Isto não é o resultado de uma sondagem, é um sentimento pessoal, Jean
Renoir é o maior cineasta do mundo. Esse sentimento pessoal é compartilhado por
muitos cineastas e, por sinal, não é Jean Renoir o cineasta dos sentimentos
pessoais?
A habitual divisão de filmes entre dramas e comédias não tem sentido
algum se pensamos nos de Jean Renoir, todos eles comédias dramáticas.
Quando estão trabalhando, certos cineastas acham que devem se colocar
"no lugar" do produtor, outros "no lugar" do público. Jean
Renoir dá sempre a impressão de ter-se colocado "no lugar" dos
personagens e foi por isso que proporcionou a Jean Gabin, Marcel Dalio, Julien
Carette, Louis Jouvet, Pierre Renoir, Jules Berry e Michel Simon seus mais
belos papéis, sem esquecer inúmeras atrizes das quais falaremos mais adiante,
no final desta apresentação, assim como se reserva o melhor para a sobremesa.
Pelo menos quinze, dos trinta e cinco filmes de Jean Renoir, são adaptações
de obras preexistentes: Andersen, La Fourchadière, Simenon, René Fauchois,
Flaubert, Gorki, Octave Mirabeau, Rummer Godden, Jacques Perret, e no entanto,
encontramos sempre Jean Renoir, seu tom, sua música, seu estilo, sem que jamais
o autor inicial seja traído, simplesmente porque Renoir assimila tudo,
interessa-se por tudo e por todos.
Nosso amor pela totalidade da obra de Jean Renoir - falo em nome dos
meus amigos dos Cahiers du Cinéma - nos fez pronunciar freqüentemente
a palavra "infalibilidade", o que não deixa de irritar os
apreciadores de obras-primas, aqueles que exigem de um filme uma
homogeneidade de intenções e execução que na realidade Jean Renoir jamais
buscou, muito pelo contrário. Tudo se passa como se Jean Renoir houvesse
dedicado a maior parte do seu tempo a fugir da obra-prima, pelo que ela oferece
de definitivo e paralisado em benefício de um trabalho semi-improvisado,
voluntariamente inacabado, "aberto", para que cada espectador possa
completá-lo, comentá-lo ao bel-prazer, interpretá-lo de um jeito ou de outro.
Um pouco como no caso de Ingmar Bergman e Jean-Luc Godard, onde houve
fecundidade, cada filme de Renoir, em separado, marca apenas um momento de seu
pensamento; é o conjunto de filmes que compõe a obra, daí a necessidade de
reuni-los em um Festival para que possam ser mais bem apreciados, como um
pintor pendura e exibe quadros antigos e recentes, várias fases, em cada
exposição.
Um orador conhecerá grandes sucessos ou grandes derrotas caso esteja ou não
em forma, nesta ou naquela noite. Renoir jamais filmou discursos e sim
conversas. Ele muitas vezes confessou o quanto era influenciável, quer se
tratasse da influência de outros cineastas - Stroheim, Chaplin -, de seus
produtores, de seus amigos, dos autores adaptados ou de seus intérpretes, e foi
graças a essa perpétua troca que nasceram trinta e cinco filmes naturais e
vivos, modestos e sinceros, simplíssimos. Por este motivo, a ideia de infalibilidade aplicada
à obra de Renoir, desprovida de qualquer simulação, não parece abusiva, quer se
trate de um filme tateante como La nuit du carrefour ou
inteiramente bem-sucedido, como Le carrosse d'or.
Os três primeiros filmes desta retrospectiva têm como ponto comum o fato
de serem interpretados por Michel Simon, que é provavelmente o ator preferido
de Jean Renoir: "Seu rosto é tão apaixonante quanto a máscara da tragédia
antiga." Assistindo La chienne (1931) vocês poderão
verificar a exatidão dessa opinião mas em Boudu sauvé des eaux (1932),
o mesmo Michel Simon lhes mostrará como foi capaz de alçar o cômico ao
fabuloso. Todos os adjetivos que evocam o riso podem ser aplicados a Boudu:
pândego, palhaço, burlesco, extravagante. o tema de Boudu é a
vagabundagem, a tentação de passar de uma classe a outra, a importância do
natural e o personagem de Boudu é o de um hippie anterior
à invenção da palavra. Como o filme foi adaptado de um musical bastante banal
de René Fauchois, seu sucesso é muito espantoso.
