilidade do ator e sua força material. Uma das cenas que melhor representa esta ambigüidade é a da luta entre o zumbi e o tubarão. O valor ontológico do encontro em quadro é amplificado pelos movimentos ralentados, absolutamente angustiantes. 

Os zumbis entram na narrativa, após o prólogo, através de uma embarcação à deriva na baía de Nova York, como uma barca do Inferno sem Caronte – aquele que na Divina Comédia faz o traslado dos pecadores entre o Limbo e o Inferno garantindo a manutenção dos dois domínios. A barca perdida representa o descontrole, a infiltração entre os universos, a queda do muro entre a Terra e o Inferno (tornado, portanto um espaço único). Os zumbis que surgem das águas ou de terrenos pantanosos materializam um indesejado retorno dos dejetos, de tudo que é reprimido, escondido nos níveis social e individual.

O curioso é que Fulci desfere o golpe da abjeção numa paisagem totalmente ensolarada, um paraíso tropical anti-idílico, do qual nos é negado qualquer vislumbre de beleza natural. Com a chegada da noite, contudo, chegam os zumbis para o seu último ataque. Enquanto as aparições individuais valorizavam a morosidade e a ineficácia das criaturas, o volume massificado no clímax do filme garante o seu valor de ameaça.[3]

A noite representa também a necessidade da iluminação artificial, algo já visto nas cenas internas filmadas em estúdio, e que insere o filme no domínio do diretor. A sofisticação da iluminação de Fulci nos claustros é o destaque, por exemplo, na cena doflashback, um retorno ao prólogo do filme, em que vemos a morte do pai de uma das personagens sob outros pontos de vista – com uma luz difusa, fantasmagórica, de um brilho adocicado – ou nas cenas da morte e do encontro com o cadáver da Sra. Menard. Fulci imprime uma beleza nos planos que muitas cenas de amor não conseguiram alcançar. 

Esta abertura à beleza nos conduz à apreciação de outras obsessões do realizador. A exploração da violência coabita no filme com a da sexualidade e do erotismo, esteja ela na força dos corpos nus ou na singeleza dos rostos. O tipo físico predileto de Fulci são os homens e mulheres loiros de olhos verdes. E através da profanação desta beleza ideal, Fulci alcança a essência de seu discurso: é preciso, antes de tudo, perfurar os belos olhos, estilhaçar as janelas para se alcançar o espírito. E o grande veículo para esta imersão é o domínio da linguagem cinematográfica.        

A câmera de Fulci, em seus permanentes zooms, é a materialização plena do que Alexandre Astruc denominou caméra-stylo.[4] Para ele a câmera serve à escrita de um cineasta como a caneta à escrita de um romancista. No fim, Zombie é a escrita de Fulci com a câmera sobre e através dos olhos de suas atrizes.

 
*Fragmento do texto “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais: a poética do cinema de horror italiano”, originalmente publicado no livro Cinemas de Horror.       



[1] À maneira de Mario Bava, Fulci é um dos diretores que mais se identifica com o “lado mau”. Em seus filmes o sobrenatural e o maligno se confundem com a criação e o belo.

[2]
 Ou exploitation em inglês.

[3]
 Os zumbis representam na tradição cinematográfica uma das maiores críticas à sociedade de consumo e à cultura de massa, da qual, não inocentemente, cineastas como Fulci e George A. Romero são partícipes.

[4]
 Ver ASTRUC, Alexandre. “Nascimento de uma Nova Vanguarda: A Caméra-Stylo.” In: Nouvelle Vague/Org.: Luis Miguel Oliveira. Catálogo da Cinemateca Portuguesa.

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