Caros espectadores, o filme que hoje vamos ver é a obra final de um dos
poetas mais raros e delicados de todo o cinema, um tipo de sensibilidade
que o mundo do caos e da modernidade galopante teria obrigatoriamente
de ceifar; mas foi uma tuberculose que lhe tirou a vida aos vinte e nove
anos de idade, e L'atalante já foi tecido e terminado por um
Jean Vigo sôfrego e porventura com a lucidez e a liberdade associada a
quem tem a morte na ronda da noite. Com apenas quatro filmes transportou
a arte das imagens e dos sons colhidos e manipulados em celulóide até
às portas da total ousadia e da infinidade, sendo ainda hoje referência
essencial para os mais opostos cineastas e artistas em geral. Começou no
mudo e no mudo ficou, mesmo se L'atalante é tão descarnado, arejado e revolucionário a nível sonoro como o La nuit du carrefour de Jean Renoir.
À propos de Nice é de 1930, e desde os foguetes iniciáticos e das visões aéreas, são vinte e poucos minutos da mais descabelada
feérie e de um documentarismo descritivo sem teorias nem amarras;
realizado a par com o fotógrafo Boris Kaufman já o mergulho para o
desconhecido de uma arte ainda no feto estava dado de cabeça; Taris, roi de l'eau
de 1931 tem ainda menos metragem, 10 minutos apenas, é uma homenagem ao
grande nadador Francês da época, um registo didático, que vai sendo
enevoado e engolido por um surrealismo que já chega da fantasmagoria
ontológica da película e pelo poder incomensurável e misterioso da
câmara de filmar em transformar homens e carne em estátuas e na
eternidade, com o elemento líquido e a magia associada a todas estas
entidades formando um embrulho e um corpo intimamente cósmico; quase por
último, Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, o “filme
dos filmes” da infância e o cúmulo do jogo de ambiguidades entre
inocência e crueldade sem objectos perfeitamente definíveis e estanques,
culminando na cena de almofadas do sono e de descoberta sexual que é a
imagem acabada e desfeita de tais perfurações, momentos decisivos para o
liricismo que François Truffaut sopraria mais tarde quando o cinema do
seu país estava agónico e a precisar dele, começando no sedento e
afagado Antoine et Colette.
Sobre toda a herança desta cosmogonia breve e tremenda como o mais
rápido dos projécteis não identificados que se destrói ao entrar na
atmosfera terrestre, João Bénard da Costa escreveu: «L'atalante
é a matriz de onde vem todo o grande cinema francês futuro e, nesse
sentido, é o maior dos filmes percursores. Posso pensar em Godard sem
Renoir, por mais que saiba quanto Godard o amou. Não posso pensar em
Godard sem pensar nesse cineasta que morreu aos vinte e nove anos e que
teve de esperar vinte e cinco por uma posteridade. Sem a liberdade que
Vigo teve, sem a poiesis que Vigo teve, o cinema nunca seria tão livre
como foi e nalguns casos continua a ser. Todos somos filhos de L'atalante».
Até Truffaut e até Godard, e até ao mais fascinante e inclassificável
de todos os realizadores franceses ainda vivos, Leos Carax, que tem
sofrido tanto como Vigo por reconhecimento, de que Les amants du Pont-Neuf (já lá voltaremos) é um remake total; e até Manoel de Oliveira que o homenageou não só na literalidade e reinvenção de Nice - À propos de Jean Vigo, mas sempre, por exemplo nas cintilações e nas Ofélias de Vale Abraão.
L'atalante foi, depois da morte de Vigo, um filme trucidado pelo
estúdio que o produziu e esquecido por quase todos – dos inúmeros crimes
destaca-se, já agora, a substituição da belíssima e inaugural música de
Maurice Jaubert por um tema popular da época, subvertendo o celestial
pelo comestível - sendo progressivamente descoberto ao longo dos
anos pelos cinéfilos e cineastas mais veementes – como os citados da
Nouvelle Vague ou a aparição na célebre lista dos melhores filmes de
todos os tempos da Sight & Sound magazine em 1962 – para se
chegar a uma montagem final apenas nos anos 90 (e obviamente muito
contestada) na qual ajudaram, bem como nos recentes restauros, o grande
investigador e escritor Bernard Eisenschitz, a filha de Vigo apelidada
Luce Vigo, ou mesmo o esfomeado Martin Scorsese, que afirmou que o filme
nasceu sozinho e continua sozinho, ainda hoje, como grande parte das
obras essenciais.
Oitenta e nove minutos comporta a obra que hoje conhecemos e é assim um
dos monumentos de qualquer arte; um altar, um depositário ou uma arca
mítica de luz que jamais as tesouras dos produtores poderiam ter
apagado; um movimento dissonante e harmónico que tem os fundos das águas
e os confins do firmamento – para lá das portas dos céus – como
limites, de onde a ordem das sequências e a significância de mistérios e
de dialéticas sem precedentes existiriam fosse qual fosse a ordem das
coisas, inclusive a ordem da sorte não poderia apagar o inapagável;
enfim, a perdição e o milagre do existir num perpétuo equilíbrio e
risco.