Ao ver Michel Simon interpretar os espectadores sempre tiveram a
sensação de estar diante não de um ator, mas do ator. Seus melhores papéis
foram papéis-duplos: Boudu é um vagabundo e ao mesmo tempo uma criança
descobrindo a vida; o Père Jules, do L'Atalante de Vigo, era
um rude marinheiro e ao mesmo tempo um refinado colecionador; o burguês Irwin
Molyneaux, de Família exótica (Drôle de drame), escreve
clandestinamente romances sanguinários e, voltando a Jean Renoir, seu Maurice
Legrand é um empregadinho submisso e ao mesmo tempo, sem o saber, um grande
pintor. Estou convencido que os cineastas sempre confiaram esses perturbadores
papéis-duplos a Michel Simon - que ele interpretou magnificamente mesmo quando
os filmes eram fracos - porque sentiram que esse grandioso ator encarna ao
mesmo tempo a vida e o segredo da vida, o homem que parecemos ser e aquele que
realmente somos. Jean Renoir terá sido o primeiro a evidenciar esta verdade:
quando Michel Simon interpreta, penetramos no coração humano.
Quando inicia Toni, em 1934, Jean Renoir já havia tentado o
cinema naturalista (Une vie sans joie), o romântico (Nana), o
burlesco (Charleston, Tire au flanc) e o histórico (Le
tournoi). Enquanto isso, o cinema francês trabalhava laboriosamente no
gênero psicológico, psicologia esta à qual Jean Renoir daria as costas durante
toda a vida.
Toni é um filme pivô na carreira de Renoir, a partida para uma direção
absolutamente contrária. Dez anos antes dos cineastas italianos ele inventava o
neo-realismo, ou seja, a narrativa minuciosa não de uma ação, mas de uma
história real, em um tom objetivo, sem jamais erguer a voz. Em sua História
do cinema mundial, Georges Sadoul tem razão ao escrever que em Toni o crime "é um acidente, não um
fim". Os personagens bebem um copo de vinho ou morrem da mesma maneira e
isso significa que Renoir nos apresenta esses fatos da mesma maneira, sem
mobilizar a eloqüência, o lirismo e a tragédia. Toni é a vida
como ela é e se os atores não conseguem conter o riso no meio de uma cena é
porque ficar diante das câmeras de Jean Renoir era muito divertido e, de tanto
solicitar a vida ela acabava chegando, mesmo correndo o risco de terminar em
alegria uma seqüência iniciada de maneira grave.
Em Toni, o desempenho dos atores é uma regalia. Os gritinhos
de Celia Montalvan quando Blavette lhe suga as costas depois de uma picada de
abelha, as frases de Delmonte as alegres canalhices de Dalban, tudo isso
participa dessa verdade que Renoir buscava por todos os meios, verdades de
gestos e de sentimentos que, mais freqüentemente que os outros, ele logrou
atingir.
Partie de campagne (1936) é o filme das sensações puras, cada
haste de capim nos faz cócegas no rosto. Adaptado de uma história de Guy de
Maupassant, Partie de campagne é o único equivalente da arte
da novela no cinema: sem o auxílio de uma única linha explicativa Renoir nos
proporciona quarenta e cinco minutos de prosa poética cuja veracidade, em
certos momentos, nos faz estremecer ou sentir uma espécie de arrepio. Este
filme, o mais físico de seu autor, vai lhes tocar fisicamente.
A grande ilusão (La grande illusion) (1937), o menos
contestado dos filmes de Renoir, baseia-se na concepção de que o mundo se
divide horizontalmente, por afinidades, e não verticalmente, por fronteiras.
