sábado, 25 de maio de 2019

O conhecimento total

por Jean Douchet
 

A obra de Mizoguchi é notoriamente uma das mais difíceis de abordar. Intendente Sansho não foge a esta regra. O crítico se vê desarmado pela evidência de tanta perfeição. Tudo aqui, pelo esforço combinado da inteligência mais vasta e da sensibilidade mais profunda, contribui para a simplicidade. Não a simplicidade da ignorância, mas a que resulta do conhecimento total. É portanto na manifestação deste conhecimento que se deve avançar seu estudo, isto é, na mise en scène. Somente ela contém os segredos de um autor que é longe de nós pela civilização, mas de maneira única tão próximo ao colocar o homem no centro de um universo que parece ter sido criado apenas para ocupar-se dele.

Portanto, não vou insistir na trama de Intendente Sansho. Sua história se resume em uma única palavra: melodrama. Trata-se das tribulações de uma família aristocrática no Japão feudal do século XI. O pai, governador de uma província, revoltado pelas injustiças das castas superiores em relação aos camponeses, toma partido dos últimos. Isso lhe causa sua destituição e exílio. Sua esposa, filho e filha partem ao seu encontro seis anos depois. Mas, no caminho, eles serão sequestrados e vendidos separadamente como escravos. A mãe, como cortesã em uma ilha, os filhos sob o terrível e infernal intendente Sansho. Dez anos se passam. O filho se tornou o ajudante mais feroz do intendente. Mas as censuras de sua irmã e memórias da infância lhe fazem voltar a si. Ele foge desse inferno, consegue ser reconhecido pelo primeiro-ministro, é nomeado governador, elimina a escravidão, prende o intendente e, esta missão cumprida, renuncia. Ele finalmente reencontra a mãe inválida, mas sua irmã e seu pai estão mortos.

Roteiro a priori muito Órfãos da Tempestade (Griffith não é o melhor elogio?). Mas um roteiro que, como todo bom melodrama, tem numerosas facetas que remontam a múltiplas interpretações. É um poema religioso sobre a reencarnação das almas, a dura necessidade da passagem terrena (neste sentido o intendente Sansho seria como um regente das forças terrestres) e cuja única chance de salvação estaria na conquista de si? Ou é um filme profundamente humanista, quase ateu, que glorifica o homem que ousa confrontar a ordem divina? (cf. a cena entre o monge-filho do intendente Sansho e Anskio). Na verdade, as duas interpretações, penso eu, coexistem no filme. Podemos também destacar a ardente acusação contra a exploração do homem pelo homem, denunciada aqui sem ênfase ou demagogia, mas com que violência! Alguns entenderão simplesmente como um hino à mulher, à mãe e à família. Outros serão mais sensíveis ao lado filosófico: a vida é uma aventura cruel e plena de tormentos pelos quais passamos como um sonho e cujo sentido nos escapa.

Mas estes temas não trazem nada de novo. O mais estimulante, no entanto, é o modo como Mizoguchi ataca um plano, a maneira como o mantém, como uma nota, por seu único valor qualitativo. A arte de Mizoguchi é musical. Rivette definiu admiravelmente: “Uma arte da modulação.”


Conhece-se um indivíduo pelo seu aperto de mão. Da mesma forma, um cineasta revela sua natureza pela maneira como ele captura um plano. Um plano, subitamente exposto, revelado e julgado, perfaz o olhar do mestre, sua tomada de posse do mundo. Quanto mais aguda e precisa, lúcida e clarividente, mais perto o artista se aproxima do essencial: o mistério. Mas aqueles que pretendem fabricá-lo a partir do arranjo hábil de ausências e obscuridades são impostores. O mistério, esse mistério sagrado da arte, só pode nascer da contemplação do sol, logo, da evidência e da realidade perfuradas até às profundezas de si mesmo. Portanto, devemos ser contra esses cineastas que organizam sua mise en scène a fim de causar apenas sensações. Tudo deve resultar naturalmente da percepção do artista e refletir a sua qualidade.

Desde os dois primeiros planos de Intendente Sansho aparece esta qualidade única. O primeiro, no qual rodam os créditos, mostra bases de colunas antigas. Plano estático, como se o tempo estivesse congelado para sempre, tornado imutável e eterno. Mas já, um leve plongée nestas ruínas revela o olhar do artista. Por uma certa vibração luminosa, uma beleza natural da imagem, essa realidade banal que é os vestígios do passado suscita uma impressão de sonho, como se essas pedras ocultassem dentro de si um poder de evocação que apenas aguarda se materializar.

