sábado, 1 de setembro de 2018

Lubitsch era um príncipe (A Viúva Alegre, 1934)

Sócios no Amor (1933)
  
Por François Truffaut

Antes de tudo, temos a imagem, aquela dos filmes de antes da guerra, e eu gosto muito dela. Os personagens são pequenas silhuetas sombrias na tela, eles entram em cena batendo portas que são três vezes maiores que eles. Não havia crise de habitação naquela época, e, nas ruas, por causa das bandeirolas de apartamentos a alugar, era 14 de julho o ano inteiro. Esses grandes cenários disputavam a atenção com os atores, o produtor pagava caro por eles, era preciso vê-los, e o sujeito dos charutos prezava muito seu dinheiro e eu creio que ele teria mandado à merda o diretor que tivesse a petulância de fazer o filme inteiro em closes. Nessa época, quando não se sabia exatamente onde colocar a câmera, ela era colocada bem longe. Hoje, na dúvida, eles a atocham nas narinas dos atores. Passou-se da insuficiência modesta à insuficiência pretensiosa.

Essa introdução nostálgica e reacionária não está deslocada para apresentar Lubitsch, que – mais do que Pierre Doris afirmando que era melhor chorar numa jaguar do que no metrô – pensava com firmeza que é melhor rir num palácio do que suspirar nos fundos da loja da esquina. Sinto que não terei o tempo de resumir.

Como todos os artistas da estilização, Lubitsch, conscientemente ou não, aproximava-se da narração dos grandes autores de contos de fadas. Em Anjo, um jantar tedioso e constrangedor vai reunir Marlene Dietrich, Herbert Marshall, seu marido, e Melvyn Douglas, seu amante de uma noite só que ela acreditaria jamais ver novamente, e que seu marido trouxe por acaso para jantar. Como acontece várias vezes nos filmes de Lubitsch – voltaremos a isso –, a câmera deixa o lugar da ação para ir ao lugar que permitirá observar as conseqüências. Estamos na cozinha. O maître vai e vem, ele leva primeiro o prato de madame: “Curioso, Madame nem tocou em sua costeleta.” Depois o prato do convidado: “Olha só, ele também não.” (Na verdade, essa segunda costeleta está cortada em cem pedacinhos inteiros.) o terceiro prato chega, vazio: “Já o patrão parece ter apreciado a costeleta”. podemos reconhecer Cachinhos Dourados na casa dos três ursos: a tigela de Papai Urso estava quente demais, a de Mamãe Urso fria demais, a do Bebê Urso “perfeita”. Vocês conhecem uma literatura mais necessária do que essa?

Este, então, é o primeiro ponto comum com o “hitchcock-touch”, e o segundo é provavelmente a maneira de abordar o problema do roteiro. Aparentemente, trata-se de contar uma história em imagens e é o que eles mesmos irão dizer em suas entrevistas. Não é verdade. Eles não mentem por prazer ou para rir da nossa cara, não, eles mentem para simplificar, porque a realidade é complicada demais e é mais importante passar o tempo trabalhando e aperfeiçoando, já que estamos falando de perfeccionistas.

A verdade é que trata-se de não contar a história e até de buscar o modo de não contá-la de forma alguma. Há, claro, o princípio do roteiro, resumível em algumas linhas, é geralmente a sedução de um homem por uma mulher que não o quer, ou o inverso, ou ainda o convite ao pecado de uma noite, ao prazer, os mesmos temas que Sacha Guitry, sendo que o essencial é não tratar o assunto diretamente. Então, se permanecemos por trás das portas dos quartos, se nós ficamos no escritório quando tudo acontece no salão e no salão quando tudo acontece na escada e na cabine telefônica quando tudo acontece no porão, é que Lubitsch, modestamente, quebrou a cabeça durante seis semanas para finalmente liberar os espectadores para fazerem o roteiro eles mesmos, com ele.