Embora a Segunda Guerra Mundial e principalmente o fenômeno concentracionário
pareçam ter desmentido os propósitos exaltadores de Renoir, as atuais
tentativas "européias" demonstram que a força dessa concepção estava
adiantada ao espírito de Munique. Mas ainda assim A grande ilusão é
um filme de época, da mesma maneira que La marseillaise, pois nele
pratica-se uma guerra impregnada de fair-play, uma guerra sem bomba
atômica e sem torturas.
A grande ilusão, portanto, é um filme de cavalaria, um filme sobre
a guerra considerada como uma das belas artes, pelo menos como um esporte, como
uma aventura onde medir-se é tão importante quanto destruir. Os oficiais
alemães ao estilo Stroheim foram logo expulsos do III Reich e os oficiais
franceses ao estilo Pierre Fresnay morreram de velhice. A grande ilusão, então,
era acreditar que aquela guerra seria a última. Renoir parece ver a guerra como
uma calamidade natural que tem suas belezas, como a chuva e o fogo; trata-se
de fazer a guerra educadamente, como diz Pierre Fresnay. Segundo
Renoir, para destruir o espírito de Babel e reconciliar os homens é necessário
abolir a ideia de fronteira, mas os homens estarão sempre separados por seu
nascimento. Todavia, existe um denominador comum entre os homens: a mulher. Não
há dúvida que a ideia mais forte do filme foi fazer entoar La
Marseillaise, depois do anúncio da tomada de Douamont pelos franceses, por
um soldado inglês vestido de mulher que se desembaraça da peruca enquanto
canta.
Se ao contrário de tantos filmes de Jean Renoir A grande ilusão entusiasmou
a todos, imediatamente e em toda parte, isso talvez se deva ao fato de Jean
Renoir o ter realizado aos quarenta e dois anos, ou seja, numa idade que
correspondia a de seu público. Antes de A grande ilusão, seus
filmes pareciam agressivos e juvenis, em seguida pareceram desiludidos e
contundentes. É forçoso admitir que, em 1937, A grande ilusão estava
atrasada em relação à sua época, já que um ano mais tarde Chaplin faria um
esboço do nazismo e das guerras que não respeitam as regras do jogo, em O
grande ditador (The great dictator).
A cópia final de La Marseillaise (1938) vem de longe,
mais precisamente de Moscou, onde encontrava-se a única versão integral. Os
mais jovens entre vocês irão descobrir uma obra que se iguala a A grande ilusão, filmada por Renoir no
ano anterior. La Marseillaise foi muito mal recebida pela crítica em virtude
dessa tal "lei da alternância", segundo a qual um artista não saberia
produzir duas obras-primas consecutivas.
O trabalho de Jean Renoir foi sempre guiado por algo semelhante a um
segredo e até mesmo a um segredo profissional: a familiaridade. Em La
Marseillaise, a familiaridade não deixa que Jean Renoir caia em nenhuma
das armadilhas armadas pelas reconstituições históricas e o
extraordinário dom de vida que recebeu permite que nos dê um filme vivo, com
pessoas que respiram e experimentam sentimentos verdadeiros.
La Marseillaise é construído como um faroeste, pois é o único
filme itinerante de Jean Renoir. Acompanhamos o batalhão de quinhentos
voluntários marselheses que deixaram sua região em 2 de julho de 1792 e
marcharam sobre Paris, onde chegaram no dia 30, véspera da publicação do
Manifesto de Brunswick. O filme termina pouco depois do 10 de agosto,
justamente antes da batalha de Valmy. Nenhum herói principal, nenhum papel de
prestígio em oposição a papéis ingratos e sim uma meia dúzia de personagens,
todos eles interessantes, plausíveis, nobres e humanos, representando a Corte,
os Marselheses, Os Aristocratas, O Exército e o Povo.
Para equilibrar os marselheses, isto é, o povo, que vemos enobrecer-se e
poetizar-se em contato com o ideal revolucionário, Renoir insiste no lado
prosaico e cotidiano de Luís XVI, magnificamente interpretado por seu irmão,
Pierre Renoir. O Rei, cujo comportamento dá um sentido concreto à
expressão: Ser ultrapassado pelos acontecimentos, interessa-se pela
higiene dentária: "Adoraria experimentar essa escovadela." Duas
horas antes de fugir das Tulherias, nós o encontramos comendo pela primeira vez
os tomates que os marselheses haviam introduzido em Paris: "Ora pois, é
uma iguaria excelente..."
Falei de um faroeste histórico. Como nos bons faroestes, encontramos
neste filme a construção dos filmes itinerantes, tomadas diurnas ativas
alternando-se às noturnas, mais estáticas pois propícias às discussões de
acampamento, ideológicas ou sentimentais. Todavia, quer girem em torno da
alimentação, da revolução, dos pés inchados pela marcha, do amor ou do manejo
de armas, todas as cenas de La Marseillaise ilustram a ideia
de uma unidade francesa que, no filme, parece convincente, e se o mais ilustre
dos filmes de Griffith intitula-se Nascimento de uma nação (Birth
of a nation), este poderia chamar-se Nascimento da nação.
A besta humana (La bête humaine), realizado em 1938, conta a história de
um subchefe de estação, Roubaud (Fernand Ledoux) que teme ser despedido por
haver discutido com um superior. Ele pede que a jovem esposa, Séverine (Simone
Simon) intervenha junto a um "patrão", vago padrinho, que ela
conheceu adolescente e que a mãe dela conheceu melhor ainda. Quando Séverine
retorna tudo está arranjado, mas Roubaud, advinhando a que preço, fica louco de
ciúmes e elabora uma trama no fim da qual mata o padrinho no trem entre Paris e
Le Havre, diante de Séverine.
No trem, Jacques Lantier (Jean Gabin), empregado da estrada de ferro,
vira o casal assassino. Durante o inquérito policial Roubaud manda Séverine
obter o silêncio de Lantier e, naturalmente, os dois acabam se tornando
amantes, uma vez que Lantier adivinhara ou deduzira a verdade. Séverine
gostaria que Lantier matasse Roubaud pois a vida conjugal ficara impossível
depois do crime. Lantier não chega a matar Roubaud mas estrangula Séverine em
um acesso de loucura e, no dia seguinte, joga-se da locomotiva da qual era
mecânico-chefe.
No romance de Zola, Jacques Lantier estava no campo, olhando o trem
passar e percebia, num relance, o gesto criminoso de Roubaud, presenciado pela
mulher. Foi Renoir que teve a ideia de colocar Lantier no corredor do trem e
fazê-lo surpreender a cúmplice. Esta ideia de Renoir foi adotada por Fritz Lang
em 1954, quando levado a refilmar A besta humana em Hollywood,
com o título de Desejo humano (Human desire). Alguns
anos antes Fritz Lang já vestira a casaca de Renoir ao filmar Almas
perversas (Scarlet Street), refilmagem de La chienne.
Pensando bem, parece que Jean Renoir e Fritz Lang têm em comum o gosto
pelo mesmo tema: marido velho, mulher jovem e amante: La chienne, A
besta humana, A mulher desejada (The woman on the beach),
para Renoir e Almas perversas, Um retrato de mulher (The
woman in the window) e Desejo humano, para Lang, etc. Jean
Renoir e Fritz Lang também têm em comum a predileção pelas atrizes-gatas, as
heroínas do tipo felino. Gloria Grahame é a réplica ianque perfeita de Simone
Simon e Joan Bennett foi tanto heroína de Renoir como de Lang. As comparações
param aí, pois o autor de A besta humana e o de Desejo
humano não buscam a mesma coisa. Com relação ao romance de Zola, Jean
Renoir operou o que se convencionou chamar de ascese; sobre isso, ele explicou
recentemente: "O que me ajudou a fazer A besta humana foram
as explicações do herói sobre seu atavismo; eu disse comigo mesmo: isso não é
lá muito bonito mas se um homem bonito como Jean Gabin dissesse isso numa
externa, com muito horizonte por trás e talvez com vento, talvez adquirisse
algum valor. Esta foi a chave que me ajudou a fazer esse filme."