É o que faz o segundo plano. A oscilação, tão peculiar ao nosso cineasta, entre sonho e realidade aparece aqui em toda a sua evidência. São fantasmas que surgem do passado ou seres reais estes personagens surgindo em fila em uma clareira a qual atravessam lentamente, serpenteando? Mas o que importa! A partir de então eles são seres de carne e osso que avançam na vida, diante de suas armadilhas e seus tormentos. O que é, então, esse mundo de sonhos que parece envolver e banhar a realidade? Nada além do que uma percepção mais aguda do artista, que revela, pela evidência de sua tomada, a coexistência de duas ordens. De um lado, a realidade material das aparências, o universo físico dos corpos obedecendo às leis coercitivas e brutais da existência. Do outro lado, o mundo igualmente real da vida interior, mundo de devaneios sedentos por liberdade e, talvez, ainda mais profundamente, mundo das almas, escravas do mundo das aparências e de suas leis. Todo o filme consistirá então no conflito, dentro mesmo de cada plano, entre estas duas ordens, para concluir – no final de um longo périplo estético cuja aventura dos heróis é apenas sua figuração – na reconciliação (em harmonia e equilíbrio, numa breve união de uma ordem superior) dessas duas ordens em perpétua e frágil oposição. Uma lenta e magnífica panorâmica, no último plano de Intendente Sansho, abraça em comunhão homem e natureza.

Este conflito, puramente visual dentro de cada plano, necessariamente se estende por todo o filme e afeta inclusive a estrutura do roteiro. Os personagens precisam deixar este mundo de beleza interior, revelado a nós no início do filme por uma série de evocações do passado, para caírem na condição de escravos. Mas antes, eles vivem uma cena na qual a fragilidade deste mundo interior será vivida intensamente e deixará em suas almas o traço do inefável. É aquela, admirável, onde a família procura refúgio perto do lago. Porém, logo na chegada aos domínios do intendente, a imagem se torna mais seca, a dureza das aparências parece quase prevalecer sobre a parte do sonho. Mas esta sempre ressurge: um canto, um gesto, uma situação evocam a memória deste mundo. Um mundo procurado pelo filho do intendente, um ser frágil, porém revoltado pela dureza impiedosa de seu pai. Por covardia, ele abandona a realidade física pelo universo da contemplação. Mas é pelo espírito do sacrifício que a irmã do herói decide deixar esse mundo de escravidão. Então a imagem também responde ao seu heroísmo. Subitamente, a realidade parece transfigurada. Ela caminha lentamente pela floresta, enquanto sua figura graciosa mergulha em uma névoa que acaba por ser um lago. A jovem parece se dissolver em seu elemento primordial que é a água e a água é a própria substância da alma. Por este plano aberto de extrema simplicidade, Mizoguchi encontra o processo dinâmico dos devaneios poéticos mais profundos.

Inútil continuar e mostrar como o herói deve encontrar o verdadeiro equilíbrio e apaziguamento, triunfando sobre a matéria e suas leis pela constância e a grandeza. A partir de então, a vida da alma é preservada na vida do corpo. Tudo é harmonia. 

Como tudo em Mizoguchi se dá no nível do plano, esse plano deve ser sentido em sua qualidade. Cada plano impõe o puro presente, porque cada plano é um momento precioso e único, que coloca em questão o próprio destino dos personagens. Isso significa que Mizoguchi recusa a dramatização que necessariamente mistura os tempos. Aqui só temos momentos e estados. O próprio movimento das paixões nos é revelado apenas por sua mera manifestação. O cineasta se contenta em registrar o debate de seus personagens, prisioneiros do próprio quadro da tela. O conflito entre as duas ordens é revelado por gestos raros que tocam no mais secreto deles mesmos. Às vezes, a câmera – que nunca pode intervir diretamente – por um ligeiro travelling ou panorâmica, parece querer abordá-los como em uma carícia impossível. Porque esta câmera se encontra sempre onde o conhecimento será total.

Como essa percepção do universo é exata, sem trapacear e em conformidade à nossa, prolongando-a, aprofundando-a (e reduzindo-a ao essencial), o que Mizoguchi tem a nos dizer, apesar das diferenças de raça, civilização e costumes, atinge-nos profundamente. Ele não nos impõe uma visão pré-fabricada do mundo. Simplesmente, ele nos ensina a ver e a nos ver.



Retirado de Cahiers du Cinéma nº 114, dezembro de 1960. Tradução de Giovanni Comodo.

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