“O cinema é um milagre”
João Bénard da Costa
Como falar de um filme como
“Depois do Vendaval” sem evocar uma ideia de perfeição completa, de uma obra
que parece existir sem arestas, absoluta, plena? Como descrever um azul que só
se encontra no céu e nos olhos de Maureen O’Hara? Ou os verdes mais ricos já
vistos no cinema? O cinema é composto por milagres, mas há alguns maiores do
que outros. E John Ford entrega-os sistematicamente.
Trata-se de um filme de amor.
Sean Thornton retorna a terra de seu nascimento, uma vila minúscula na Irlanda,
depois de toda uma vida nos Estados Unidos e encontra Mary Kate Danaher – uma
ruiva tão indomável quanto a terra em que pisa. A paixão é mútua e
avassaladora, tem início a corte, alguns percalços o separam e ficam juntos no
final. É isso, mas muito mais. Pouco mais de duas horas e temos um universo,
conhecemos a cidade e seus habitantes tão bem que podemos dizer sermos
proprietários de uma casa ali.
Esta impressão é fruto do
trabalho do diretor, do seu olhar sobre esta terra e estas pessoas. Amor.
Descendente de irlandeses, Ford
manteve para si por cerca de 20 anos os direitos do conto que dá origem ao
filme, aguardando o momento certo, em que estaria pronto para uma visita não
apenas a uma geografia em especial, mas a um imaginário no qual cresceu e
alimentou. Nos diversos e idiossincráticos costumes irlandeses, há a
caricatura, mas ela é feita com admiração e interesse. Não há prova maior do
respeito sobre as pessoas que filma do que os momentos finais do filme, em que
atores e moradores locais se despedem da plateia, acenando para a câmera, como
se agradecendo a visita e desejando um bom retorno.
Amor sobre John Wayne e Maureen O’Hara. A primeira vez em que Sean a vê, descalça conduzindo as ovelhas, em meio a uma natureza intocada, ele se pergunta se é uma aparição. A isto tem sequência um plano em contraplongée de Mary Kate envolta por uma forte luz branca, estourada, no qual vai se afastando aos poucos – também ela é tomada, por sua vez, pela aparição Sean, nesta e em diversas cenas o observando a distância. A ousadia deste plano, “desequilibrado”, “imperfeito”, totalmente inesperado em sua composição ou no que evocamos ao falar de um cinema “clássico”, demonstra a maestria de Ford, de saber subverter regras a fim de atingir suas intenções – aqui, a emoção e a vertigem da paixão à primeira vista na qual a plateia torna-se partícipe.
Esta paixão, selvagem, vulcânica,
brota em todas as cenas de Sean e Mary Kate, como se a tela estremecesse junto
com eles. Ambos buscam a presença e o corpo do outro, em sequências em que
sagrado e profano se entrelaçam – o primeiro toque de mãos com água-benta, o
beijo ardente no cemitério durante a chuva. Os caminhos do coração nunca são
simplificados e é exatamente nos seus contrastes e opostos que o diretor encontra
material de seu maior interesse.
You're still my
darling loyal girl—come hell or high water & I'll always love & revere
you. Please think kindly of me, not much—a little bit.(Carta de John Ford a
Maureen O’Hara)
John Ford, cuja carreira começa
na década de 1910 e vai ao final da década de 1960, tem aqui a culminação
luminosa de sua arte. Reticente ao uso da cor no cinema (achava o
preto-e-branco mais desafiador), faz um dos mais belos usos do vermelho, azul e
verde já vistos. Há a desenvoltura demonstrada ao montar vários planos de uma
corrida de cavalos e a escolha pela ausência de cortes em cenas chaves (a do
primeiro beijo do casal, sabendo que cada corte seria como uma facada em um
momento mágico a se desenrolar diante de nós). Uma edição que se permite
elipses radicais (o casamento) e longas expansões de momentos ínfimos (o
primeiro olhar entre o casal). Um filme que abre com a chegada do trem à
estação, a fundação do cinema, e termina com a implosão das atuações, com as
pessoas se despedindo do filme que fizeram. Ou mesmo “pequenas” coisas, como o
constante e discreto trabalho de criação de profundidade de campo nos
interiores, ou o cuidado no registro dos gestos – disto há um bom exemplo na
cena dentro do pub em que Sean e o cunhado se cumprimentam pela primeira vez:
eles se dão as mãos diante do padre de Ward Bond, o diretor fazendo suas vestes
negras destacarem e mesmo “emoldurarem” as mãos em disputa. E sendo o cinema também
uma biblioteca de gestos humanos, percebe-se em Ford o zelo em registrá-los a
nós.
Este caráter quase enciclopédico
do diretor, de conseguir reunir na sua obra tantas décadas, movimentos e
qualidades do cinema, é apenas mais um dos motivos que o fazem um dos maiores
de todos os tempos. Mas tudo isto é secundário diante da sua sensibilidade em
respeitar as pessoas e suas emoções em estado bruto diante da câmera. Ford
capturou o que há de mais puro na psique humana (e puro não quer dizer “o
melhor” da humanidade, há também em suas obras os mais puros ódios, invejas,
ciúmes e dores), sem julgamentos ou condenações, deixando estes para nós. Na
realidade, Ford filma sempre com amor ao próximo, em um ato de fé com poucos
paralelos na história do cinema.
O que nos traz a “Depois do
vendaval” e suas paixões que alucinam. Nesta terra inóspita e de dificuldades,
há muita violência, ignorância e brutalidade. E também há beleza, solidariedade
e graça. Ford nos mostra tudo. Ainda sobra tempo para dizer que os poetas são
bobos. Bobos ficamos nós, a plateia, com seus filmes.
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