É assim que trabalha Jean Renoir, à procura de um equilíbrio constante:
um detalhe engraçado compensará uma conotação trágica; nuvens passam atrás de
Gabin enquanto ele revela sua dor; locomotivas correm por trás da janela do
quartinho onde Fernand Ledoux fica a desconfiar de sua mulher.
A besta humana é provavelmente o melhor filme de Jean Gabin. "Jacques Lantier
me interessa tanto quanto Édipo-Rei", disse Renoir, sobre esse drama que
Claude Givray descreveu perfeitamente: "Existe o filme-triângulo (Le
carrosse d'or), o filme-círculo (Le fleuve); A besta humana é
um filme em linha reta, quer dizer, uma tragédia."
A regra do jogo (La règle du jeu) é o credo dos
cinéfilos, o filme dos filmes, o mais detestado por ocasião do lançamento e em
seguida o mais apreciado até transformar-se num verdadeiro sucesso comercial
depois de sua terceira reprise em circuito normal e em versão integral. No
interior desse "drama alegre", Renoir combina, sem dar esta
impressão, uma massa de ideias gerais, de ideias particulares e expressa
principalmente seu grande amor pelas mulheres. Juntamente com Cidadão
Kane, A regra do jogo é certamente o filme que mais
despertou vocações de cineastas; assistimos a esse filme com uma intensa
sensação de cumplicidade. Quero dizer que ao invés de vermos um produto acabado
entregue à nossa curiosidade, temos a impressão de assistir a um filme que está
sendo filmado, acreditamos ver Renoir organizar tudo aquilo no momento mesmo em
que o filme está sendo projetado, por pouco não diríamos: "Vou voltar
amanhã para ver se as coisas acontecem da mesma maneira." É assim que,
assistindo a A regra do jogo, passaríamos as melhores noites do
ano.
Depois do malogro de A regra do jogo, mutilado em meia hora
a pedido dos especuladores e depois proibido pelas autoridades como susceptível
de desmoralizar os franceses - estávamos às vésperas da declaração de guerra -
Jean Renoir, provavelmente muito deprimido, foi para Hollywood onde dirigiu
cinco filmes em oito anos. A mulher desejada (The woman on
the beach) (1946) é o último de seus filmes hollywoodianos. É um filme
curiosíssimo e muito interessante onde não encontramos exatamente as qualidades
mais freqüentemente louvadas na obra francesa de Renoir - a familiaridade, a
fantasia e, digamos, o humanismo - pois parece que Renoir quis adaptar-se
voluntariamente a Hollywood e ali realizar um filme totalmente americano.
A grande diferença entre os filmes europeus e os filmes de Hollywood - e
isto vale para a obra dupla de Jean Renoir - é que os filmes realizados aqui
são, em primeiro lugar, filmes de personagens ao passo que as produções
americanas são, em primeiro lugar, filmes de situações. Na França respeita-se
muito a verossimilhança, a psicologia, que os americanos apenas roçam,
preferindo tratar a situação com vigor, sem desviar-se do ponto de partida.
Como, afinal de contas, um filme não passa de uma fita de celulóide de dois mil
metros desfilando diante de nossos olhos, é permitido compará-lo a um percurso.
Diria então que o filme francês avança como uma carroça ao longo de um caminho
tortuoso enquanto o filme americano rola como um trem sobre trilhos. A
mulher desejada é um filme-trem. É, conforme a vontade de Renoir, um
filme sobre sexo, sobre o amor físico, sobre o desejo, tudo isso expresso sem
uma única cena de nudez. E no entanto seria muito pouco dizer que Joan Bennett
é sensual: ela é sexual. O que me agrada em A mulher desejada é
que nele vemos dois filmes ao mesmo tempo. O diálogo nunca fala de amor, os
personagens trocam impressões corteses, polidas. o essencial, então, não está
nas falas que pronunciam e sim nos olhares que trocam e exprimem coisas turvas,
secretas e no entanto muito precisas.