L'atalante inaugura-se com neblinas, águas, muito ar rarefeito,
palpável, em sensações e atmosferas próximas à observação da formação de
um feto, à saída da criança do ventre materno, à visão da primeira
claridade deste mundo e das primeiras memórias que mais tarde se vão
tentar refazer; sinos, casamentos, marchas, brancura, flores no charco,
que parecem tão nupciais como funerárias, perfurando e unindo todas as
pontas da existência, já li, na abertura. E já a bordo da embarcação que
dá nome ao filme, tudo começa a escurecer, sendo de notar que não é a
luz que baixa de intensidade, mas toda a envolvência com as situações e o
desenrolar do novo estado do par – os gatos que invadem os beijos, que
adiam os desejos e a libido, as desmultiplicações destes, os corpos e as
salivas enrolados pelos chãos, a fricção com os restantes membros, os
humanos a tornarem-se felinos (o noivo em cio a gatinhar no estrado é
pura desgarrada animalesca), a besta humana a querer cantar, a danação a
virar a cara à lua-de-mel e à sagração: o amor, o bem, e o maléfico e
incontrolável, o outro lado do espelho que se irá partir lá para os
meios do percurso, uma predestinação carregada de sinais e signos que
consoante o contexto e a circunstância poderão ser todas as faces da
moeda a mostrarem-se logo no dia primeiro do resto das suas vidas.
E é logo desde o primeiro instante que Michel Simon entra em cena como o dono do barco de todos os perigos e arcas-de-noé, esse Le père Jules que tem aqui a sua criação mais fascinante a par com a de Boudu sauvé des eaux,
igualando-a incrivelmente em anarquia e resoluta fraternidade; é ele o
Pai dos gatos e do noivo, o monstro da luta livre e das libertinagens
cosmopolitas, o desflorador espiritual e logo carnal da noiva e dos véus
restantes, com o corpo tatuado como se se tratasse do mapa do globo que
correu e provou ou de painéis terroríficos dos apocalipses de um
Hieronymus Bosch, esse acordeão que legará ao Denis Lavant de Carax,
acabado funâmbulo que prova do próprio sangue sem fazer caretas e que
guarda todas as feiras geladas e marionetas destroçadas no seu sétimo
céu para as incendiar e trazer à vida a quem merece. Dançarino
Nietzscheano que no término meterá a corda mestra mais uma vez em tensão
para outro fogacho de equilíbrio.
Simon, como o seu ajudante que parece um bobo Shakespeariano, ou aquela
personagem parisiense - numa paris de fundos, de cheiros e de horizontes
somente sonhados nas entranhas dos desejos e das ilusões rurais – que
tenta diabolicamente a noiva com todos os clichés dos brilhos da “cidade
da luz” e as sugestões proibidas com que os papões devoram as crianças
e juventudes (mais uma vez os gatos a comerem sem regra), perfazem uma
galeria que juntamente com o nevoeiro, as névoas, neblinas e massas
complexas de fumos e químicos, vão cercando o casal recém formado, como
que precavendo e mostrando que sexo e morte podem falar de uma e da
mesma coisa; assim como o encantatória e a fábula só atingem o fascínio
por essa mesma consciência e união que escapa a definições e
dicionários. O feérico com os fogos-de-artificio que vão excedendo e
devorando tudo, outra espécie de patético, são o forçar do afastamento
dessa visão baça, dessa falta de nitidez dos primeiros instantes do
universo, o aprender a respirar, onde tudo vale, onde os indigentes são
príncipes em castelos de papelão, os adultos oficiais retrocedem até à
luta e aos estripar das almofadas dos quartos nocturnos das
visitas-de-estudo ou dos orfanatos, sendo preciso provar a vagabundagem e
o pó jazente em baixo das pontes para se sentir as sensações genuínas e
não somente os conselhos e a palavra sagrada. Sexo e morte, inocência e
terror, meninos e monstros, só muitos anos depois Leos Carax se
suicidaria deste modo, se afogaria assim para visionar nessa morte a
pureza e a transgressão absolutas e poder regressar, ressuscitado e
transfigurado.
De que fala então L'atalante? Do tão banalizado mistério da luz.
Que ilumina e revela todos os lados, desflora, mata e faz renascer. De
todas as estações numa só. Da eterna busca por entre o nevoeiro, de
todas as matérias aquela que a luminosidade mais adensa. Da necessidade
dos corpos por todos os outros corpos. Do corpo do cinema que permitiu
ampliar tudo isto até ao infinito.
Da poesia, assim, uma boa sessão a todos e um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, Espero, desejando uma boa navegação:
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
Por José Oliveira
Publicado originalmente em https://luckystarcine.blogspot.com/2018/04/latalante-1934-de-jean-vigo.html