Sócios no Amor (1933)
Por François Truffaut
Antes de tudo,
temos a imagem, aquela dos filmes de antes da guerra, e eu gosto muito
dela. Os personagens são pequenas silhuetas sombrias na tela, eles
entram em cena batendo portas que são três vezes maiores que eles. Não
havia crise de habitação naquela época, e, nas ruas, por causa das
bandeirolas de apartamentos a alugar, era 14 de julho o ano inteiro.
Esses grandes cenários disputavam a atenção com os atores, o produtor
pagava caro por eles, era preciso vê-los, e o sujeito dos charutos
prezava muito seu dinheiro e eu creio que ele teria mandado à merda o
diretor que tivesse a petulância de fazer o filme inteiro em closes.
Nessa época, quando não se sabia exatamente onde colocar a câmera, ela
era colocada bem longe. Hoje, na dúvida, eles a atocham nas narinas dos
atores. Passou-se da insuficiência modesta à insuficiência pretensiosa.
Essa
introdução nostálgica e reacionária não está deslocada para apresentar
Lubitsch, que – mais do que Pierre Doris afirmando que era melhor chorar
numa jaguar do que no metrô – pensava com firmeza que é melhor rir num
palácio do que suspirar nos fundos da loja da esquina. Sinto que não
terei o tempo de resumir.
Como
todos os artistas da estilização, Lubitsch, conscientemente ou não,
aproximava-se da narração dos grandes autores de contos de fadas. Em
Anjo, um jantar tedioso e constrangedor vai reunir Marlene Dietrich,
Herbert Marshall, seu marido, e Melvyn Douglas, seu amante de uma noite
só que ela acreditaria jamais ver novamente, e que seu marido trouxe por
acaso para jantar. Como acontece várias vezes nos filmes de Lubitsch –
voltaremos a isso –, a câmera deixa o lugar da ação para ir ao lugar que
permitirá observar as conseqüências. Estamos na cozinha. O maître vai e
vem, ele leva primeiro o prato de madame: “Curioso, Madame nem tocou em
sua costeleta.” Depois o prato do convidado: “Olha só, ele também não.”
(Na verdade, essa segunda costeleta está cortada em cem pedacinhos
inteiros.) o terceiro prato chega, vazio: “Já o patrão parece ter
apreciado a costeleta”. podemos reconhecer Cachinhos Dourados na casa
dos três ursos: a tigela de Papai Urso estava quente demais, a de Mamãe
Urso fria demais, a do Bebê Urso “perfeita”. Vocês conhecem uma
literatura mais necessária do que essa?
Este,
então, é o primeiro ponto comum com o “hitchcock-touch”, e o segundo é
provavelmente a maneira de abordar o problema do roteiro. Aparentemente,
trata-se de contar uma história em imagens e é o que eles mesmos irão
dizer em suas entrevistas. Não é verdade. Eles não mentem por prazer ou
para rir da nossa cara, não, eles mentem para simplificar, porque a
realidade é complicada demais e é mais importante passar o tempo
trabalhando e aperfeiçoando, já que estamos falando de perfeccionistas.
A
verdade é que trata-se de não contar a história e até de buscar o modo
de não contá-la de forma alguma. Há, claro, o princípio do roteiro,
resumível em algumas linhas, é geralmente a sedução de um homem por uma
mulher que não o quer, ou o inverso, ou ainda o convite ao pecado de uma
noite, ao prazer, os mesmos temas que Sacha Guitry, sendo que o
essencial é não tratar o assunto diretamente. Então, se permanecemos por
trás das portas dos quartos, se nós ficamos no escritório quando tudo
acontece no salão e no salão quando tudo acontece na escada e na cabine
telefônica quando tudo acontece no porão, é que Lubitsch, modestamente,
quebrou a cabeça durante seis semanas para finalmente liberar os
espectadores para fazerem o roteiro eles mesmos, com ele.