Nunca o cinema é tão puro, nunca ele é tanto ele mesmo que quando
consegue, utilizando os diálogos como uma música em contraponto, fazer-nos
penetrar nos pensamentos dos personagens. É sob este ângulo que convido vocês a
verem os três prodigiosos atores de A mulher desejada: Joan
Bennett, Robert Ryan e Charles Bickford. Vejam-nos como animais, como feras
perambulando na selva crepuscular da sexualidade recalcada.
Le carrosse d'or (1952) é um dos filmes-chave de Renoir, pois
reúne temas de vários outros e, principalmente, o da sinceridade no amor e o da
vocação artística. É um filme construído segundo o "jogo de caixas"
que se encaixam umas nas outras, um filme sobre o teatro dentro do
teatro.
Houve muita injustiça na recepção de público e crítica a Carrosse
d'or, que talvez seja a obra-prima de Jean Renoir. Em todo caso, é o filme
mais nobre e refinado jamais realizado. Nele encontramos toda a espontaneidade
e inventividade do Renoir de antes da guerra conjugadas ao rigor do Renoir
americano. Nele, tudo é raça e polidez, graça e frescor. É um filme
inteiramente de gestos e atitudes. Teatro e vida entrelaçam-se em uma ação
suspensa entre o térreo e o primeiro andar de um palácio como a commedia
dell'arte oscila entre o respeito à tradição e a improvisação. Anna
Magnani é a admirável estrela desse filme elegante onde a cor, o ritmo, a
montagem e os atores estão à altura de uma trilha sonora da qual Vivaldi fica
com a parte do leão. Le carrosse d'or é de uma beleza
absoluta, mas a beleza é o seu tema profundo.
Descrevi a outra obra-prima de Jean Renoir, A regra do jogo,
como uma conversa aberta, um filme do qual somos obrigados a participar. Carrosse
d'or é diferente, é fechado, um trabalho acabado que devemos olhar sem
tocar, um filme que encontrou sua forma definitiva, um objeto perfeito.
French cancan (1955) marcou a volta de Jean Renoir aos estúdios franceses. Não
vou contar o roteiro mas saibam que é um episódio da vida de um certo Danglard,
que fundou o Moulin Rouge e criou o French cancan. Danglard
consagra sua vida ao music-hall, descobre jovens talentos -
dançarinas ou cantoras - e "faz" estrelas. Basta que se torne seu
amante por algum tempo e ei-las que se revelam exclusivistas, possessivas,
ciumentas, caprichosas, insuportáveis. Mas Danglard não se prende, está casado
com o music-hall e a única coisa importante é o sucesso de
seus espetáculos.
Sua razão de viver é esse amor exclusivo pela profissão e a
possibilidade de inculcá-lo nas jovens artistas que descobre e lança.
Já se terá percebido a afinidade deste tema com o de Carrosse
d'or a vocação pelo espetáculo triunfando das peripécias sentimentais. French
cancan é uma homenagem ao music-hall assim como Carrosse
d'or homenageia a commedia dell'arte, mas devo confessar
minha preferência por Le carrosse d'or. Embora externas a Jean
Renoir, as fraquezas de French cancan não deixam de ser menos
danosas, pois afetam em primeiro lugar a distribuição dos papéis: Giani
Esposito, Philippe Clay, Pierre Olaf, Jaqcques Jouanneau, Max Dalban, Valentine
Tessier e Anik Morice estão excelentes mas em compensação Jean Gabin e Maria
Félix não parecem dar o "máximo” de si mesmos.
Todavia, é preciso igualmente observar os elementos mais positivos da
empresa: French cancan foi um marco na história da cor no
cinema. Jean Renoir não pretendeu fazer um filme. pictórico e sob esse
aspecto, French cancan apresenta-se como um anti-Moulin
Rouge, onde John Huston utilizou uma mistura de cores obtida com o emprego
de filtros de gelatina; nesse filme, nada além de cores puras. Cada plano
de French cancan é uma gravura popular, uma "imagem de
Épinal" em movimento. Ah! os belos negros, os belos marrons, os belos
beges!
O French cancan final é uma verdadeira proeza, um
longo tour-de-force que constantemente contagia a platéia. Se
a importância de French cancan na obra de Renoir não é a mesma
de A regra do jogo ou de Carrosse d'or, mesmo
assim ele é um filme muito brilhante, muito arrebatador, onde encontramos o
vigor de Jean Renoir, sua bela saúde e sua juventude.
As estranhas coisas de Paris (Élena et les hommes) é
um Renoir dos grandes dias; Jacques Jounneau está magnífico ao lado de Ingrid
Bergman, Jean Marais e Mel Ferrer. Em As estranhas coisas podemos
ver a realização do ideal de Jean Renoir: recuperar o espírito dos primitivos,
o gênio dos grandes pioneiros do cinema - Mack Sennet, Larry Semon, Picratt e
por que não dizer, Carlitos. Com As estranhas coisas o cinema
volta às origens e Jean Renoir à juventude.
Àqueles que podem pensar em censurar, nos últimos filmes de Jean Renoir,
um distanciamento da realidade do mundo em que vivemos, faço um resumo de As
estranhas coisas de Paris: na véspera da Grande Guerra, as festividades do
14 de Julho são celebradas por uma multidão em delírio que aclama o general
Rollan. Como um estúpido incidente diplomático gerou uma psicose de guerra, os
colaboradores do general aproveitam a ocasião para tentar derrubar o governo.
Na rua, canta-se: "E foi assim que o destino colocou-o em nosso
caminho...", etc.
Dois anos depois do lançamento de As estranhas coisas,
aproveitando as agitações argelinas causadas por seus partidários, De Gaulle
lançava seu "Eu vos compreendi", tão verdadeiro como sempre há um
general em algum lugar... O de Jean Renoir (é Jean Marais quem interpreta o
general Rollan) pelo menos tem duas vantagens: preferir as mulheres ao poder e
também nos fazer rir.
As estranhas coisas diz a verdade sobre os príncipes que nos
governam, que decidiram nos governar e eventualmente fazer nossa felicidade
contra nossa vontade, e se vocês acham surpreendente esse filme realista ser ao
mesmo tempo um conto de fadas, ouçam a resposta de Jean Renoir: "A
realidade é sempre feérica. Para torná-la não feérica, muitos autores precisam
ter muito trabalho e apresentá-la sob um aspecto verdadeiramente bizarro. Se a
deixarmos tal como é, ela é feérica."
O testamento do Doutor Cordelier (Le testament du Docteur Cordelier)
(1959) é um dos filmes malditos de Jean Renoir exatamente como seu Segredos
de alcova (The diary of a chambermaid) (versão de 1946), ao
qual se iguala em ferocidade. A expressão "direção de ator",
abusivamente empregada, adquire neste filme sua real significação quando
Jean-Louis Barrault, irreconhecível em um papel quase totalmente dançado,
agride freneticamente os transeuntes na rua.
Animar um ser humano que se inventou, pedir-lhe para deslizar ao invés
de andar, dotá-lo de uma gesticulação imaginária, impor-lhe uma brutalidade
abstrata e delirante, eis um sonho de artista, um sonho de cineasta. O
testamento do Doutor Cordelier é esse sonho feito realidade, assim
como o Le déjeuner sur l'herbe (filmado no mesmo ano) nasceu,
aposto, desta simples e forte ideia visual: seria divertido mostrar uma
tempestade de vento no campo, levantando a saia das mulheres!
Para concluir, é preciso dizer que as mulheres são o centro de toda a
obra de Renoir. A golpes de simplificações desordenadas vamos abrir um caminho
na selva ao mesmo tempo bondosa e cruel de Renoir. Um homem fraco e sensual é
dominado por uma bela mulher (legítima ou não), de temperamento vivo, caráter
difícil e mais ou menos adorável; vocês reconheceram Nana, Marquitta, Tire
au flanc, La chienne, La nuit du carrefour, Boudu
sauvé des eaux, Toni, Madame Bovary, Bas-fonds, La
Marseillaise, A regra do jogo, Segredos de alcova, A
mulher desejada, Le carrosse d'or, French cancan e As
estranhas coisas de Paris.
O "triângulo amoroso" raramente interessa Jean Renoir, que
inventou o "quadrado amoroso". Em seu universo uma mulher ama ou é
amada por três homens ou um homem ama e é amado por três mulheres.
Baseado no primeiro princípio foram construídos: Une vie sans joie, La
fille de l'eau, A besta humana, A regra do jogo, Segredos
de alcova, French cancan e Le carrosse d'or,
que leva o sistema à perfeição com os três personagens masculinos representando
os três tipos de homem que uma mulher encontra em sua vida. Baseados no segundo
princípio temos: Marquitta, Monsieur Lange, A
besta humana (neste, a terceira mulher é Louison, a locomotiva), A
regra do jogo, French cancan e The river, que
- simetricamente a Le carrosse d'or - leva o sistema à
perfeição.
Os filmes de Renoir extraem da vida sua própria vida; sabe-se com quem
os personagens principais fazem amor, precisão esta cuja ausência se fazia
cruelmente sentir no cinema até 1960. Renoir não gosta muito da morte nos
filmes por ela ser falsa: pode-se excitar um ator para que faça o papel de um
excitado mas mate-o e o Sindicato dos Atores cairá em cima de você. No entanto,
foi necessário matar Nana, Emma, a bonita Madame Roubaud e muitas outras, mas
todas as vezes Renoir opôs à morte o que há de mais vivo: as canções. As
mulheres que Renoir mata com remorsos agonizam à melodia popular de um refrão
das ruas: o coraçãozinho de Ninon é tão pequeno...
Ao atacar tolamente Amore, de Rossellini, alguém foi capaz
de dizer que "o intérprete deve submeter-se à obra e não a obra ao
intérprete". A partir de Une vie sans joie - filme em
forma de anel de noivado oferecido a Catherine Hessling - toda obra de Jean
Renoir é um libelo contra essa afirmação. Ele fez filmes sob medida para Jannie
Mareze, Valentine Tessier, Nadia Sibirskaïa, Sylvia Bataille, Simone Simon,
Nora Gregor, Aïn Baxter, Joan Bennett, Paulette Goddard, Anna Magnani e Ingrid
Bergman, submetendo sua obra aos intérpretes... e eles estão entre os mais
belos filmes da história do cinema.
Jean Renoir não filma situações - e lembrem do "Palácio dos
Espelhos" dos parques de diversões -, ele filma personagens que procuram a
saída desse Palácio esbarrando contra os vidros da realidade. Jean Renoir não
filma ideias, filma homens e mulheres que têm ideias e estas ideias, sejam
barrocas ou ilusórias, ele não nos convida a adotá-las ou selecioná-las, mas
simplesmente a respeitá-las.
Quando um homem nos parece ridículo por sua obstinação em impor uma
determinada imagem solene de sua existência, quer se trate de um político ou de
um artista megalômano, dizemos que ele esqueceu do bebê arquejante que foi em
seu berço e do velho dejeto arquejante que será em seu leito de morte. É
evidente que o trabalho cinematográfico de Jean Renoir jamais perde de vista
esse homem desarmado, sustentado pela Grande Ilusão da vida social, o homem
simplesmente.
(Apresentação de um Festival Renoir na Maison de la Culture de Vidauban - 1967. Transcrito a partir do livro Os filmes de minha vida (2° Edição). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989).
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