por François Truffaut
O ano cinematográfico que agora termina
tem sido o mais rico e estimulante desde 1946. Abriu com La Strada, de Fellini, e sua apoteose é Lola Montès, de Max Ophüls.
Como a heroína de seu título, o filme pode provocar um escândalo e despertar
paixões. Se tivermos que lutar, lutaremos; se tivermos que polemizar, que assim
seja. É todo o cinema que deve ser defendido hoje, um cinema de auteurs que é também um prazer visual,
um cinema de ideias onde a inventividade informa cada imagem, um cinema que não
toma emprestado do período pré-guerra, um cinema que rompe com novos caminhos
há muito tempo proibidos. Vamos frear o nosso entusiasmo e proceder de forma
ordenada, tentando nos mantermos objetivos, não importa o quão pouco queiramos.
A forma como a narrativa é construída e se apressa a cronologia, nos lembra Citizen Kane, embora agora tenhamos os
benefícios do Cinemascope, um processo aqui utilizado ao máximo do seu
potencial pela primeira vez. Em vez de simplesmente deixar seus atores no
quadro desumano da tela grande, Ophüls doma a imagem, a divide, a multiplica, a
contrai ou a dilata de acordo com as necessidades de sua surpreendente
concepção. A estrutura é nova e ousada; pode muito bem confundir o espectador
que se deixa distrair ou que chega ao meio do filme. Que pena. Há filmes que
exigem atenção integral. Lola Montès é um deles. No final de sua vida
dramática, Lola Montès atua e imita sua Paixão, alguns episódios de uma vida
amorosa incomum. A atmosfera do circo é de pesadelo e alucinatória. Três
episódios nos afastam dessa cena: o fim de um caso com Franz Liszt; sua
juventude; e um caso de amor real na Baviera, pouco antes de ela entrar para o
circo. O quarto episódio nos mostra Montès no circo. Peter Ustinov interpreta o
papel de mestre de cerimônias, atormentador e amante final. De fato, no final
de sua vida, a verdadeira Lola Montez (uma aventureira e cortesã irlandesa
apesar de seu pseudônimo espanhol) foi contratada por um circo americano como a
estrela de um espetáculo baseado em sua vida. Em vez de se condensar em duas
horas de material cinematográfico que justificaria uma série de dezesseis
partes, Ophüls optou por recriar o espetáculo de um circo e interceptar cenas
do passado de Lola. Peter Ustinov, o mestre de cerimônias-biógrafo, administra
seu programa com o mesmo mau gosto, vulgaridade e crueldade inconsciente que
regem as transmissões de televisão. Se atores importantes têm mais prestígio do
que as estrelas da TV, é porque a arte imita a vida e não a embeleza nem um
pouco. O filme de Max Ophüls é sobre os pontos fracos do sucesso, sobre
carreiras turbulentas e as formas como o escândalo é explorado. Montès, muitas
vezes é lembrada, de que não consegue cantar ou dançar; ela simplesmente sabe
como agradar, ela provoca, ela causa escândalo. O mestre de cerimônias nos diz
que ela é uma mulher fatal e, se ela se mudou muito, é porque "as mulheres
fatais não podem ficar paradas". Mas os flashbacks no passado de Lola que
nos mostram sua infância, seu casamento com um bruto bêbado (Ivan Desny), sua
aventura com um solene e tolo Franz Liszt, e suas decepções artísticas
desmentem suas declarações condescendentes. Lola era uma mulher como todas as
outras, vulnerável e insatisfeita, só que ela fez "todas as coisas que as
mulheres na rua sonham em fazer, mas não se atrevem". Mas ela viveu num
ritmo acelerado, e após um maravilhoso último interlúdio com um rei anacrônico
na Baviera (Anton Walbrook), ela deve morrer todas as noites em um circo
americano, imitando suas próprias paixões. Ophüls não esquece que ela levou
várias semanas para atravessar um país há cem anos, então uma parte central do
filme se passa em carruagens que cruzam a Europa. No final de sua vida
vertiginosa, Lola é devastada, usada prematuramente: "Eu a examinei",
diz o médico. "O seu coração está a adoecer e a doença na garganta é
talvez ainda mais grave". As observações físicas e terrenas contam a
história: "Para mim, a vida é movimento. O rei da Baviera pergunta-lhe uma
noite: "Não quer parar, descansar, ficar quieta por um momento?"
O filme é construído rigorosamente; se afasta alguns espectadores, é porque há
cinquenta anos a maioria dos filmes é narrada de forma infantil. Deste ponto de
vista, Lola Montès não é apenas como Citizen
Kane, mas também como The Barefoot
Contessa, Les Mauvaises Rencontres e todos aqueles filmes que mudam a
cronologia por efeito poético. O resultado é menos uma questão de seguir uma
história do que contemplar um retrato de uma mulher. A imagem é muito cheia e
muito rica para ver tudo de uma só vez. O autor claramente o pretende dessa
forma, chegando ao ponto de nos permitir ouvir várias conversas ao mesmo tempo.
Claramente, Ophüls está menos interessado nos momentos fortes da intriga do que
no que ocorre entre eles. A história que apreendemos nos restos - o que
percebemos dela nos ajuda a reconstituir o resto, como na vida real - é
brilhantemente lacônica. Os personagens não resumem situações com fórmulas
elegantes; quando sofrem, vê-se, não é articuladamente.