Existem dois tipos de cineastas, e o mesmo se dá com pintores e escritores: aqueles que trabalhariam mesmo numa ilha deserta, sem público, e aqueles que... bem.. de que serve? Não existe Lubitsch sem público, mas, cuidado, o público não é “a mais”, mas “com”, ele faz parte do filme. Na banda sonora temos os diálogos, os ruídos, a música e nossos risos, é o essencial, e sem isso não tem filme. As elipses de roteiro, prodigiosas, só funcionam porque nossos risos estabelecem a ponte de uma cena a outra. No queijo-Lubitsch cada buraco é genial.

De tempo em tempo a expressão “mise-en-scène” significa alguma coisa, e aqui ela é um jogo que só pode ser praticado a três e somente durante o tempo da projeção.

Logo, nada a ver com o cinema do Doutor Jivago. Se vocês me disserem: “Acabo de ver um filme de Lubitsch em que tem um plano inútil”, eu vou considerá-lo como um mentiroso. Esse cinema, o contrário do vago, do impreciso, do não-formulado, não comporta nenhum plano decorativo, nada que esteja lá “para ficar bonito”, não, estamos diante do essencial somente.

No papel, um roteiro de Lubitsch não existe. Não faz sentido, e tampouco depois da projeção, tudo acontece durante o momento em que assistimos.

Nós estávamos lá, no escuro, a situação era clara, ela se mantinha em tal nível que, para nos reconfortarmos, nós antecipamos a cena seguinte recorrendo evidentemente a nossas lembranças de espectador, mas Lubitsch, justamente, como todos os gênios, imbuído do espírito de contradição, passou em revista ele próprio as soluções preexistentes para adotar aquela que nunca tinha sido utilizada, o impensável, a enorme, o maravilhoso, o desnorteante.

Seria possível evidentemente falar do “respeito ao público” mas essa noção serve muitas vezes de álibi, deixemo-la de lado e tomemos um exemplo bem-vindo.

Em Ladrão de Alcova, Edward Everett Horton olha para Herbert Marshall de maneira suspeita. Ele crê que viu aquela cara em algum lugar. Quanto a nós, sabemos que Herbert Marshall é o batedor de carteira que, no começo do filme, roubou o pobre Horton num quarto de palácio em Veneza. Logo, é necessário que num certo momento Horton se recorde, e nove cineastas em dez, todos fingidores, o que fazem? O sujeito dorme em sua cama e, de noite, no meio do sono, ele acorda, e, mão na testa, diz: “É isso! Veneza! Ah, o canalha!” Quem é o canalha? Em todo caso, não é Lubitsch, que tem um trabalho do cão, que dá o seu sangue e que vai morrer de cinema vinte anos mais cedo. O que é que esse Lubitsch faz, hein, como diz Jean-Pierre Léaud em A Chinesa? Lubitsch nos mostra Horton fumando um cigarro, visivelmente perguntando-se onde ele poderia ter visto anteriormente Marshall, fumando mais uma vez seu cigarro, refletindo, e depois apagando o toco de cigarro num cinzeiro de prata em forma de gôndola... Veneza! Que diabos! Bravo, agora é o público que cai na gargalhada e Lubitsch está lá, em pé, no fundo da sala, vigiando sua ‘audience”, receando o menor atraso de riso como Fredric Marsh em Ladrão de Alcova, observando o ponto teatral que vê Hamlet se aproximar a rampa e diz prontamente dá a ele o texto: “To be or not to be”!

Eu falei do que se aprende, falei do talento, falei daquilo que, no fundo, eventualmente, pode se comprar e afixar um preço, mas o que não se aprende e tampouco se compra é o charme e a malícia, ah, o charme malicioso de Lubitsch. Eis o que fazia dele verdadeiramente um príncipe.

Tradução de Ruy Gardnier.
Retirado de http://www.contracampo.com.br/81/aviuvaalegre.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário