domingo, 29 de setembro de 2019

Amar como arte

por Giovanni Comodo

  
“O cinema é um milagre”
João Bénard da Costa


Como falar de um filme como “Depois do Vendaval” sem evocar uma ideia de perfeição completa, de uma obra que parece existir sem arestas, absoluta, plena? Como descrever um azul que só se encontra no céu e nos olhos de Maureen O’Hara? Ou os verdes mais ricos já vistos no cinema? O cinema é composto por milagres, mas há alguns maiores do que outros. E John Ford entrega-os sistematicamente.

Trata-se de um filme de amor. Sean Thornton retorna a terra de seu nascimento, uma vila minúscula na Irlanda, depois de toda uma vida nos Estados Unidos e encontra Mary Kate Danaher – uma ruiva tão indomável quanto a terra em que pisa. A paixão é mútua e avassaladora, tem início a corte, alguns percalços o separam e ficam juntos no final. É isso, mas muito mais. Pouco mais de duas horas e temos um universo, conhecemos a cidade e seus habitantes tão bem que podemos dizer sermos proprietários de uma casa ali.

Esta impressão é fruto do trabalho do diretor, do seu olhar sobre esta terra e estas pessoas. Amor.

Descendente de irlandeses, Ford manteve para si por cerca de 20 anos os direitos do conto que dá origem ao filme, aguardando o momento certo, em que estaria pronto para uma visita não apenas a uma geografia em especial, mas a um imaginário no qual cresceu e alimentou. Nos diversos e idiossincráticos costumes irlandeses, há a caricatura, mas ela é feita com admiração e interesse. Não há prova maior do respeito sobre as pessoas que filma do que os momentos finais do filme, em que atores e moradores locais se despedem da plateia, acenando para a câmera, como se agradecendo a visita e desejando um bom retorno.

Amor sobre John Wayne e Maureen O’Hara. A primeira vez em que Sean a vê, descalça conduzindo as ovelhas, em meio a uma natureza intocada, ele se pergunta se é uma aparição. A isto tem sequência um plano em contraplongée de Mary Kate envolta por uma forte luz branca, estourada, no qual vai se afastando aos poucos – também ela é tomada, por sua vez, pela aparição Sean, nesta e em diversas cenas o observando a distância. A ousadia deste plano, “desequilibrado”, “imperfeito”, totalmente inesperado em sua composição ou no que evocamos ao falar de um cinema “clássico”, demonstra a maestria de Ford, de saber subverter regras a fim de atingir suas intenções – aqui, a emoção e a vertigem da paixão à primeira vista na qual a plateia torna-se partícipe. 

Esta paixão, selvagem, vulcânica, brota em todas as cenas de Sean e Mary Kate, como se a tela estremecesse junto com eles. Ambos buscam a presença e o corpo do outro, em sequências em que sagrado e profano se entrelaçam – o primeiro toque de mãos com água-benta, o beijo ardente no cemitério durante a chuva. Os caminhos do coração nunca são simplificados e é exatamente nos seus contrastes e opostos que o diretor encontra material de seu maior interesse. 

 You're still my darling loyal girl—come hell or high water & I'll always love & revere you. Please think kindly of me, not much—a little bit.(Carta de John Ford a Maureen O’Hara)


John Ford, cuja carreira começa na década de 1910 e vai ao final da década de 1960, tem aqui a culminação luminosa de sua arte. Reticente ao uso da cor no cinema (achava o preto-e-branco mais desafiador), faz um dos mais belos usos do vermelho, azul e verde já vistos. Há a desenvoltura demonstrada ao montar vários planos de uma corrida de cavalos e a escolha pela ausência de cortes em cenas chaves (a do primeiro beijo do casal, sabendo que cada corte seria como uma facada em um momento mágico a se desenrolar diante de nós). Uma edição que se permite elipses radicais (o casamento) e longas expansões de momentos ínfimos (o primeiro olhar entre o casal). Um filme que abre com a chegada do trem à estação, a fundação do cinema, e termina com a implosão das atuações, com as pessoas se despedindo do filme que fizeram. Ou mesmo “pequenas” coisas, como o constante e discreto trabalho de criação de profundidade de campo nos interiores, ou o cuidado no registro dos gestos – disto há um bom exemplo na cena dentro do pub em que Sean e o cunhado se cumprimentam pela primeira vez: eles se dão as mãos diante do padre de Ward Bond, o diretor fazendo suas vestes negras destacarem e mesmo “emoldurarem” as mãos em disputa. E sendo o cinema também uma biblioteca de gestos humanos, percebe-se em Ford o zelo em registrá-los a nós.

Este caráter quase enciclopédico do diretor, de conseguir reunir na sua obra tantas décadas, movimentos e qualidades do cinema, é apenas mais um dos motivos que o fazem um dos maiores de todos os tempos. Mas tudo isto é secundário diante da sua sensibilidade em respeitar as pessoas e suas emoções em estado bruto diante da câmera. Ford capturou o que há de mais puro na psique humana (e puro não quer dizer “o melhor” da humanidade, há também em suas obras os mais puros ódios, invejas, ciúmes e dores), sem julgamentos ou condenações, deixando estes para nós. Na realidade, Ford filma sempre com amor ao próximo, em um ato de fé com poucos paralelos na história do cinema.

O que nos traz a “Depois do vendaval” e suas paixões que alucinam. Nesta terra inóspita e de dificuldades, há muita violência, ignorância e brutalidade. E também há beleza, solidariedade e graça. Ford nos mostra tudo. Ainda sobra tempo para dizer que os poetas são bobos. Bobos ficamos nós, a plateia, com seus filmes.

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