Certamente este é o diálogo mais inteligente e preciso de um filme francês
desde Zero de Conduite de Jean Vigo, um diálogo estritamente empírico:
'Passe-me o sal...' 'Aqui...' 'Obrigado.' E, ainda assim, há um espírito
retirado de cada diálogo. O único personagem que tem o cuidado de moldar-se,
frases e dar uma punhalada na eloqüência é Peter Ustinov, mas ele procura as
palavras certas, gagueja, repete-se, assim como na vida real. Se Ophuls fosse
um cineasta italiano, diria: "Fiz um filme neorealista". De fato, ele
nos deu um novo tipo de realismo aqui, mesmo que seja a poesia, acima de tudo,
que nos chama a atenção. Lola Montès, feita em três línguas, é interpretada por
atores de várias nacionalidades, incluindo Peter Ustinov (russo-inglês), Anton
Walbrook (austríaco-inglês) e Oskar Werner (austríaco). Na versão francesa, a
que nos interessa aqui, estes atores falam francês com um sotaque mais ou menos
acentuados. Acrescido a isto o fato de que
o diálogo às vezes nos oferece duas ou três conversas simultaneamente,
assim como sussurros e frases perdidas, e você termina com uma banda sonora que
é cerca de 20% ininteligível na primeira audição. Por ter ficado fascinado e
intrigado com o diálogo, obtive um roteiro para compará-lo com a trilha sonora
final. O diálogo na continuidade escrita é boa, mas a do filme é extraordinária
porque os atores não foram capazes de o executarem de acordo com o texto e por
conta das mudanças no palco de som. A frase "Uma fera selvagem cem vezes
mais mortífera do que as que vocês acabaram de aplaudir em nossa
menagèrie", é declarada pelo gênio cabeça de vento Peter Ustinov como
"Uma fera selvagem cem vezes mais mortal do que as que aqui estão". Todas
as falas do mestre de dança foram substituídas durante as filmagens por
pequenos gritos e murmúrios que são extremamente eficazes. Ophuls
deliberadamente manteve planos que eram defeituosos por acidentes em vez de
outros que eram perfeitos em sua versão final editada - por exemplo, uma cena
em que o chicote de Ustinov fica preso na franja de um adereço. Ou, com o rei da Bavária a dizer Eu ia para sua casa, senhora... não, isso
não está certo", ele move um pedaço do cenário e pega de novo. "Eu
estava indo para sua casa, madame, a fim de poupar-lhe o inconveniente."O
maravilhoso "Não, isso não está certo" sem dúvida veio quando
Walbrook perdeu seu lugar durante a filmagem. Com esse tipo de improvisação
contínua,sendo isso voltado para melhorar o filme, a uma verdade mais
autêntica, Ophuls se junta ao Jean Renoir que fez Le Crime de Monsieur Lange.
O
duplo - e até mesmo triplo - lapso que constantemente surge em Lola Montès
entre os personagens e suas observações, entre a sua atuação e o texto, cria
um encanto semelhante ao das hesitações de Margaritis em L'Atalante. Lola Montès é o primeiro filme que
gagueja, um filme em que a beleza de uma palavra (a volúpia aveludada com que
Walbrook adorna a palavra "público") dá consistentemente a deixa para
o significado de uma frase. Jean Vigo vem à mente novamente, com seu gosto por
textos versificados no qual ele compartilha com Ophuls. Meu coração está
dividido entre este pequeno poema de L'Atalante:
Ces
couteaux de table (Estas
facas de mesa)
Aux
reflets changeants (Com
reflexos mutáveis)
Sont
inoxydables (São
inoxidáveis)
Eternellement. (Eternamente)
E este, declamado por Ustinov:
À
Raguse (Em Ragusa)
Robe
exquise (Vestido
refinado)
Qu'on
refuse (Que na feira da
igreja)
A I'eglise. (Recusa ser doado)
Lola Montès é um filme que bate todos os
recordes: o melhor filme francês do ano, o melhor Cinemascope até hoje; Max
Ophuls é declarado o melhor encenador da época e o melhor diretor; pela
primeira vez, Martine Carol, como Lola, é realmente satisfatória, Peter Ustinov
é sensacional, assim como Oskar Werner; Anton Walbrook e Ivan Desny são
excelentes. Max Ophuls é marcadamente um cineasta do século XIX. Nunca temos a
impressão de estarmos a ver um filme histórico, mas sim de sermos espectadores
de 1850, como se estivéssemos a ler Balzac. O retrato da mulher nesta obra é
uma síntese de todas as suas mulheres anteriores: Lola Montès tem todos os
percalços emocionais das heroínas de Sans
Lendemain, Carta de uma Mulher Desconhecida
e Madame de...
Estou bem ciente de que provavelmente não é uma boa idéia atacar filmes que
eu não gosto para defender um filme que eu amo, mas no final sou francamente
obrigado a pensar que se o público era legal para Lola Montès, é porque ele foi
pouco educado para ver obras realmente originais e poéticas. Os
"melhores" filmes franceses (estou pensando em Le Rouge et le Noir de Claude Autant-Lara, e em Diabolique de Clouzot, e em Les Grandes Manoeuvres de René Clair)
foram feitos para agradar, lisonjear e acariciar o público. O delírio de um
filme que foi desnudado cinco vezes numa semana pode continuar para sempre. Vou
terminar descrevendo a beleza da última cena: Na ménagerie, Lola oferece sua
mão para ser beijada através das barras de uma jaula; enquanto a câmera se move
para trás, os espectadores do circo se movem para frente na parte inferior da
tela e nos misturamos com eles. Pela primeira vez, a saída de um cinema
acontece na tela. Todo o filme é assim colocado sob o patrocínio de Pirandello,
como todo o trabalho de Ophuls. Lola Montès é apresentada como uma caixa de
chocolates que nos é dada como presente de Natal; mas quando a tampa é
retirada, sai como um poema que vale uma fortuna incalculável.
Texto publicado em
1955 e retirado do livro “Os Filmes de Minha Vida”, de François Truffaut. Tradução de Waleska Antunes.