Existem
dois tipos de cineastas, e o mesmo se dá com pintores e escritores:
aqueles que trabalhariam mesmo numa ilha deserta, sem público, e aqueles
que... bem.. de que serve? Não existe Lubitsch sem público, mas,
cuidado, o público não é “a mais”, mas “com”, ele faz parte do filme. Na
banda sonora temos os diálogos, os ruídos, a música e nossos risos, é o
essencial, e sem isso não tem filme. As elipses de roteiro,
prodigiosas, só funcionam porque nossos risos estabelecem a ponte de uma
cena a outra. No queijo-Lubitsch cada buraco é genial.
De
tempo em tempo a expressão “mise-en-scène” significa alguma coisa, e
aqui ela é um jogo que só pode ser praticado a três e somente durante o
tempo da projeção.
Logo,
nada a ver com o cinema do Doutor Jivago. Se vocês me disserem: “Acabo
de ver um filme de Lubitsch em que tem um plano inútil”, eu vou
considerá-lo como um mentiroso. Esse cinema, o contrário do vago, do
impreciso, do não-formulado, não comporta nenhum plano decorativo, nada
que esteja lá “para ficar bonito”, não, estamos diante do essencial
somente.
No
papel, um roteiro de Lubitsch não existe. Não faz sentido, e tampouco
depois da projeção, tudo acontece durante o momento em que assistimos.
Nós
estávamos lá, no escuro, a situação era clara, ela se mantinha em tal
nível que, para nos reconfortarmos, nós antecipamos a cena seguinte
recorrendo evidentemente a nossas lembranças de espectador, mas
Lubitsch, justamente, como todos os gênios, imbuído do espírito de
contradição, passou em revista ele próprio as soluções preexistentes
para adotar aquela que nunca tinha sido utilizada, o impensável, a
enorme, o maravilhoso, o desnorteante.
Seria
possível evidentemente falar do “respeito ao público” mas essa noção
serve muitas vezes de álibi, deixemo-la de lado e tomemos um exemplo
bem-vindo.
Em
Ladrão de Alcova, Edward Everett Horton olha para Herbert Marshall de
maneira suspeita. Ele crê que viu aquela cara em algum lugar. Quanto a
nós, sabemos que Herbert Marshall é o batedor de carteira que, no começo
do filme, roubou o pobre Horton num quarto de palácio em Veneza. Logo, é
necessário que num certo momento Horton se recorde, e nove cineastas em
dez, todos fingidores, o que fazem? O sujeito dorme em sua cama e, de
noite, no meio do sono, ele acorda, e, mão na testa, diz: “É isso!
Veneza! Ah, o canalha!” Quem é o canalha? Em todo caso, não é Lubitsch,
que tem um trabalho do cão, que dá o seu sangue e que vai morrer de
cinema vinte anos mais cedo. O que é que esse Lubitsch faz, hein, como
diz Jean-Pierre Léaud em A Chinesa? Lubitsch nos mostra Horton fumando
um cigarro, visivelmente perguntando-se onde ele poderia ter visto
anteriormente Marshall, fumando mais uma vez seu cigarro, refletindo, e
depois apagando o toco de cigarro num cinzeiro de prata em forma de
gôndola... Veneza! Que diabos! Bravo, agora é o público que cai na
gargalhada e Lubitsch está lá, em pé, no fundo da sala, vigiando sua
‘audience”, receando o menor atraso de riso como Fredric Marsh em Ladrão
de Alcova, observando o ponto teatral que vê Hamlet se aproximar a rampa
e diz prontamente dá a ele o texto: “To be or not to be”!
Eu
falei do que se aprende, falei do talento, falei daquilo que, no fundo,
eventualmente, pode se comprar e afixar um preço, mas o que não se
aprende e tampouco se compra é o charme e a malícia, ah, o charme
malicioso de Lubitsch. Eis o que fazia dele verdadeiramente um príncipe.
Tradução de Ruy Gardnier.
Retirado de http://www.contracampo.com.br/81/aviuvaalegre.htm
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